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Formação de Professores Primários e Identidade Nacional: Moçambique em Tempos de Mudança
Formação de Professores Primários e Identidade Nacional: Moçambique em Tempos de Mudança
Formação de Professores Primários e Identidade Nacional: Moçambique em Tempos de Mudança
E-book501 páginas6 horas

Formação de Professores Primários e Identidade Nacional: Moçambique em Tempos de Mudança

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Sobre este e-book

Após a independência de Moçambique (1975), trabalhei durante cinco anos no Ministério da Educação e Cultura, como responsável pela formação inicial e em exercício dos professores do ensino primário.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de abr. de 2021
ISBN9786558208174
Formação de Professores Primários e Identidade Nacional: Moçambique em Tempos de Mudança

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    Pré-visualização do livro

    Formação de Professores Primários e Identidade Nacional - José de Sousa Miguel Lopes

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO FORMAÇÃO DE PROFESSORES

    Ao Joaquim e à Odete (in memoriam), meus pais

    À Tónia, minha esposa

    À Carla, minha filha

    Agradecimentos

    À Capes, à UFMG e à FAE, pelo apoio fundamental recebido, que possibilitou meu estudo e minha pesquisa, dos quais resultou este trabalho.

    Aos professores da Faculdade de Educação da UFMG, que muito contribuíram para que ampliassem de modo significativo meus horizontes face ao fenômeno educacional.

    Aos meus colegas e amigos que, muitas vezes sem o saberem, prestaram-me uma preciosa colaboração.

    À Prof.ª Luciola Licinio de C. P. Santos, minha orientadora e amiga, pela sábia orientação, traduzida em disponibilidade, experiência e saber que permitiram a elaboração deste trabalho. Pelo seu apoio, seus conselhos e seu estímulo, a minha gratidão.

    À Tónia, minha esposa, pelo apoio, encorajamento e confiança inabaláveis.

    É o movimento eterno da história, do homem e de todas as coisas, que não para e não cessa, e de que nós, com os pobres instrumentos de compreensão e de expressão que possuímos, não apanhamos e sobretudo, não podemos reproduzir senão uma parcela ínfima, cortes desajeitados numa realidade que não se define estática, e sim dinamicamente [...] Para onde levará aquele processo confuso, complicado, oposto mesmo nos seus próprios termos, como o mar encapelado em que as vagas se fazem e desfazem, convergem e divergem, rolam na mesma direção ou se entrecruzam, para dar afinal numa resultante única e comum que é o embate violento contra o penhasco ou a onda que se alastra e espreguiça pela areia?

    (Caio Prado Júnior)

    Transformar a ordem ou desordem existente [...] não é tarefa fácil nem é uma tarefa individual. Mas se é verdade que a paciência dos conceitos é grande, a paciência da utopia é infinita.

    (Boaventura de Sousa Santos)

    Não basta que seja pura e justa a nossa causa.

    É necessário que a pureza e a justiça existam dentro de nós.

    (Jorge Rebelo)

    PREFÁCIO

    É com muito orgulho que escrevo e apresento este livro de José de Sousa Miguel Lopes. Trata-se de um trabalho, que, desde o princípio, impressionou-me pela riqueza de dados e pela profundidade das discussões e das questões levantadas.

    Miguel, como nós, seus amigos brasileiros, chamamos-lhe, mais do que produzir uma obra acadêmica, faz uma análise da primeira década pós-revolução, que oferece importantes subsídios para a história de Moçambique, não apenas no que se refere à política educacional. Trata-se de um estudo sobre as políticas da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), nos primeiros 10 anos, em que governou o país e de suas repercussões na educação, especialmente, naquilo que se refere à identidade nacional.

    Por um lado, estava o governo, buscando construir a unidade nacional em um país dominado pelos poderes étnicos. Era preciso, de acordo com a ideologia revolucionária, construir a unidade nacional, combatendo as divisões advindas da etnicidade e do regionalismo. Era também necessário combater a ignorância e as crendices populares, para se criar uma nação moderna e civilizada que ultrapassasse o subdesenvolvimento, proporcionando melhores condições de vida para sua população e passando a ocupar um lugar de destaque no conjunto dos países africanos. Por outro lado, havia a resistência dos grupos locais a esses discursos. As tradições, as manifestações culturais e religiosas resistiam e, muitas vezes, subvertiam as propostas do partido.

    Ao mesmo tempo, a Frelimo tratava de maneira diferente os povos do Sul em relação aos das outras partes do país, privilegiando os primeiros por estarem mais avançados em termos de desenvolvimento, o que acentuava, cada vez mais, as diferenças regionais. Da mesma forma, as forças governistas, em diferentes situações, invocavam a tradição, para incentivar o sentimento patriótico. Nesses momentos, recorria-se à importância das lutas travadas pelas etnias na recusa em aceitar o poder colonial. Enfatizando a importância da luta revolucionária, evidenciando a importância e as conquistas do governo da Frelimo, na pessoa de Samora Machel, Miguel não se furta a mostrar as ambiguidades e mesmo os erros do partido, nessa primeira fase pós-colonial, fundamentando-se, para isso, em diferentes produções sobre esse período da vida política de Moçambique.

    Julgo que o fato de estar distante do país há alguns anos deu a Miguel a capacidade de analisar as políticas e as ações do governo, de forma mais rigorosa, pois lhe proporcionou o distanciamento de que precisava, para realizar esse trabalho. Da mesma forma, foi esse distanciamento que também o impulsionou a falar da pátria longínqua, focalizando, sobretudo, questões relacionadas ao seu campo de trabalho, tanto lá como aqui. Lá, onde foi professor primário, na década que antecedeu a independência, realizando, em seguida, um trabalho no campo da formação de professores primários junto ao Ministério de Educação e Cultura e, por último, como diretor provincial da Educação e Cultura de Maputo. Aqui, inicialmente, realizando estudos e pesquisas na área educacional e, depois, lecionando na graduação e pós-graduação e produzindo trabalhos acadêmicos nesse campo. Não é por acaso que a epigrafe, no início de seu trabalho, logo na introdução, seja uma citação de um trecho escrito por Foucault, em que esse intelectual afirma que, para escrever uma história significativa é preciso que o autor esteja, de certa forma, envolvido nas disputas e nas lutas retratadas em seu trabalho.

    De maneira perspicaz e baseada nas obras de diferentes autores contemporâneos, Miguel aborda dois pontos que considero de importância fundamental. O primeiro deles refere-se à discussão em que traz à tona e dialoga com diferentes perspectivas teóricas sobre o significado da identidade nacional. O segundo diz respeito à discussão sobre a questão do respeito à diferença, na perspectiva do multiculturalismo. Miguel mostra como a unidade ou consciência nacional é importante, desde que não silencie as diferenças culturais. Para o autor, é no processo de respeito e de compreensão pela diversidade cultural que se pode ter a plena realização de uma verdadeira democracia. E é nesse clima democrático que pode ser criada a consciência nacional e só pode alcançar a unidade nacional, um país moderno, do ponto de vista do desenvolvimento das forças produtivas, que celebre sua história e onde haja espaço para as manifestações das diferentes culturas. Com isso, não se está defendendo que aspectos negativos das diferentes culturas não devam ser combatidos. O patriarcado, a exploração do trabalho feminino e todas as formas de preconceitos precisam ser banidos, para que seja construída uma sociedade sem assimetrias sociais, uma sociedade de iguais e, portanto, realmente democrática.

    Este livro de Miguel mostra-nos não apenas como era tratada a questão da identidade nacional, ele vai mais além. Sua leitura remete-nos aos processos de lutas nacionalistas das décadas que sucederam à Segunda Guerra. Terry Eagleton (2005), um dos autores mais brilhantes, ao discutir sobre temáticas como nacionalismo, pós-colonialismo, estruturalismo, estudos culturais e globalização, afirma que o nacionalismo revolucionário foi, sem dúvida, a mais bem-sucedida onda radical do século XX. De fato, esse mundo que conhecemos foi reconfigurado pelos movimentos revolucionários, que libertaram uma nação após a outra do jugo colonial. No entanto, essas novas nações que se formaram vão mostrar que o socialismo se tornou menos possível onde era mais necessário. Foi nesse contexto que surgiu a teoria pós-colonial, como resultado da impossibilidade de as nações terceiro-mundistas caminharem autonomamente. O fim da era das revoluções apontava para o princípio do que ficou conhecido como globalização. Com a crise econômica dos anos 1970, as nações recém-independentes passaram a enfrentar tempos tão difíceis que, pouco a pouco, foram desfeitas as ilusões de uma independência nacional revolucionária.

    A teoria pós-colonial rejeita o discurso da nacionalidade, mas não é possível esquecer que, naquele período, o nacionalismo foi uma bandeira dos que lutavam contra o colonialismo. Esses movimentos de libertação nacional enfrentaram muitas dificuldades e cometeram muitos erros. A estagnação econômica, a pobreza, a falta de tradições cívicas democráticas levou, pouco a pouco, muitos desses estados pós-coloniais para a órbita do capital. Foi nesse momento que a ideia de nacionalidade foi rejeitada, junto à ideia de classe que a ela relaciona-se. Nesse sentido, muitos dos teóricos pós-coloniais, pós-ímpeto revolucionário, eram também, nas palavras irônicas de Eagleton, responsáveis pela criação das novas nações. Passava-se, no campo acadêmico, das análises estruturais para as análises culturais.

    Finalmente, não é possível deixar de reconhecer que, se a ideia de nação ajudou a criar algumas ilusões perigosas, também concorreu para virar o mundo de cabeça para baixo (EAGLETON, 2005, p. 25).

    Prof.ª Dr.ª Lucíola Licinio de C. P. Santos

    Faculdade Educação da Universidade Federal de Minas Gerais

    LISTA DE ABREVIATURAS

    ANC: Congresso Nacional Africano

    ANP: Ação Nacional Popular

    AP: Assembleia Popular

    C.C.: Comitê Central

    CEA: Centro de Estudos Africanos

    Cedimo: Centro de Documentação e Informação de Moçambique

    CFPPs: Centros de Formação de Professores Primários

    CFQ: Comissão de Formação de Quadros

    Cidac: Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral

    Concoor: Conselho Coordenador do Ministério de Educação

    CPRPP: Centro Provisório de Reciclagem de Professores Primários

    DDEC: Direção Distrital de Educação e Cultura

    DEC: Departamento de Educação e Cultura

    DNE: Direção Nacional de Estatística

    DNFQE: Direção Nacional de Formação de Quadros da Educação

    DPEC: Direção Provincial de Educação e Cultura

    EUA: Estados Unidos da América

    FAM: Forças Armadas de Moçambique

    FMI: Fundo Monetário Internacional

    FPLM: Forças Populares de Libertação de Moçambique

    Frelimo: Frente de Libertação de Moçambique

    Frelimo: Nome do partido criado em fevereiro de 1977

    FRETILIN: Frente de Libertação de Timor-Leste

    GD: Grupo Dinamizador

    GT: Governo de Transição

    GVP: Grupo de Vigilância Popular

    LP: Língua Portuguesa

    MANU: União Africana Nacional de Moçambique

    MEC: Ministério de Educação e Cultura ( nome desse ministério até 1981)

    Mined: Ministério de Educação (a partir de 1981)

    MNR: Resistência Nacional Moçambicana (sigla em inglês )

    MPLA: Movimento Popular para a Libertação de Angola

    Nesam: Núcleo de Estudantes Secundários de Moçambique, fundado em 1949

    OJM: Organização da Juventude Moçambicana

    OMM: Organização da Mulher Moçambicana

    ONP: Organização Nacional dos Professores

    Opae: Organização Política e Administrativa das Escolas

    Otan: Organização do Tratado do Atlântico Norte

    Oteos: Orientações e Tarefas Escolares Obrigatórias

    OUA: Organização de Unidade Africana

    Paigc: Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde

    Polisario: Frente de Libertação do Sahara Ocidental

    Renamo: Resistência Nacional Moçambicana

    SNE: Sistema Nacional de Educação

    Snep: Serviço Nacional do Ensino Primário

    SWAPO: Organização dos Povos do Sudoeste Africano

    Udenamo: União Democrática Nacional de Moçambique

    UEM: Universidade Eduardo Mondlane

    Unami: União Nacional Africana de Moçambique Independente

    UNESCO: Organização das Nações Unidas para a Ciência e Cultura

    URSS: União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

    ZIP: Zona de Influência Pedagógica

    Sumário

    INTRODUÇÃO 21

    I PARTE

    SITUANDO O PROBLEMA DA PESQUISA 33

    II PARTE

    A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PRIMÁRIOS NO

    PERÍODO COLONIAL 61

    Capítulo 1

    A presença portuguesa em Moçambique entre 1885 e 1930 65

    1.1. A corrida das bandeiras ou como dividir é condição para reinar 65

    1.2. Como folhas de papel em branco 71

    Capítulo 2

    A hegemonia colonial (1930-1974) 75

    2.1. O outro como imagem especular do europeu 75

    2.2. A missão-escola como aparelho hegemônico ocultador 79

    Capítulo 3

    Das origens do movimento nacionalista ao desencadeamento da luta armada pela Frelimo 89

    3.1. O outro se começa a constituir em sujeito 90

    3.2. No coração da tempestade 97

    3.3. Estudar, Produzir, Combater 103

    Capítulo 4

    Do governo de transição à independência nacional 109

    4.1. Da penumbra à luz 109

    4.2. O país torna-se escola onde todos aprendem e todos ensinam 114

    III PARTE

    A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PRIMÁRIOS NA PRIMEIRA DÉCADA DE INDEPENDÊNCIA 123

    Capítulo 1

    A Frelimo e a identidade nacional 125

    1.1. Do paraíso que está à porta à coesão social ameaçada 127

    1.2. Autodiscurso e discurso legitimam a Frelimo como marco de referência

    na História moçambicana 142

    Capítulo 2

    Educação e identidade nacional 157

    2.1. Educação: território privilegiado da construção da nação 158

    2.2. História e memória coletiva 162

    2.3. Símbolos e rituais ao serviço do poder 167

    Capítulo 3

    Os cursos de formação de professores primários 175

    3.1. Centro de Formação de Professores Primários: o retrato do microcosmo onde se impulsiona a identidade nacional 176

    3.2. O coletivo: o novo valor social e educativo 191

    3.3. O currículo: uma forma de controle político do conhecimento 199

    3.4. Os programas de ensino: versão seletiva da cultura nacional 216

    3.5. Entra em cena a Educação Patriótica 222

    Capítulo 4

    Língua portuguesa/Línguas moçambicanas:

    harmonização ou confronto? 239

    4.1. Língua Portuguesa e identidade nacional 240

    4.2. Línguas moçambicanas: o mito da ameaça à unidade nacional 247

    Capítulo 5

    O mapa cultural moçambicano: em busca de um diálogo entre as diferenças 261

    5.1. A etnicidade em questão 261

    5.2. O sentimento étnico no campo da educação/formação de

    professores primários 271

    Capítulo 6

    O poder entre a tradição e a modernidade 279

    6.1. Frelimo: o estranhamento do universo tradicional 279

    6.2. Reflexos da sociedade tradicional no campo da educação 288

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 295

    REFERÊNCIAS 309

    ÍNDICE REMISSIVO 331

    INTRODUÇÃO

    Se estamos interessados em fazer um trabalho histórico que tenha significado, utilidade e eficácia política, então isso é possível apenas se tivermos algum tipo de envolvimento com as lutas que estão ocorrendo na área em questão.

    (Michel Foucault)

    Os povos não são apenas problemas que devem ser resolvidos, mas mistérios que devem ser explorados; não são apenas um vazio que deve ser preenchido mas plenitudes que devem ser descobertas.

    (Robert Vachon)

    Inúmeros processos no campo político e educacional que se vivem em Moçambique e com os quais me vi confrontado mergulham as suas raízes em acontecimentos da primeira década de independência (1975-1985), acontecimentos nos quais tive o privilégio histórico de participar ativamente. Vivenciei a agonia e queda do colonialismo, por força de uma luta armada de libertação nacional. Acompanhei in loco o processo que conduziu à independência de Moçambique, bem como as profundas transformações que se seguiram e que levaram o país a se envolver num projeto de construção do socialismo. Encontrei-me, pois, colocado face a face com um processo de ruptura política, econômica e social que vai fazer emergir uma nova nação, atravessada por divisionismos de todo o tipo, como o racismo, o tribalismo, o regionalismo, a opressão da mulher e pelo choque de valores culturais da sociedade tradicional feudal, da sociedade colonial e da nova sociedade socialista que se pretende implantar.

    Na década que precedeu a independência, fui professor primário em várias escolas da Região Sul do país. É nesse período que, progressivamente e de forma, muitas vezes, contraditória, vão avolumando-se discordâncias em relação ao ensino colonial, quer ao nível de seus pressupostos político-ideológicos, quer no campo pedagógico. A minha experiência de trabalho docente, forjou-se, pois, no contato cotidiano com a perversidade do colonialismo, que discriminava a presença de negros, sempre uma minoria nas escolas, e que impunha programas de ensino completamente desligados da realidade.

    Contudo, é no ano de independência de Moçambique (1975) que terei a possibilidade de iniciar, a outro nível, um processo de trabalho no campo de formação de professores primários. Com efeito, nesse ano, fui chamado a trabalhar no Ministério da Educação e Cultura, tendo desenvolvido atividades durante cinco anos na Comissão de Formação de Quadros, estrutura que tinha por tarefa dirigir a formação inicial e em exercício dos professores do ensino primário (1ª à 4ª classes) em todo o país. Nesse período, foram criados 10 centros de formação de professores primários (um por província), prepararam-se os formadores de professores (instrutores), elaboraram-se os currículos, os programas de ensino, os textos de apoio, selecionaram-se livros didáticos, definiram-se critérios de seleção de alunos, elaborou-se o sistema de avaliação, o regimento do estágio, o regimento interno dos centros de formação de professores primários, definiu-se a articulação com a escola anexa e com a comunidade. Essa fase possibilitou-me que viajasse por todo o país, fornecendo uma visão abrangente da luta que o povo moçambicano travava nas várias frentes, como também me conduziu a um conhecimento mais global do fenômeno educativo e, em particular, da área da formação de professores primários.

    Em 1979, um novo ciclo abre-se, quando fui indicado como diretor provincial de Educação e Cultura de Maputo (província que englobava a capital do país), tarefa que foi desempenhada por um período de cinco anos. O campo de atividade alarga-se, então, substancialmente. Não se tratava, agora, de lidar apenas com a formação de professores primários ao nível de uma província, mas de trabalhar também com o ensino secundário, a alfabetização e educação de adultos, a cultura e a educação física e o esporte. Por outro lado, como membro do governo provincial, participava em inúmeras atividades que me colocavam em contato estreito com outras áreas fora do campo educativo (saúde, finanças, construção, agricultura, comércio interno, transportes e comunicações, indústria).

    Nesse período, intensificou-se a guerra em Moçambique: primeiro, mediante a agressão do regime racista da Rodésia do Sul e, depois, por meio de ação armadas do regime sul-africano. Num contexto de guerra, novos desafios apresentavam-se. Como fazer funcionar a educação e todos os outros setores de atividade econômica e social? Como garantir que a nação que estava emergindo não caísse sob novas tutelas, perdendo uma soberania tão duramente conquistada?

    Toda a sociedade foi mobilizada para enfrentar o inimigo. As ações tendentes a preservar a unidade nacional começaram a ganhar força. Procuravam evitarem-se todos os tipos de divisionismo. Foram desencadeadas campanhas de aumento de produção e de produtividade (emulação socialista), incentivava-se a vigilância popular contra o inimigo agressor. As escolas organizaram-se para esse efeito, e a educação patriótica constituiu-se como um elemento importante do currículo. Ocorreram, então, ainda que de forma difusa, minhas primeiras indagações sobre a natureza das relações entre o fenômeno educativo e a consciência nacional, começando a se desenhar, nesse quadro, a importância que foi reservada ao professor, sobretudo primário, pois me parecia ser ele que estava sendo chamado a desempenhar papel significativo na formação da consciência patriótica das novas gerações, participando ativamente no processo de construção da identidade nacional. Situamos, pois, nessa época, o início do reconhecimento desse diálogo entre a formação de professores primários e identidade nacional, diálogo que não cessou de me inquietar até hoje.

    Em 1984, de novo, fui chamado a trabalhar no Ministério da Educação, onde passei a trabalhar por um período de cinco anos, na Direção Nacional de Formação de Quadros de Educação. Essa estrutura passou a dirigir a administração unitária do Subsistema de Formação de Professores e a formação e aperfeiçoamento dos técnicos de educação. Assistiu-se, nesse período, a uma intensificação sem precedentes, da guerra de agressão movida pelo regime do apartheid¹. Nessa fase, ocorreu uma revisão dos currículos dos cursos de formação de professores primários, e não só por forma a responder às exigências constantes no Sistema Nacional de Educação.

    O trabalho nesses cinco anos permitiu que alargasse ainda mais meus horizontes no campo da Direção da formação de professores (nos seus aspectos políticos, pedagógicos e organizacionais). Aprofundei a realidade do país e realizei visitas de trabalho a alguns países estrangeiros (em África e na Europa). Confrontei-me com diferentes maneiras de pensar a educação. De novo, emergiram reflexões sobre a edificação do homem moçambicano e da sociedade pluricultural em que ele se encontrava inserido. Eram várias as etnias, várias as línguas, em suma, várias culturas num mesmo espaço geográfico chamado Moçambique.

    Todas essas questões acabaram por fazer emergir novos desafios no sentido de definir o que configura a identidade nacional e sua relação com a educação.

    A descrição dessa trajetória no campo profissional, descrição que realizei de forma sintética nas linhas precedentes, procurei mostrar o modo como, ao longo do tempo, fui dialogando e familiarizando-me com os dois campos científicos que irei privilegiar neste trabalho: o da educação, na sua componente específica da formação de professores primários e, o outro, o da História.

    É todo o envolvimento com o processo descrito que me incitou a retornar a esse passado recente, a fazer desfilar perante os meus olhos situações e ações, muitas das quais participei ativamente. Porque disponho, agora, de certa distância no tempo, vejo-me, inúmeras vezes, como que me redescobrindo a mim próprio, a redescobrir o país e seu complexo e fascinante universo cultural. Melhor equipado em instrumental analítico, penso ter chegado o momento de penetrar de forma mais profunda e elaborada nas inúmeras facetas que estão presentes no binômio formação de professores primários/identidade nacional nos primeiros 10 anos de independência de Moçambique.

    O que me faz buscar o passado é sempre uma questão colocada pelo presente. Para onde caminha Moçambique a partir do início da década de 80, quando o recrudescimento da guerra e os Acordos estabelecidos com o FMI e o Banco Mundial desencadeiam a perda de enormes conquistas? Como enfrentar, no campo social, o ressurgimento de antigos divisionismos (de ordem tribal, racial e de gênero) que poderiam pôr em causa o projeto de construção da nação moçambicana? Qual papel cabe à educação e, em particular aos educadores, no quadro que se vem desenhando e que parece levar o país para uma situação de pré-independência?

    Este livro vai, por um lado, procurar cobrir a exiguidade de estudos que abordem essa problemática no caso moçambicano e, por outro, vai tentar oferecer subsídios para aqueles que acreditaram/acreditam na construção de uma sociedade livre, justa e soberana, onde, entre outras coisas, a educação e, em particular, a formação de professores primários, possa, de algum modo, contribuir para a formação da cidadania, sem prejuízo da diversidade cultural presente no tecido social moçambicano.

    Resgatando a memória histórica, estarei procurando valorizar as experiências positivas, ao mesmo tempo em que buscarei evitar que se comentam os mesmos erros. Na perspicaz frase de George Santayana, aquele que não pode recordar-se do passado está condenado a repeti-lo.

    A formação que irei tratar é a formação inicial de professores em cursos realizados nos centros de formação professores primários (CFPPs). Estabelece-se, desde já, que essa formação se limita àquela que se realiza numa instância anterior ao exercício do magistério, instância em que os futuros professores são preparados para esse exercício. Estou, pois, excluindo de minha análise a formação que ocorre no trabalho e pelo trabalho. Estou, igualmente, excluindo as instâncias de aperfeiçoamento/reciclagem que se desenvolvem após o curso que habilita para o magistério e durante o exercício da prática docente. Obviamente, muito do que aqui se tratará, será aplicável a essas instâncias já referidas, mas os limites aqui construídos circundam especificamente aquela, e não essas. A relação que tratarei é a da formação inicial de professores primários com a identidade nacional. Por essa razão, na minha análise, prestarei menor atenção a outros componentes educacionais, que igualmente contribuem para a construção da identidade nacional.

    Em resumo, ao fazer este estudo, não vou ignorar como historicamente emergiu e constituiu-se a questão da identidade nacional, no mundo em geral e em África em particular, e sua articulação com a componente educacional. Ao analisar, contudo, o caso moçambicano, vou procurar priorizar, no campo educativo, a vertente da formação de professores primários. É essa vertente que nos parece vir a desempenhar significativo relevo nos ajustes que o partido e o Estado moçambicano procurarão realizar no sentido de, em face da diversidade cultural, dinamizar a construção da moçambicanidade. A importância do professor primário na edificação da identidade nacional é reconhecida por Roger Chartier:

    [...] em França, Jaques Ozouf (1973) realizou em meados da década de 60, um inquérito pioneiro junto de 20.000 professores primários que tivessem exercido a sua profissão antes de 1914, inquérito que tornou possível que se coligissem 4.000 respostas e que se desenhasse um retrato coletivo das motivações, comportamentos, valores e opiniões deste grupo, decisivo para a formação da identidade nacional. (1990, p. 170, grifos meus).

    Nessa perspectiva, investigarei como, na formulação de políticas de formação de professores primários e na sua implementação, elaborou-se e procurou desenvolver o projeto de construção da identidade nacional na primeira década de independência. Por outras palavras, nossa investigação vai procurar desvendar as complexas relações entre a formação de professores primários e a identidade nacional, num período histórico em que Moçambique emerge como nação e dá os primeiros passos na consolidação de sua independência.

    Por que estudar um período de 10 anos? Ao definirmos o marco cronológico de nossa pesquisa, nos veio à lembrança a afirmação de Paul Lengrand (1970, p. 12): de dez em dez anos os homens são confrontados com um universo físico, intelectual e moral que representa transformações de uma tal amplitude que as antigas interpretações não são mais suficientes.

    Dez anos não representam muito em termos históricos; mas, se levarmos em conta os ritmos revolucionários, os fluxos e refluxos do movimento social, isso é considerável. A necessidade de uma análise aprofundada dos diversos aspectos que configuram a evolução entre educação/formação de professores primários e identidade nacional no jovem Estado parece-me da maior importância no período 1975-1985, por várias razões. Em primeiro lugar, porque me parece ser um período de tempo de razoável amplitude, que pode permitir-me avaliar, com um mínimo de segurança, a problemática em estudo. Em segundo lugar, porque nele ocorreram transformações revolucionárias que afetaram a área política, econômica, social e cultural de forma profunda. Em terceiro lugar, porque, nos finais da década que me propus analisar, ocorreram transformações no campo político, econômico e social que configuram novos rumos para o país, em face da falência do projeto socialista. Com efeito, após 1985, a Frelimo começa a seguir uma política econômica interna acentuadamente liberal e de economia de mercado (código de investimentos estrangeiros, novo sistema de gestão de trocas, questionamento do monopólio estatal do comércio externo, normas capitalistas de gestão para as empresas nacionalizadas, diretores merecedores parcialmente pagos em divisas etc.), encerrando-se, assim, um ciclo que se apresentava com um caráter mais popular e socializante. Essa nova etapa exigirá outros estudos.

    Neste trabalho, mapearei e discutirei a política de formação de professores primários nos primeiros 10 anos de independência de Moçambique e sua articulação com o projeto de construção da identidade nacional. Mais especificamente, procurarei:

    identificar a filosofia que orientava o programa da Frelimo e do Estado moçambicano relativo à identidade nacional;

    identificar quais as orientações da Frelimo e do Estado moçambicano para área de formação de professores primários, com especial relevo para a questão da identidade nacional;

    verificar, no campo da formação de professores primários, como se concretizaram as orientações definidas pela Frelimo e pelo Estado moçambicano, tanto em nível de políticas globais de educação como também em nível do currículo.

    Procurarei trazer elementos que permitam analisar como foram pensados os fatores de unidade e coesão e como o poder político buscou a sua própria legitimação. Tentarei analisar de que modo a formação de professores primários (em particular, por meio dos seus currículos, programas, documentos normativos e relatórios) está indissoluvelmente ligada a finalidades políticas. Procurarei descortinar como são forjados os sistemas de valor que buscavam a edificação da identidade nacional e como esses valores igualmente estavam subordinados a objetivos políticos.

    A que currículo estou me referindo? A noção mais comum é a explicitada por Jean-Claude Forquin (1993, p. 22), segundo a qual o currículo é um conjunto contínuo de situações de aprendizagem às quais um indivíduo se vê exposto ao longo de um dado período, no contexto de uma instituição de educação formal.

    Alguns autores, como R. Dale apontam a existência de diferenças entre a prescrição e intenção do currículo e o que efetivamente resulta de sua execução. A ênfase nessa última concepção está centrada no que objetivamente acontece ao aluno como resultado da escolarização enquanto experiência vivida. Para Ivor Goodson, os conflitos na definição do currículo escrito oferecem uma evidência visível, pública e documentada da luta contínua sobre as aspirações e propósitos da escola (1983 apud SANTOS, 1994,

    p. 162). Apoiando-se em Goodson, Lucíola Santos esclarece que

    [...] o currículo escrito mostra os interesses e influências que atuam no nível das formulações das políticas educacionais e, além disso, ele estabelece parâmetros para a realização da prática pedagógica. No entanto, é importante considerar que existe uma diferença entre o currículo formal (escrito) e o currículo real (prática de sala de aula). Isto leva à necessidade de pesquisa nos dois níveis, para uma análise mais apurada sobre o desenvolvimento de uma disciplina (1994, p. 162).

    Meu estudo sobre o currículo insere-se nas posições defendidas por Ivor Goodson e Lucíola Santos. Minha pesquisa vai situar-se no campo de análise bibliográfica e documental. A razão desse fato prendeu-se com a impossibilidade de ter ido e permanecido em Moçambique por um período suficientemente longo, que tivesse permitido recorrer a outros métodos de pesquisa, como a entrevista e os inquéritos, ou pelo menos a possibilidade de utilizá-los em termos de complementação.

    Meu terreno foi o estudo de documentos e a análise de conteúdo. Esta última é uma técnica de investigação que permite fazer inferências, válidas e replicáveis, dos dados para o seu contexto (KRIPPENDORF, 1980 apud VALA, 1987, p. 103). Por meio da inferência, estaremos no campo da interpretação, procurando atribuir sentido às características do material que foram levantados, enumerados e organizados. Trata-se da

    [...] desmontagem de um discurso e da produção de um novo discurso através de um processo de localização-atribuição de traços de significação, resultando de uma relação dinâmica entre as condições de produção do discurso a analisar e as condições de produção da análise. (VALA, 1987, p. 104).

    O estudo da problemática formação de professores primários e identidade nacional implicou tomar em consideração várias questões teórico-metodológicas.

    O primeiro passo consistiu em selecionar bibliografia e em caracterizar o tipo de documento que pretendia usar ou selecionar.

    Ludke e André consideram que os documentos podem ser classificados como do tipo oficial, do tipo técnico ou do tipo pessoal (1986,

    p. 40). Utilizamos fundamentalmente documentos oficiais, como decretos, circulares, discursos de dirigentes estatais, dados estatísticos. Quanto aos documentos de tipo técnico, usamos relatórios, currículos, programas, documentos normativos, planos de atividade, entre outros.

    Esta pesquisa foi realizada a partir do levantamento do maior número possível de livros e artigos, sobre a minha temática, publicados em língua inglesa, francesa, espanhola e portuguesa, disponíveis nas bibliotecas da Universidade Federal de Minas Gerais, Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Cândido Mendes no Rio de Janeiro, Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral (Cidac) em Lisboa, Centro de Estudos Africanos da Universidade Nova em Lisboa e ainda as seguintes instituições em Moçambique: Ministério da Educação, Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, Instituto Superior Pedagógico, Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação, Ministério da Cultura e Juventude, Arquivo Histórico de Moçambique, Arquivo do Patrimônio Cultural, Centro Nacional de Documentação e Informação de Moçambique (Cedimo), Biblioteca Nacional de Moçambique, Centro de Formação de Professores Primários de Namaacha.

    Os documentos foram trabalhados a partir da coleta feita em arquivos oficiais e escolares de Moçambique, referenciados no parágrafo anterior. Além disso, procurei também obter informações com professores especialistas nesse campo de estudo em Moçambique, Brasil e Portugal.

    Com o levantamento feito, obtive referências analíticas necessárias à compreensão da gênese e à evolução do processo de edificação da identidade nacional, particularmente no caso moçambicano.

    Para a organização dos dados, fiz uma leitura inicial do material. Posteriormente, numa segunda leitura, identifiquei temas mais frequentes. Essa primeira fase foi um processo essencialmente indutivo que culminou na construção de categorias ou tipologias. Importa esclarecer que o conceito de categoria a que me referi é o utilizado por Vala baseado em Hogenraad. Para ele, categoria:

    [...] é um certo número de sinais da linguagem que representam uma variável na teoria do analista. Neste sentido, uma categoria é habitualmente composta por um termo-chave que indica a significação central do conceito que se quer apreender, e de outros indicadores que descrevem o campo semântico do conceito. (HOGENRAAD, 1984 apud VALA, 1987, p. 110-111).

    O material foi reorganizado e analisado em função das categorias, tendo procurado estabelecer também uma relação entre elas.

    Procurei, igualmente, trabalhar com as dimensões históricas, políticas, econômicas e sociais, no sentido de verificar como elas interagiam com o sistema educativo. Foi meu propósito, também, verificar como o diálogo entre a educação/ formação de professores primários e a identidade nacional apresentado pela literatura no campo, foi interpretado e (ou) recriado na realidade moçambicana.

    Parti para esta pesquisa inspirado pela arguta observação de Philippe Perrenoud, para quem:

    [...] a investigação significa vontade de compreender, de elucidar, de descobrir mecanismos ocultos, causas, interdependências; trabalho aberto e criativo, de resultado incerto; mistério estimulante, aventura intelectual; invenção ou adaptação de métodos de observação e de análise; resolução de conflitos cognitivos. (1992, p. 121).

    À guisa de parênteses

    Herdeira do cristianismo, que inventou o exame de consciência, a Modernidade inventou a crítica. Esse é um dos traços que nos distingue de outras épocas; nem a Antiguidade nem a Idade Média praticaram a crítica com a paixão da modernidade: crítica dos outros e de nós próprios,

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