Cancioneiro
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Sobre este e-book
Pessoa, o poeta que foi muitos, aparentemente quis guardar um espaço em sua vasta obra para os seus próprios poemas, isto é, poemas não ditados por heternônimo algum.
Apesar do título, entretanto, nem todos os poemas desta edição se parecem com canções - de fato, a minoria. Temos alguns picos onde os sentimentos carregados pela poesia se unem a um ritmo praticamente musical, como em 'Autopsicografia', mas mesmo nestes casos o sentimento, nalgum canto do grande abismo que revela a própria alma, ainda fala mais alto do que a mera sonoridade da rima. Pessoa nos trouxe, portanto, canções para serem cantadas em silêncio!
E se há muitos que já se afastaram desta compilação por haver sido rotulada de esotérica, mística, hermética, nos dias de hoje os amantes de Pessoa são cada vez mais atraídos por ela pelos exatos mesmos atributos.
Há muitos especialistas que já tentaram explicar o misticismo de Pessoa. Eu não tenho nada contra eles, mas prefiro me abster da vã tentativa de tentar explicar sentimentos transcendentes com palavras. Palavras são somente cascas de sentimentos, e as cascas dos sentimentos mais elevados, transcendentes, são translúcidas, quase intangíveis, de coloração indizível.
Entre as palavras e a poesia, entre o cântico e o sentimento, entre o mundo lá fora e quem quer que o contemple aqui dentro, corre um rio, um rio sem fim...
O editor.
***
[número de páginas]
Equivalente a aproximadamente 176 págs. de um livro impresso (tamanho A5).
[sumário, com índice ativo]
- Introdução
- Sinais usados na transcrição do texto
- Nota preliminar
- Cancioneiro
- Epílogo
- Apêndice
- Agradecimentos finais
[ uma edição Textos para Reflexão distribuída em parceria com a Bibliomundi - saiba mais em raph.com.br/tpr ]
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa, one of the founders of modernism, was born in Lisbon in 1888. He grew up in Durban, South Africa, where his stepfather was Portuguese consul. He returned to Lisbon in 1905 and worked as a clerk in an import-export company until his death in 1935. Most of Pessoa's writing was not published during his lifetime; The Book of Disquiet first came out in Portugal in 1982. Since its first publication, it has been hailed as a classic.
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Cancioneiro - Fernando Pessoa
Introdução
O ser humano sempre cantou. Cânticos sobre o amor, a amizade, Deus e os infortúnios da vida ecoam pelos campos e vilarejos desde quando o mundo era feito de campos e vilarejos, mas foi somente a partir do final do século XIII que as cantigas foram copiadas e colecionadas em manuscritos chamados cancioneiros
. Muitos dos cancioneiros da época são coletâneas de lirismo trovadoresco galaico-português.
Segundo Maria Aliete Galhoz, que já editou e prefaciou os poemas de Cancioneiro para a editora Nova Aguillar, "a ideia de Fernando Pessoa de subordinar parte ou quase toda a sua obra ortônima portuguesa – exceção feita da de feição místico-nacionalista – ao título geral de Cancioneiro aparece como a mais persistente nos seus muitos e não realizados ou incompletos projetos de criação e publicação".
Pessoa, o poeta que foi muitos, aparentemente quis guardar um espaço em sua vasta obra para os seus próprios poemas, isto é, poemas não ditados por heternônimo algum.
Apesar do título, entretanto, nem todos os poemas desta edição se parecem com canções – de fato, a minoria. Temos alguns picos onde os sentimentos carregados pela poesia se unem a um ritmo praticamente musical, como em Autopsicografia, mas mesmo nestes casos o sentimento, nalgum canto do grande abismo que revela a própria alma, ainda fala mais alto do que a mera sonoridade da rima. Pessoa nos trouxe, portanto, canções para serem cantadas em silêncio!
E se há muitos que já se afastaram desta compilação por haver sido rotulada de esotérica, mística, hermética, nos dias de hoje os amantes de Pessoa são cada vez mais atraídos por ela pelos exatos mesmos atributos.
Há muitos especialistas que já tentaram explicar o misticismo de Pessoa. Eu não tenho nada contra eles, mas prefiro me abster da vã tentativa de tentar explicar sentimentos transcendentes com palavras. Palavras são somente cascas de sentimentos, e as cascas dos sentimentos mais elevados, transcendentes, são translúcidas, quase intangíveis, de coloração indizível.
Entre as palavras e a poesia, entre o cântico e o sentimento, entre o mundo lá fora e quem quer que o contemple aqui dentro, corre um rio, um rio sem fim...
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Ricardo Reis
Quem foi Fernando Pessoa?
Quero crer que a maioria de vocês já faz ideia, então se seguirá somente um breve resumo:
Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 13 de Junho de 1888 — Lisboa, 30 de Novembro de 1935), mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta, filósofo e escritor português.
É considerado um dos maiores poetas da Língua Portuguesa, e da Literatura Universal, muitas vezes comparado com Luís de Camões. O crítico literário Harold Bloom considerou a sua obra um legado da língua portuguesa ao mundo
(em entrevista a revista Época, 03/02/03).
Por ter sido educado na África do Sul, para onde foi aos seis anos em virtude do casamento de sua mãe, Pessoa aprendeu perfeitamente o inglês, língua em que escreveu poesia e prosa desde a adolescência. Das quatro obras que publicou em vida, três são na língua inglesa. Fernando Pessoa traduziu várias obras inglesas para português e obras portuguesas para inglês.
Ao longo da vida trabalhou em várias firmas comerciais de Lisboa como correspondente de língua inglesa e francesa. Foi também empresário, editor, crítico literário, jornalista, comentador político, tradutor, inventor, publicitário, astrólogo e místico; ao mesmo tempo em que produzia a sua obra literária em verso e em prosa. Como poeta, desdobrou-se em múltiplas personalidades conhecidas como heterônimos, objeto da maior parte dos estudos sobre sua vida e sua obra:
"Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica, compreendidos por dentro de suas almas. Não tinha eu mais que cinco anos, e, criança isolada e não desejando senão assim estar, já me acompanhavam algumas figuras de meus sonhos – um capitão Thibeaut, um Chevalier de Pás – e outros que já me esqueceram, e cujo esquecimento, como a imperfeita lembrança daqueles, é uma das grandes saudades da minha vida.
[...] Esta tendência não passou com a infância, desenvolveu-se na adolescência, radicou-se como crescimento dela, tornou-se finalmente a forma natural de meu espírito. Hoje já não tenho personalidade: quanto em mim haja de humano, eu o dividi entre os autores vários de cuja obra sou o executor. Sou hoje o ponto de reunião de uma pequena humanidade só minha.
[...] Médium, assim, de mim mesmo, todavia subsisto. Sou porém menos real que os outros, menos coeso, menos pessoa, eminentemente influenciável por eles todos".
Carta ao casal Monteiro (trechos), Fernando Pessoa
Sinais usados na transcrição do texto
Pessoa publicou pouquíssimos livros em vida e, conforme quase toda a sua vasta obra se encontra em cadernos escritos a mão, por vazes há dúvidas na transcrição do texto.
(...) espaço em branco no original, ou texto em esboço
[?] leitura duvidosa
[...] texto ilegível (ou omitido)
[abc] texto conjeturado ou acrescentado
Nota preliminar
[1]
Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência dum estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
[2]
Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E – mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem – pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser Há sol nos meus pensamentos
, ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
[3]
Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva – e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma – é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que na ausência da amada o sol não brilha
, e outras coisas assim.
De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma interseção de duas paisagens. Tem de ser duas paisagens, mas pode ser – não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem – que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento)