Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Fernando Pessoa — Fragmentos De Uma Autobiografia
Fernando Pessoa — Fragmentos De Uma Autobiografia
Fernando Pessoa — Fragmentos De Uma Autobiografia
E-book447 páginas6 horas

Fernando Pessoa — Fragmentos De Uma Autobiografia

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

“A obra de Vicente Freitas, intitulada “Fernando Pessoa: fragmentos de uma autobiografia” traz em suas páginas uma reflexão crítica bem fundamentada, pela qual adentramos no universo da subjetividade do Autor do Livro do Desassossego. A abordagem da obra se dá através de um exame textual no qual o escritor brasileiro apresenta e explicita as diversas formas e os vários autores a quem se atribui igualmente o Livro do Desassossego. Vicente Guedes, Barão de Teive e Bernardo Soares são elencados como os desassossegados possíveis autores dos diários íntimos que constituem as anotações esparsas do Livro. Em sendo assim, o leitor percebe imediatamente que está diante de uma obra densa e complexa, produzida com o estilo pessoal e a pesquisa criteriosa que caracterizam os textos de Vicente Freitas. Parabenizamos o Autor pela originalidade da obra publicada, ao mesmo tempo que elogiamos sua iniciativa de propor uma nova ordem de leitura e novas conexões para o Livro do Desassossego”. Zilda de Oliveira Freitas
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de jun. de 2017
Fernando Pessoa — Fragmentos De Uma Autobiografia

Leia mais títulos de Vicente Freitas

Relacionado a Fernando Pessoa — Fragmentos De Uma Autobiografia

Ebooks relacionados

Biografia e memórias para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Fernando Pessoa — Fragmentos De Uma Autobiografia

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Fernando Pessoa — Fragmentos De Uma Autobiografia - Vicente Freitas

    Image 1

    V I C E N T E F R E I T A S

    Fernando Pessoa

    FRAGMENTOS DE UMA

    AUTOBIOGRAFIA

    Fernando Pessoa — fragmentos de uma autobiografia Copyright © 2017 by Vicente Freitas Araujo Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e

    estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão

    do detentor do copirraite.

    Normalização de texto, revisão vernacular

    e diagramação: Vicente Freitas

    Capa: Vicente Freitas

    Contato:

    vincentfreitas@yahoo.com.br

    Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Freitas, Vicente

    Fernando Pessoa — fragmentos de uma autobiografia / Vicente Freitas Araújo. — 2017.

    ISBN: 978-85-916141-3-4

    1.Pessoa, Fernando, 1888-1935. 2. Poetas portugueses — Crítica e interpretação.

    17-04110 CDD: 869.87

    Índice para catálogo sistemático

    1. Pessoa, Fernando, 1888-1935: Prosa: Literatura portuguesa 869.87

    ―Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me compreenda, os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado‖.

    Fernando Pessoa — L. do d.

    Image 2

    Fernando Pessoa, caricaturado por Vicente Freitas

    S U M Á R I O

    INTRODUÇÃO

    FERNANDO PESSOA – FRAGMENTOS DE

    UMA AUTOBIOGRAFIA

    PREFÁCIO DE FERNANDO PESSOA

    AUTOBIOGRAFIA SEM FACTOS

    OS GRANDES TRECHOS

    APÊNDICES

    NOTAS E CARTAS

    Para Mariazinha,

    que me iniciou no Livro do Desassossego

    UMA TARDE NO CHIADO

    tu, que viveste sempre sozinho

    e que hoje todos querem abraçar

    como foi árduo, longo o caminho

    de homem em pedra se transformar

    quando almoçavas, lá no Martinho,

    ou quando, à tarde, aqui ficavas

    olhando o nada, sempre sozinho,

    será que isto profetizavas?

    e quando o papel garatujavas,

    vendo morrer, todos os dias,

    o sol, será que antecipavas

    tantos abraços, fotografias?

    tu que, obscuro, te recolhias,

    à noite, só, onde moravas,

    ao teu quartinho, talvez ririas

    deste futuro que almejavas?

    porque, afinal, a fama e a glória

    a ti vieram, como ao Caolho,

    quando já tinhas virado História...

    gotas de água correm em meu olho

    ―és o maior!‖ grita a estudante

    e beija o bronze vem a turista,

    te dá a mão, e neste instante,

    ao ver tal cena, meu olho pisca

    e põe um gaiato na tua mão

    uma latinha de ―red bull‖,

    enquanto a turma faz ovação...

    e eu olho, ao longe, para o azul...

    e vem agora esta estrangeira,

    senta-te ao colo, toda sorrisos

    como ela é bela, como é fagueira,

    com meus botões confraternizo

    todos te querem, homens, crianças,

    velhos e velhas, jovens, mulheres

    ah, as mulheres... e tu não cansas,

    mas será mesmo que tu as queres?

    valeu a pena? quem sabe, ao lado,

    o Outro, o Caolho, possa dizer;

    que, além de tudo, foi bom soldado,

    e igual a ti, sofrer, sofrer

    tu, que morreste, no hospital,

    como viveste, sempre sozinho;

    por companhia, teu Ideal,

    lápis, papel, copos de vinho

    e agonizando, como na vida,

    sempre sozinho, à beira-mágoa...

    quão grande, funda, tua ferida!

    meus olhos ficam cheios de água

    DIMAS CARVALHO

    INTRODUÇÃO

    A OBRA de Vicente Freitas, intitulada ― Fernando Pessoa

    fragmentos de uma autobiografia‖ traz em suas páginas uma reflexão crítica bem fundamentada, pela qual adentramos no universo da subjetividade do Autor do Livro do Desassossego, que formou com Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros a tríade mais significativa do Grupo Orpheu. A abordagem da obra se dá através de um exame textual no qual o escritor brasileiro apresenta e explicita as diversas formas e os vários autores a quem se atribui igualmente o Livro do Desassossego. Vicente Guedes, Barão de Teive e Bernardo Soares são elencados como os desassossegados possíveis autores dos diários íntimos que constituem as anotações esparsas do Livro. Em sendo assim, o leitor percebe imediatamente que está diante de uma obra densa e complexa, produzida com o estilo pessoal e a pesquisa criterio-sa que caracterizam os textos de Vicente Freitas. A mim coube a alegria e a responsabilidade de dialogar com o Autor, na análise caleidoscópica dos escritos intervalares, subterrâneos e abstrusos do semi-heterônimo de Fernando Pessoa.

    1. O discurso decadentista-simbolista em Bernardo Soares e Mário de Sá-Carneiro: a melancolia de sujeitos poéticos em derivação labiríntica

    À guisa de contribuição às perfeitas investigações de Vicente Freitas a respeito da produção literária pessoana, incluímos o decadentismo-simbolista das obras de Mário de Sá-Carneiro. Partimos do princípio de que, segundo Bernardo Soares, ―há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o

    que exprime o que sobrou do que teve‖(PESSOA, F., 2011a: 232). Em nossa opinião, Bernardo Soares pertence à segunda categoria, pois há em sua prosa uma melancolia1 que assemelha seus textos, muitas vezes, à produção literária de Mário de Sá-Carneiro. Como sabemos, era este último poeta, contista, nove-lista e dramaturgo modernista lusitano. Por seu lado, Bernardo Soares escreveu poemas2 e o diário íntimo pelo qual é mais conhecido, o Livro do desassossego.

    No texto em que lamenta a morte do amigo Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa escreve que ―Génio na arte, não teve Sá-Carneiro nem alegria nem felicidade na vida. Só a arte, que fez e que sentiu, por instantes o turbou de consolação‖ (PESSOA, F. In: SÁ-CARNEIRO, M., 1995:12). Parece-nos igualmente que a vida — ficcional, bem entendido — de Bernardo Soares era semelhante à sá-carneiriana, como um trapo de roupas esquecido à janela3. No poema dedicado ao falecido amigo, Fernando Pessoa recorda a sintonia entre eles, em versos enluta-dos como este: ―Hoje, falho de ti, sou dois a sós‖ ( Ibid., 13).

    1 Aqui compreendemos melancolia como uma alteração do estado de ânimo, com agra-vamento do desejo de isolar-se, diminuição da autoestima e culminância em delírio punitivo de autoexílio. Enfim, um entristecimento que, se for permanente, pode causar depressão profunda e tendências suicidas. Leia-se ―Melancolia e Saudade‖, de Eduardo Lourenço na obra Mitologia da Saudade. (LOURENÇO, E. 1999: 16-30.) 2 Embora neles Fernando Pessoa não encontrasse qualidades... Ao tecer comentários sobre seu semi-heterônimo, segundo Richard Zenith, ―No fim do currículo, Pessoa escreve: ‗Soares não é poeta. Na sua poesia é imperfeito e sem a continuidade que tem na prosa; os seus versos são o lixo da sua prosa, aparas do que escreve a valer‘. É difícil evitar a conclusão de que Pessoa, nesse momento da sua carreira, nutria dúvidas quanto ao interesse dos poemas retroativamente atribuídos a Soares, uma vez que classifica os versos deste como ‗lixo‘‖. (ZENITH, Richard. In: PESSOA, F., 2012: 101.)

    3 Remetemos ao fragmento seguinte do Livro do desassossego: " Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E, quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamente‖. (SOARES, B. 1982b: 172.)

    A melancolia perceptível na obra de Mário de Sá-Carneiro e Bernardo Soares, surge com frequência no texto pessoano, escritos em sua última década de vida, justamente quando se dedicava mais ao término [sempre adiado] do Livro do desassossego. Segundo Richard Zenith, ―Tendo Ricardo Reis parado de evoluir [...] e Alberto Caeiro [...] cessado de escrever em 1930, Pessoa insuflou então nova vida no Livro do desassossego (ZENITH, R. In: PESSOA, F., 2011a: 12). Portanto, em seus últimos anos de vida, Bernardo Soares é uma das mais constantes companhias literárias que frequenta os devaneios modernistas de Fernando Pessoa.

    Neste ponto de sua vida, depois da morte dos amigos da Geração de Orpheu 4 e com o afastamento do grupo que estivera unido no momento da criação entusiástica da Revista5 e, por conseguinte, do modernismo português, Fernando Pessoa vê-se exilado até de seus heterônimos — exceto Álvaro de Campos, sempre presente, como nos lembra Richard Zenith (ZENITH, R.

    In: PESSOA, F., 2011a: 12 . ). Isolado e nostálgico, a produção literária pessoana muito se aproxima nesta fase da poesia sá-carneiriana6, principalmente os versos reunidos no livro Dispersão. Citamos a seguir apenas a primeira e segunda estrofes do poema homônimo:

    Perdi-me dentro de mim

    Porque eu era labirinto,

    E hoje, quando me sinto,

    É com saudades de mim.

    4 Mário de Sá-Carneiro faleceu em 1916, Santa Rita-Pintor em 1918 e Ângelo de Lima em 1921. Almada Negreiros é a exceção, pois morreu em 1970, aos 77 anos.

    5 Leia-se ―NÓS OS DE ‗ORPHEU‘‖, de 1935 (PESSOA, F., 1980b: 227.) 6 Embora reconheçamos traços desta mesma melancolia no teatro e na prosa de Sá-Carneiro, a nosso ver sua poesia é mais intensamente melancólica do que A confissão de Lúcio, por exemplo.

    Passei pela minha vida

    Um astro doido a sonhar

    Na ânsia de ultrapassar,

    Nem dei pela minha vida...

    (SÁ-CARNEIRO, M., 1995:61.)

    Julgamos reconhecer reminiscências do sentido das palavras referidas em trechos do Livro do desassossego, sobretudo quando se considera as tendências suicidas de Mário de Sá-Carneiro e a morte ficcionalizada por Bernardo Soares, registra-da em fragmentos como os seguintes: ―A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem [...]. Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo. É

    que ali está um liberto‖ (SOARES, B., In: PESSOA, F., 1982b:456). O sujeito poético em Mário de Sá-Carneiro se reconhece perdido em um labirinto caleidoscópico, fragmentado e multifacetado, em que nada é capaz de sentir, além de saudades de si mesmo. Entretanto, é a segunda estrofe do poema ― Dispersão‖ que poderia, facilmente, ter sido escrita pelo sujeito-narrador Bernardo Soares, sempre entediado7 e oscilante entre a megalomania e um futuro promissor, em contraste com a vida que passa rotineiramente, sem aventuras outras que não seja meramente vivê-la.

    O traço distintivo que aproxima a obra sá-carneiriana da narrativa do desassossego que se instaura no Livro soaresiano é a melancolia oriunda da representação do luto: por exemplo, pelos pais perdidos muito cedo, por aqueles amigos que morreram, pela vida cotidiana banal e pobre de opções, pela vida lite-7 Leia-se o trecho 263, do Livro do desassossego: ―O tédio... Sofrer sem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio...‖ (SOARES, B., In: PESSOA, F., 2011a: 262.)

    rária que — constata tristemente — nunca será bem-sucedida.

    Na continuidade do mesmo trecho supracitado, escreve Bernardo Soares as palavras a seguir: ―Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade [...] porém agora, só, sem necessidade de ninguém [...] esqueço a vida que me oprime. Não me dói senão ter-me doído ( Id. )8.

    Ao assumir que as obras de Mário de Sá-Carneiro e Bernardo Soares estão impregnadas deste vazio melancólico, decadentista, entende-se o isolamento do mundo exterior e o autoexílio dos autores. A seguir apresentaremos nossas ideias sobre o Livro do desassossego, como um diário quase destecido de Bernardo Soares.

    2. O tecido narrativo: desordem interior e itinerância Retomamos aqui o trecho da obra de Dionísio Vila Maior: ―Essa desordem interior, numa primeira instância, poder-se-á traduzir na perda da unidade interior desse sujeito e, em última instância, na perda da sua identidade‖ (VILA MAIOR, D., 2003: 47). Ambos escritores modernistas, o Mestre Alberto Caeiro transfere para o discípulo Bernardo Soares a ―desordem interior‖

    que conduz o primeiro à busca do equilíbrio e da sabedoria a partir da contemplação da natureza (exterior e física, interior e subjetiva) e o segundo ao quase isolamento de uma narrativa-monólogo, uníssona e exilante.

    Parece-nos que, em seu isolamento, mesmo quando caminha pelas ruas da cidade e interage superficialmente com as 8 Sobre as portas das janelas, mencionadas por Bernardo Soares, acreditamos tratar-se meramente de portinholas, que são comumente utilizadas com divisórias de madeira, para bloquear a luz solar e, portanto, aumentar o isolamento em relação ao mundo exterior.

    pessoas dos pequenos restaurantes e com os colegas do escritório em Lisboa, mentalmente Bernardo Soares tece o seu diário íntimo. Contudo, não o faz inteiramente para registrar os fatos ou emoções cotidianas9. Escreve, sobretudo, para que em sua vida haja algo que faça sentido, que seja disposto e tecido de forma lógica. No grande novelo que é a vida do guarda-livros, tal qual uma Penélope moderna, o sujeito-narrador tece e destece em busca de um significado outro, que não seja o banal e previsto, em constante anseio de que a ficção tecida não seja idêntica à vida. A título de exemplificação, citamos a seguir um recorte do tecido [no sentido que antes mencionamos de texto como tecido]

    do Livro do desassossego:

    Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. De-senrolo-me em periodos e paragraphos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as creanças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como faço rhythmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos, de flores seccas que continuam vivas nos seus sonhos.[...] Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, mixturado com imagens que o desfazem, aberto em rhythmos que são outra cousa qualquer.

    De tanto recompor-me, destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cahir a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o olhar que mostra, claro a 9 Cf. Richard Zenith: ―O que temos aqui não é um livro mas sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro-sonho, o livro-desespero, o anti-livro, além de qualquer literatura. O que temos nestas páginas é o gênio de Pessoa no auge‖.

    (ZENITH, R. In: PESSOA, F., 2011a:11.)

    negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla a contempla-lo.

    (SOARES, B., PESSOA, F., 2010b: I, 313.)

    Mescla-se a identidade do sujeito-narrador com o Livro destecido, que — assim como Fernando Pessoa — sente seu autor que estará sempre a fazer-se. Como a colcha tecida por Penélope, adiar o término é evitar a conclusão possível. Aguardar um novo dia — a nosso ver — é, mais do que tudo, a expectativa de que surja uma nova resposta, uma outra alternativa. Por conseguinte, a identidade pessoal/ficcional soaresiana não se constitui na autoria do livro, porque — como se sabe — a outros já fora atribuída.10

    A identidade firmar-se-á na atividade de tecer um diário-narrativa, sempre a completar-se, consecutivamente a evoluir, sucessivamente a ser reelaborado — como um crochê. Recorda-nos Richard Zenith que ―Empregando uma analogia semelhante no parágrafo a seguir, Soares compara sua atividade mental e literária com crochê, exatamente como faz Álvaro de Campos num poema datado de 9/8/193411‖ (ZENITH, R. In: PESSOA, 10 Leia-se sobre os questionamentos acerca da autoria do Livro do desassossego na obra Teoria da heteronímia, na Edição de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith (PESSOA, F., 2012). Cf. ainda os comentários de Richard Zenith na Introdução: ―Se Pessoa se dividiu em dezenas de personagens literários que se contradiziam uns aos outros, e mesmo a si próprios, o Livro do desassossego também foi um multiplicar-se constante, sendo muitos livros atribuídos a vários autores, todos eles incertos e vaci-lantes, como o fumo dos cigarros através do qual Pessoa, sentado num café ou à sua janela, olhava a vida que passa‖. (ZENITH, R. In: PESSOA, F., 2011a:12.) 11 De acordo com José Ney Costa Gomes, ocorre um ―Adeus ao eu: a enunciação do outrar-se‖ (GOMES, J. N. C. 2005: 97), pois ―Em Álvaro de Campos, o eu é mais ou menos semelhante ao de Bernardo Soares, nele o eu se pluraliza completamente no discurso, o eu é sujeito impessoal e total, capaz de querer ser tudo o que o discurso nunca consegue preencher integralmente. Álvaro de Campos é o eu tudo ou, marcando morfologicamente, o eu/tu-do, ele é ― a outridade definitiva do eu discursivo‖ enfim, o constante ―outrar-se‖, verbo criado por Bernardo Soares e que resume o programa inteiro dos heterônimos. ( Ibid., 84.)

    F., 2011a:21). Trata-se do trecho 12 do Livro do desassossego, no qual se lê a melancolia tecida com o tédio soaresiano: ―Cro-ché das coisas... Intervalo... Nada...‖ (SOARES, B. In: PESSOA, F., 2011a: 57). Entre o mundo interior do sujeito-narrador —

    seus pensamentos e impressões — e o mundo exterior — a Lisboa, outra nítida personagem (que recolhe, mas não acolhe o guarda-livros), o Livro é tecido cotidianamente como o referido crochê.

    Na procura por si mesmo, mais do que em busca consciente pelo Outro, Bernardo Soares vagueia pelas ruas de Lisboa em diferentes espaços e tempo, o que circunscreve a sua tessitura, configurando uma ‗metamorfose do ciclo das horas‘, para utilizar as palavras de Jacinto do Prado Coelho sobre a poética de Cesário Verde, outro Ulisses andarilho viajante na própria cidade (COELHO, J.,1961: 181). Limitado pelo horário do ex-pediente de trabalho no escritório, o ciclo referido ocupa as horas livres, metamorfoseando-as de ―livres‖ em reflexivamente ocupadas pelo tédio de meramente existir.

    Seja enquanto escreve em seus diários, seja enquanto vagueia, Bernardo Soares tece sua narrativa quase constantemente destecida — porque sempre a fazer-se e a refazer-se e, por isso, lembra a tessitura de Penélope e o mito da interminável itinerância de Ulisses. O objeto Livro, manuscrito e desordenado é, tal qual a mítica colcha e a viagem do eterno retorno, uma representação do estado de coisas e da impotência diante da vontade alheia. No mito grego, a vontade referida é associada aos pretendentes de Penélope e aos deuses voluntariosos. O Livro soaresiano, de acordo com Haquira Osakabe, é ― um livro que escreve a beira-mágoa —, dá corpo físico e simbólico a esse processo e guarda, por isso mesmo, a marca da transmuta-ção a que o próprio sujeito se submete‖ (OSAKABE, H., 2002: 200). Resultante da viagem em busca da sua própria identidade,

    produto de uma tessitura eternamente em transição e inacabada, os trechos do Livro do desassossego materializa e ―dá corpo físico e simbólico‖, nas palavras referidas, à identidade do seu autor: guarda-livros que guarda em seu Livro o diário de ser eu, a existir no gesto de escritura.

    Fernando Pessoa narra o encontro ficcional com Bernardo Soares e enfatiza que ambos estão a escrever. No momento de apresentar-se a seu semi-heterônimo, a identidade pessoana é literária: poeta e editor da Revista Orpheu. A identidade soaresiana igualmente é literária, mas inédita. O Livro ainda está manuscrito e a surgir. Transcrevemos a seguir uma parte do Prefácio de Fernando Pessoa ao Livro do desassossego, que Vicente Freitas incluiu a partir da página 41 de sua esplêndida obra de-nominada sabiamente de FERNANDO PESSOA — FRAGMENTOS DE UMA AUTOBIOGRAFIA:

    Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto [em] que, sobre uma loja com feitio de taberna decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.

    O desejo de sossego e a conveniência de preços

    levaram-me, em um período da minha vida, a ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que, quando calhava jantar pelas sete horas, quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me.

    Era um homem que aparentava trinta anos, ma-

    gro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com

    um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava — parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.

    Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como que perscrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele.

    Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo

    ar de inteligência animava de certo modo incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobria tão regularmente o seu aspecto que era difícil descortinar outro traço além desse.

    Soube incidentalmente, por um criado do restaurante, que era empregado de comércio, numa casa ali perto.

    Um dia houve um acontecimento na rua, por baixo das janelas — uma cena de pugilato entre dois indivíduos. Os que estavam na sobreloja correram às janelas, e eu também, e também o indivíduo de quem falo.

    Troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A sua voz era baça e trémula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar. Mas era porventura absurdo dar esse relevo ao meu colega vespertino de restaurante.

    Não sei porquê, passámos a cumprimentarmo-

    nos desde esse dia. Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos jantar às nove e meia, entrámos em uma conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia.

    Respondi que sim. Falei-lhe da revista Orpheu , que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em Orpheu soe ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, soia gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também.

    (SOARES, B. In: PESSOA, F., 2011a:41-42.)

    Ambos escritores ―apartes na vida‖, Fernando Pessoa e seu semi-heterônimo interagem socialmente, na expectativa de encontrar no outro o eco do seu eu12. Contudo, Bernardo Soares é, como seu Livro, inacabado. A caracterização da personagem que, ao lado da cidade de Lisboa, assume o protagonismo da narrativa, realiza-se com empatia, pois ocorre o reconhecimento da dor pessoal e pessoana na dor da personagem ficcional soaresiana: ―era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava — parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito‖, escreve Fernando Pessoa. Irmanados — porém não idênticos — no gesto da escrita, na condição econômica, na profissão banal e quase sempre enfastiosa, no gosto pelo isola-12 Cf.: ―Pessoa fez-se nada para poder ser tudo, e todos. Soares, quando muito, era um eco‖. (ZENITH, R. In: PESSOA, F., 2011a: 14.)

    mento, enfim, próximos o suficiente para que, num processo de espelhamento, um se reconhecesse no outro13.

    Entretanto, ressaltamos sempre que Bernardo Soares não é Fernando Pessoa. O Livro não é uma autobiografia consciente.

    Mais do que um autor semelhante a Vicente Guedes ou Barão de Teive, em Bernardo Soares encontra-se uma personagem ficcionalizada, em que se percebe uma representação plural e complexa, sem, entretanto, ser simplesmente entendida e analisada co-mo modelo do ou para o autor do Livro. É, antes, uma composição verbal e narrativa, linguagem utilizada pelo escritor no momento de expressar-se — e, talvez, uma das mais ricas expressões pessoanas, que [assim como Álvaro de Campos] o acompanhou, como mencionamos anteriormente, por décadas de sua vida, inclusive as mais solitárias, como afirmamos anteriormente, na ausência e distanciamento dos poetas de Orpheu.

    O interesse mútuo entre F. Pessoa e B. Soares surge ao observarem que ambos escrevem e que as pessoas ao redor parecem estarem a encenar um drama ou serem personagens de algum texto: ―Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele‖, afirma Fernando Pessoa. Em sendo assim, declara o editor de Orpheu que passara a ―ver melhor‖ o guarda-livros.

    Anteriormente, era uma imagem mesclada entre as outras, naquele cenário corriqueiro ao fim do dia. Agora Bernardo Soares tornou-se uma ―pessoa de interesse‖ e o poeta começa a investigar a verdadeira identidade de seu semi-heterônimo. Percebe a silenciosa melancolia, descobre seu nome, assimila sua falta de expectativa e tédio, ―como a das criaturas que não esperam nada, 13 Lembramos que, como afirma Richard Zenith: ―Na prosa ‗musicante‘ de Bernardo Soares, ainda mais vincadamente do que nos outros eus que faziam parte do coro, Pessoa escreve-se, escreveu o seu século e escreveu-nos a nós até os infernos e paraísos que habitam cada um, mesmo que sejamos, como Pessoa, descrentes‖. (ZENITH, R. In: PESSOA, F., 2011a:27.)

    porque é perfeitamente inútil esperar‖, segundo o autor ortônimo.

    Uma trivialidade os aproxima, contudo o que surge daquela situação nada tem de ordinário: autor e personagem dialo-gam. Como procuramos demonstrar anteriormente, há interação inter-heteronímica e, neste caso, do ortônimo e seu semi-heterônimo. Impressionado pelo segundo reconhecer qualidades e elogiar bastante seu trabalho em Orpheu, no entanto, o primeiro não demonstra qualquer estranhamento quando o sujeito-narrador do Livro declara — a quem mal conhecia — que não possuía amigos e tampouco interesses estimulantes e, por isso, escrevia solitariamente em seu desassossego existencial.

    Sob esta ótica e como nos recorda Jacinto do Prado Coelho, ―Pessoa firma-se no quotidiano, não para uma descrição exterior, mas, para conferir-lhe uma ultra dimensão; ascende ao metafísico e estabelece uma espécie de relativismo ontológico (COELHO, J. do P.,1982:135). A dimensão conferida pelo poeta ao Livro é, sobretudo, a negação do real em detrimento do ficcional. Para que o ―metafísico‖ e o ―relativismo ontológico‖, mencionados por Jacinto do Prado Coelho, sejam estabelecidos tex-tualmente, necessário se faz investigar o contexto que baliza o texto. Quer isso dizer que o Livro do semi-heterônimo pessoano possui importantes registros do cenário, da época e da sociedade lisboeta em que se inseriam Fernando Pessoa e Bernardo Soares.

    Citamos a seguir um fragmento do contributo de João Rui de Sousa para esta questão:

    Mas diga-se acima de tudo[...] que no Livro do Desassossego se espelham, e bem mais abundantemente do que em qualquer outra parte da obra de Pessoa, impres-sivos e diversificados cenários relacionados com a pró-

    pria atividade de empregado de escritório [...] Neste breve apontamento podem detectar-se, pelo menos: a) A paisagem humana típica de um pequeno escritório dos anos 20 ou 30.

    b) A ‗impressão de desagrado‘, a antecipada saudade e o sentimento de uma essencial amputação que sobejam de um visionar-se desligado do trabalho profissional e do inerente espaço de quotidiana convivência; c) o falso sonho de libertação de um dia-a-dia rotineiro, momentaneamente acalentado por um profissional de escritório que, sabendo-se também escritor e artista, se imagina, por essa eventual disponibilidade, a alcançar coisas tão pessoalmente importantes como ‗a arte conseguida‘ e o ‗cumprimento intelectual‘ de um superior destino.

    (SOUSA, J. R.de, 1985:54-55.)14

    Depreendemos das palavras supracitadas que o minucio-so registro das impressões de Bernardo Soares acerca da Lisboa em que viveu ficcionalmente15 pode ser considerada como fonte de consulta para os estudiosos das relações sociais e modos de vida da era modernista, na qual atuou Fernando Pessoa e na qual teria escrito o guarda-livros. Contrário a este ponto de vista, declara António Apolinário Lourenço no excerto seguinte: 14 As letras carregadas [em negrito] são do autor.

    15 Novamente remetemos às palavras de Richard Zenith: ―Com efeito, podemos folhear o Livro do desassossego como um caderno de esboços e resquícios que contém o artista essencial em toda a sua diversidade heteronímica. Ou podemos lê-lo como um ‗livro de viajantes‘ que fielmente acompanhou Pessoa através de sua odisseia literária que nunca saiu de Lisboa‖. (ZENITH, R. In: PESSOA, F., 2011a: 18.)

    Estilística e tematicamente, o Livro do Desassossego assume fundamentalmente o tom confessional próprio de um diário íntimo, em [que] se colhem mais emoções e reflexões do que factos da vida. Estando esse quase completamente ausentes do livro, não é uma operação fácil separar psicológica e ideologicamente o autor-narrador, o empregado de escritório Bernardo Soares, do autor empírico, Fernando Pessoa, cuja vida profissional tinha inegáveis coincidências com a do autor do diário.

    (LOURENÇO, A.A., 2009: 61-62.)

    Não há dúvidas — e muitos leitores concordariam com António Apolinário Lourenço — que a subjetividade do texto pode se sobressair em alguns de seus trechos. No entanto, é já este um ―facto da vida‖ do sujeito-narrador: a melancolia e o tédio produzem o quase total isolamento do eu, que emerge em sua narrativa de vida ao invés de vivê-la socialmente16. Igualmente pode reconhecer-se que, sendo inacabado, é o semi-heterônimo o mais próximo da identidade pessoal de Fernando Pessoa. Todavia, o guarda-livros tem acentuadas a sua quase marginalidade social enquanto o ortônimo contribuiu para várias revistas e teve relativo reconhecimento em vida — pelo menos entre seus pares, os poetas e artistas da geração de Orpheu e do segundo modernismo, o presencismo.

    16 Ricardina Guerreiro declara que ―expressando essa relação alteridade-melancolia, a figura da alegoria, segundo a moderna concepção de Walter Benjamin, aparece com um duplo valor de representatividade e de processo, pretendendo não só expressar a visibilidade demarcadora, enquanto impulso significativo, como a face negra do indi-zível, enquanto tensão para um alvo inconsumável‖. (GUERREIRO, R., 2004:16.)

    3. Fernando Pessoa explica Bernardo Soares como me-ra pseudonímia?

    Estamos, neste sentido, muito próximos das palavras de Fernando Cabral Martins e Richard Zenith, no livro intitulado Teoria da heteronímia, no qual os investigadores referidos clari-ficam a questão, ao mencionarem que ―Algumas palavras escritas por Pessoa ajudam a esclarecer o sentido das suas afirma-ções, explicando que Bernardo Soares se distinguia dele ‗por suas ideias, seus sentimentos, seus modos de ver e compreender‘, mas não ‗pelo estilo de expor‘‖ (PESSOA, F., 2012: 102-103). Acrescentam ainda que o ― Livro do Desassossego, embora seja definido como uma ‗autobiografia sem factos‘, fornece-nos vários elementos para um esboço biográfico de Bernardo Soares‖ ( Ibid., 103). Podemos ainda refletir sobre o fato de que o esboço citado faz referência ao semi-heterônimo pessoano e não à biografia de Fernando Pessoa.

    Quando afirmamos em páginas anteriores de nossa proposta de leitura que Bernardo Soares é um autor-personagem e não um texto ortônimo, tínhamos em mente as palavras contrárias a nossa opinião, publicadas por Ricardina Guerreiro, citadas a seguir:

    Apoiando-se neste declarado não separativismo total, bem como nas ‗coincidências tanto estilísticas como temáticas, entre o Pessoa ortónimo e as páginas do Livro do Desassossego (...) assinaladas não só por Jacinto do Prado Coelho e Maria da Glória Padrão mas também por Jorge de Sena, e, ainda, em afinidades psicossociais, Angel Crespo afirma a pura e simples pseudonímia de Bernardo Soares. ‗O

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1