Contos selecionados de José Ribamar Garcia
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Sobre este e-book
José Ribamar Garcia
Nasceu em Teresina, Piauí. Inserido no contexto literário e preocupado com o curso que este País toma a cada dia, ele jogou todas as suas fichas em uma obra que traduz sem pudor muito do que está gravado em suas páginas. Filhos da Mãe Gentil é o seu décimo livro. Ribamar mora no Rio de Janeiro, é casado e pai de quatro filhos.
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Contos selecionados de José Ribamar Garcia - José Ribamar Garcia
Copyright desta edição © 2017 by José Ribamar Garcia
Direitos em Língua Portuguesa reservados a Litteris Editora.
ISBN - 978-85-374-0437-9 (2019)
ISBN - 978-85-374-0359-4 (versão impressa)
Conversão: Cevolela Editions
440Litteris Editora Ltda.
Av. Marechal Floriano, 143 - Sl. 805 - Centro | 20080-005 Rio de Janeiro - RJ
tel (21) 2223-0030; (21) 2263-3141
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www.litteris.com.br
Sumário
CAPA
O COTISTA, SUAS RECORRÊNCIAS E VARIANTES TEMÁTICO-FORMAIS
O CORONEL
CAVALO DO CÃO
DEPOIS DA FESTA
O LAÇADOR
MARATONA INTELECTUAL
CALMA, JORGE
ARRE, DIACHO!
O LATINISTA
NO EMBALO DA MAROLA
O VELHO E O CHEQUE
BIDU
PRA ONDE VÃO OS CIGANOS?
VIOLEIRO INVISÍVEL
O ROTEIRISTA
O CURANDEIRO DE PACOBAYBA
DIRETO NA FONTE
O HOMEM É LOUCO
O MAROMBEIRO
MISSIVAS DA PERFÍDIA
MEMORARE
O BUROCRATA
AS MOEDAS DE SEVERINO
BOLA NA CAÇAPA
A PRIMA
O PRÊMIO
FORA DO EIXO
RELÍQUIA
MORREU BONITO
POÇO DE QUERENÇA
NO MORRO DA PRAIA BRAVA
O JUSTICEIRO
NA TOADA DO ANTES
QUE NEM GALO
O DIABO LOURO
SOVINA, BROCHANTE E
A POTIGUAR PORRETA
O DOUTOR
MOMBAÇA
DONA SÔNIA E A CLÍNICA
VIESSEM OS ABUTRES
MIRAGEM ETÍLICA
A CONFIDENTE
ENTRE OS ABUTRES
LERO LERO NO GALETO
BIBLIOGRAFIA
BIBLIOGRAFIA DE JOSÉ RIBAMAR GARCIA
BIBLIOGRAFIA SOBRE JOSÉ RIBAMAR GARCIA
CUNHA E SILVA FILHO
NOTAS
O CONTISTA, SUAS RECORRÊNCIAS
E VARIANTES TEMÁTICO-FORMAIS
[...] On its surface it [the short story] may portray a single situation, but in its depths it can comment upon universal issues.
Richard Kostelanetz, Short story theories, 214-225
O presente volume é uma seleção de alguns dos melhores contos de José Ribamar Garcia, escritor piauiense radicado no Rio de Janeiro, tendo como maior recorte do espaço físico e humano a vida urbana carioca, notadamente das camadas mais baixas da sociedade. O resultado de uma reunião de narrativa curtas, como quase sempre ocorre em trabalho dessa natureza, não deixa de ter o sinete idiossincrático de quem prepara uma coletânea.
No obstante essa ressalva, é por elas que o leitor bem pode avaliar o nível literário dos contos, mas também sua capacidade de criar situações diversificadas com personagens que palpitam de vida e sentimentos, que nos provocam catarse, sentido de cumplicidade, ironia, indignação e um prazer de um saudável humorismo muito bem dosado que atinge em cheio a sensibilidade e a atenção dos leitores. Ninguém sai ileso de alguma reação que o texto sintético, dinâmico, enxuto e másculo de Ribamar Garcia provoca na consciência crítica e afetiva do leitor.
O leitor atento observará que, com o tempo, o ficcionista lhe vai dando evidências de crescimento no domínio da arte narrativa. É óbvio que, da parte do ficcionista, o zelo, o cuidado, a ânsia de se superar ao longo do tempo, foram, a meu ver, os fatores determinantes a fim de que alcançasse uma condição de apreciável ficcionista, bem aceito pela crítica e pelos leitores. Sua repercussão há muito ultrapassou os limites do Piauí. Basta ver a sua fortuna crítica que só tem crescido com o tempo, posto que sem contar com todo o apoio logístico-publicitário das grandes editoras.
José Ribamar Garcia estreou na literatura em 1981, com um pequeno livro de crônicas de recorte memorialístico, Imagens da Cidade Verde, um roteiro sentimental-histórico-cultural de Teresina. Em 2001, pela Editora Litteris, que passou a publicar praticamente toda a sua obra literária, teve uma segunda edição ampliada e melhorada, seguida de uma terceira edição e terceira reimpressão ainda mais aperfeiçoada.
Essa obra abriu-lhe as portas do sucesso, sendo bem aplaudida pela crítica local. Depois, escreveu seu primeiro livro de contos, Cavaleiros da noite, de 1984. Outros livros de contos, crônicas e romances vieram a lume posteriormente. Todos bem aceitos pela crítica e leitores.
Seu primeiro romance, Em preto e branco, ambientado no Rio de Janeiro tendo como pano de fundo o período cinzento da ditadura militar de 1964, agora na segunda edição e primeira reimpressão, foi outro sucesso de venda e de crítica. Contudo, seu melhor romance, no meu juízo, foi Filhos da mãe gentil, de 2011. Esta obra valeu-lhe várias resenhas elogiosas e estudos críticos em profundidade, como o que lhe destinou o ensaísta Carlos Evandro Martins Eulálio.1
A ficção de Ribamar Garcia se divide em duas grandes vertentes: a regional e a urbana com histórias passadas no Piauí e sua capital, Teresina, e a urbana da grande metrópole carioca, do interior fluminense e, por vezes, de outra cidade fora do Rio de Janeiro.
Numa e noutra vertente Ribamar Garcia me parece ter logrado o mesmo nível de qualidade ficcional, o que prova que não é o regionalismo ou a condição de romance urbano que tornam um escritor maior ou menor. Na história literária da ficção brasileira o exemplo do romance Eurídice (1947) de José Lins do Rego (1901-1957), comparado aos grandes romances do autor de Fogo morto (1943), revelou-se, segundo o crítico Álvaro Lins (1911-1970), uma obra de qualidade inferior não por ser ambientado no Rio de Janeiro, mas pelo fato de ter o ficcionista paraibano falhado na sua construção. Tanto assim que Lins do Rego havia escrito Água-Mãe (1941) passado em Cabo Frio e havia escrito Moleque Ricardo (1935) no cenário do Recife. No entanto, para Lins, foram duas importantes obras ficcionais.2
Ao pintar a paisagem natural e urbana piauiense, fácil é constatar a força narrativa de Ribamar Garcia à qual não faltam a riqueza de referências a tipos de moradias, descrições precisas de gente e lugares reais, anotações pitorescas do folclore, incluindo, no âmbito da linguagem, adágios, canções populares, frases sentenciosas, mitos, assombrações etc. Descrevendo a natureza áspera e ao mesmo tempo pitoresca do Piauí, muitas vezes serve-se de uma prosa de traços líricos, seja pelo apurado uso da linguagem, fluente, objetiva, de forte teor de oralidade.
Tais virtudes no uso da linguagem literária pelo autor se deve também ao profundo conhecimento que revela o ficcionista da natureza da linguagem local, dos costumes e hábitos, da flora e fauna da população piauiense. Ribamar Garcia tem no uso da linguagem e da técnica narrativa não só a intuição tão fundamental ao escritor, mas o interesse nas estratégias de compor sua trama, de dar sopro de vida a seus personagens e, por conseguinte, autenticidade psicológica, adequação da linguagem ao estrato social do personagem. Não cria marionetes, cria personagens de ficção e isso já é por si só um componente relevante da narrativa.
Garcia, em comparação com outros ficcionistas de sua época, pertence à geração de escritores dos anos 1980. Antonio Candido, em notável e sintético ensaio, A Nova Narrativa,
no qual, além de tecer comentários sobre autores latino-americanos nas suas relações temáticas e formais com os ficcionistas brasileiros, analisou a condição artística do autor nacional, sobretudo do que se poderia denominar a nova literatura brasileira – um breve e instigante afresco, no qual Candido refaz o percurso das condições sociais e históricas, acentuando ainda alguns traços semelhantes da literatura latino-americana em comparação com a brasileira, enfatizando ainda o fato de que não somente as literaturas de língua espanhola, mas também a de língua portuguesa, a brasileira, sofreram as influências das metrópoles europeias tanto quanto, mais tarde, da cultura norte-americana.
Por nova literatura, Candido deseja reportar-se à produção literária brasileira que deu continuidade à eclosão do Modernismo de 1922, quer pelo seu prolongamento, quer pela sua inovação tendo como marcos as décadas de 1930 e 1940. Daí em diante, a nova narrativa iria encontrar um período de mais decisivas inovações tanto na temática quanto na modernização da linguagem que os últimos anos só têm confirmado e radicalizado³. Convém explicitar aqui que o ensaio de Candido data do final dos anos 1970.
O mencionado ensaio - fruto de uma comunicação sobre ficção latino-americana, lida, em 1979, por Roberto Schwarz no Woodrow Wilson Center for Scholars, Washington, aborda temas e formas de linguagens que decisivamente contribuíram para uma renovação da ficção brasileira. Uma citação do ensaio de Candido ilustra bem o perfil literário dos escritores da época, e bem assim não perderia sua atualidade para as gerações posteriores, inclusive para o período de atividade literária do contista Ribamar Garcia.
O esforço do escritor atual é inverso. Ele deseja apagar as distâncias sociais, identificando-se com a matéria popular. Por isso usa a primeira pessoa como recurso para confundir autor e personagem, adotando uma espécie de discurso direto permanente e desconvencionalizado, que permite fusão maior que a do indireto livre. Esta abdicação estilística é um traço de maior importância na atual ficção brasileira (e com certeza também em outras)
4.
Garcia, naturalmente, sofreria influências ainda que contra sua vontade porque ninguém, no plano artístico, se libertaria completamente da sua contemporaneidade e até da própria tradição literária. As preferências, por autores, segundo ele próprio me confidenciou, seriam, entre outros, Lima Barreto (1881-1922) Antônio Fraga (1915-1993), Ernest Hemingway (1898-1961). Entretanto, ainda, segundo o contista, ele mais vê nessa questão de influências, apenas identidades temáticas.
Para o crítico, entretanto, o campo de visão e de atuação é outro, assim como são de outra natureza a análise e o julgamento de obras.
A seleção dos contos de Garcia, que têm como matéria-prima de sua ficção o Rio de Janeiro, a vida carioca urbana e suburbana, segundo assinalei no início deste estudo, apresenta recorrências e variantes quanto à temática e avanço estético quanto à linguagem e a alguns aspectos formais da narrativa. É desse trinômio que se vão desentranhar a sua capacidade criativa e as ideias
emergidas de suas histórias. Numa visão breve, mas abrangente, ver-se-á como se comportam e se sustentam literariamente.
Quase todos os contos desta seleção são de extensão pequena, no máximo quatro páginas, enquanto outros dão seu recado em duas páginas ou até numa página, tornando-os literalmente short stories. Por esta dimensão, o leitor logo se dá como satisfeito ou não, conforme as preferências individuais do receptor. Por outras palavras, Garcia é um autor que não entedia o leitor. Suas narrativas, iniciadas geralmente in medias res, atingem o clímax quando menos se espera e o epílogo se mostra ora explícito, ora deixa em dúvida o leitor, espicaçando-lhe a curiosidade quanto à sorte dos personagens principais envolvidos na trama. Quer dizer, o epílogo, então, exige reflexão e coparticipação do leitor para ser elucidado ou não. Não seria isso uma forma de emulação da mímese com a própria realidade referencial ou empírica sem com isso confundir-se com ela como cópia servil?
Temas recorrentes e variados têm sido explorados pelo autor com seu estilo de economia de palavras, no afã perfeccionista, de afirmar o todo pelo mínimo. E o mínimo mesmo, haja vista aquele conto, de título Fora do eixo,
do seu mais recente livro de contos, Leveza, só da brisa5
de quase meia página, que faz parte destes contos ora coligidos.
O caráter social de grande parte de seus contos, conforme igualmente assinalei no início deste estudo, salta à vista do leitor: é o homem simples urbano ou suburbano, com algumas exceções para categorias mais elevadas. Pertence à galeria de seus personagens taxistas, faxineiras, policial civil, recrutas, indivíduos iletrados, parte do lúmpen-proletariado, motoristas de ônibus, funcionários públicos, profissionais improvisados (como o personagem-narrador em primeira pessoa no conto O roteirista,
do livro Ao lado do Velho Monge, empregados de empresas particulares em funções subalternas, malandros com traços pícaros, traficantes, favelados, estelionatários, vigaristas, vendedores de livros, desequilibrados mentais, boxeadores, homossexuais, falsos professores, médicos inescrupulosos, empresários desonestos, policial militar, gente de profissão indefinida. Nos seus contos seus personagens mais bafejados pela sorte não vão além da classe média, jamais pertencem à elite econômica. O próprio autor, certa vez, em conversa, me confidenciou: Como vou escrever histórias sobre um espaço humano-social que não conheço bem?
Este amplo espectro de figuras humanas é que dará configuração aos elementos da narrativa no que diz respeito à combinação deles com os temas e os enredos de que constituirão as narrativas de Garcia. A eles também se agregarão outros componentes decisivos: o tipo de técnica usada na elaboração dos contos e seu elemento propulsor e inarredável, i.e., a linguagem literária. Da unidade conseguida, em maior ou menor grau, resultará o sucesso ou fracasso do autor.
É natural num autor que do conjunto de sua produção nem tudo são mil maravilhas. Uma obra grandiosa não aparece todo dia. Mas de médios, bons e até ótimos contos se construiu com o tempo a produção de Garcia.
Garcia surge no conto após um período fértil desse gênero marcado pela repressão do regime militar brasileiro que tantos autores deu, contraditoriamente, num clima político de alta censura. Falou-se até em boom do conto brasileiro nas décadas de 1960 e 1970,⁶ nas quais se destacavam nomes já conhecidos e despontavam novos autores, como Rubem Fonseca, Samuel Rawet (1929-1984), José Edson Gomes, Wander Piroli (1931-2006), J.J. Veiga (1915-1999), Moacyr Scliar (1937-2011), Hélio Pólvora (1928-2015), também crítico literário, João Antônio (1936-1996), Garcia de Paiva, Manoel Lobato, Ricardo Ramos (1929-1992), Ivan Ângelo, entre muitos outros.
No que concerne aos temas presentes na produção ficcional de Garcia, releva notar a natureza quase sempre adversa dos seus personagens em relação com o seu trabalho e precariedades existenciais. Por sinal, nesta questão temática, vale acentuar um dado pertinente na composição de alguns personagens de Garcia: o lado existencialista com que alguns personagens mais letrados conduzem as suas vidas.
Basta dizer que, salvo engano, Deus está ausente na literatura de Garcia, embora temas de ordem sobrenatural ou de cunho fantástico se possam identificar em sua ficção. O universo de sua ficção geralmente não