Lênin: Burocracia e Ideologia
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Lênin - Aline Ferreira
LENINISMO:
IDEOLOGIA E PRÁTICA CONTRARREVOLUCIONÁRIA
Lisandro Braga
Aceitando em sua plenitude a máxima marxista segundo a qual as ideias dominantes são as ideias da classe dominante
, o leninismo não passa de uma ideologia simplória, artificial e pobre, não fundamentada no marxismo. Isso deve significar que, ao contrário do marxismo, o leninismo não é expressão teórica do movimento operário revolucionário, menos ainda representou um desenvolvimento posterior, uma atualização dessa expressão teórica. Na verdade, o leninismo é a ideologia¹ da burocracia bolchevique, convertida em burguesia burocrática após a construção do capitalismo de estado russo (1917-1989), ou seja, é a ideologia da nova classe dominante russa, a ideologia da dominação burocrática (VIANA, 2019). Essa afirmação não deveria soar como um disparate para diversos ditos marxistas, mas infelizmente soa e para a maioria gritante. E como isso pode ser explicado?
Para afirmar que o leninismo, ao contrário do marxismo, não é expressão teórica do proletariado revolucionário, primeiro é necessário explicar algumas questões: o que é o marxismo? O que é ser expressão teórica do proletariado revolucionário? O marxismo já foi definido de diversas formas e não há um consenso em torno de uma única definição, contudo não cabe aqui recuperar as principais definições existentes. Nos contentaremos em apresentar uma definição marxista do marxismo, sua ontologia (KORSCH, 2008; VIANA, 2008; LUKÁCS, 2003; KOSIK, 1976; GOMBIN, 1972).
Assim como a burguesia, a burocracia e a intelectualidade², a classe operária, no desenrolar histórico da luta de classes, também desenvolveram sua consciência, que, devido aos seus interesses de classes, precisou ser uma consciência correta da realidade. Nesse processo a classe operária se torna uma classe revolucionária, sua consciência de contraditória avança na direção revolucionária. Em seu processo de organização em uma associação de classe³, o proletariado revolucionário gerou seus representantes literários e políticos. Coube a esses representantes melhor desenvolver a consciência de classe do proletariado, buscando superar suas contradições, sistematizando-a em um universo conceitual coerente (MARX, 1986; MARX, 1997).
Para dar conta dessa tarefa, os intelectuais, engajados na luta de classes a partir da perspectiva do proletariado revolucionário, precisavam expressar teoricamente os interesses de classes do proletariado, seus interesses individuais devem coincidir com os interesses da classe operária revolucionária, com sua finalidade: a transformação radical da sociedade. A pergunta que ainda precisa de resposta, portanto é: o marxismo é expressão do proletariado revolucionário?
Nossa resposta é positiva. Na verdade, podemos afirmar que o marxismo é uma verdadeira teoria do ser-de-classe do proletariado. Em diversas análises, em várias obras, Marx aponta para a necessidade da construção dessa teoria: a) o que é o proletariado e o que ele será historicamente obrigado a fazer de acordo com esse ser; b) oposição entre proletariado e propriedade privada; c) o dever da autoemancipação proletária; d) a emancipação operária como emancipação universal etc. O desenvolvimento da teoria marxista avança no sentido de se tornar uma análise pujante desse ser-de-classe revolucionária (VIANA, 2008).
A análise de Marx demonstra como o proletariado é constituído na relação com a burguesia nos fundamentos da sociedade capitalista (modo de produção) e como a dinâmica dessa relação que é marcada pela luta de classes dá origem a uma diversidade de outras classes sociais que de uma forma ou de outra acabam por estar inseridas nessa dinâmica da luta de classes no capitalismo, aponta o avanço da luta operária e da consciência revolucionária, marcando seus avanços e recuos, mas demonstrando que é a luta proletária (auto-organizada) o motor da revolução proletária, que a consciência revolucionária nada mais é que a consciência do proletariado revolucionário que emancipa a si mesmo através das suas lutas (MARX, 1985; MARX, 1985a; MARX, 1986a).
Em síntese, a luta operária revolucionária é a determinação fundamental da revolução comunista, isto é, a emancipação proletária será obra do próprio proletariado revolucionário. Portanto, concordamos com Korsch: o marxismo é expressão teórica do movimento operário revolucionário. E o leninismo? Seria esse uma parte da tradição marxista que se afirmou sendo expressão teórica do proletariado?
Podemos dividir o leninismo (fundador), para melhor compreendê-lo, em duas fases: a fase insurrecional e a fase legitimadora da dominação burocrática. Nessa primeira fase a obra de Lênin Que fazer? (1978) é marcada pela construção da ideologia da vanguarda revolucionária e do seu caráter insurrecional através do substitucionismo (TROTSKY, 2020). Nessa obra, Lênin desenvolve sua tese fundamental e que serve de fundamento para toda uma tradição intelectual leninista: a classe operária não tem capacidade de se emancipar por si mesma, o máximo que sua consciência atinge é o sindicalismo reformista. A consciência socialista é um elemento importado de fora na luta de classes do proletariado e não algo que surgiu espontaneamente
(LÊNIN, 1978, p. 31).
A tese leninista do partido de vanguarda tem sua origem na ideologia social-democrata de Kautsky (1980) e seu progressismo burguês. Tal tese afirma que a incapacidade proletária de se libertar por si mesmo gera a necessidade de um partido de vanguarda composto por revolucionários profissionais, intelectuais burgueses e pequeno-burgueses capazes de produzir a consciência revolucionária e introjetá-la no proletariado. Essa concepção substitucionista e dirigista se encontra em flagrante contradição com o marxismo e suas teses centrais da autoemancipação proletária, a tese segundo a qual a consciência revolucionária nada mais é do que o proletariado revolucionário, a tese que afirma que os comunistas (intelectuais engajados, representantes intelectuais) não formam um partido (associação) à parte da classe operária e várias outras teses.
Ao contrário de expressar os interesses do proletariado, Lênin expressava os interesses da classe que se propõe dirigir o processo insurrecional para a tomada do poder do estado russo: a burocracia bolchevique. Aqui o papel do proletariado é secundário e quem governa é o partido. Uma vez no poder, a tarefa que se impôs aos bolcheviques liderados por Lênin foi a de promover a industrialização e modernização da economia russa, garantir a regularização da dominação burocrática, defender o país das invasões estrangeiras e expandir sua dominação para além das fronteiras nacionais. Nesse sentido, o leninismo passa de uma ideologia supostamente revolucionária para uma ideologia legitimadora da nova
sociedade instaurada na Rússia: o capitalismo de estado.
A partir daí temos uma exceção histórica, a emergência do capitalismo de estado sob comando do regime de acumulação estatal. A classe dominante russa passa a ser composta pela alta burocracia bolchevique aliada com setores da velha burocracia czarista e por aliados vindo de outras classes sociais. Essa fusão de classes dá origem a uma novidade histórica no capitalismo mundial: a burguesia burocrática. Classe responsável por extrair mais-valor⁴ do proletariado e garantir a regularização das relações sociais (controle social) capitalistas estatais (TRAGTENBERG, 2008; VIANA, 2019).
O regime de acumulação estatal russo estava fundado no neotaylorismo (taylorismo russificado) como forma de valorização do capital, na forma estatal empresarial responsável por tornar regular as melhores condições de reprodução do capitalismo estatal russo e na forma de exploração internacional baseada no imperialismo integracionista. Diversas outras formas de regularização das relações sociais (formas sociais) capitalistas estatais se fizeram necessárias. Dentre elas merece destaque a política cultural bolchevique. Esta era marcada pela imposição do monolitismo, visto que o caráter totalitário do regime político não permitia a expressão divergente e por isso controlava rigidamente a produção cultural que não deveria contrariar as versões oficiais do partido bolchevique. Por conta disso, e de outras determinações típicas do estatismo, a resistência era escassa e pouquíssimas críticas foram produzidas fora da linha oficial. Afinal de contas tratava-se de um capitalismo que não se dizia capitalismo.
Para o capitalismo estatal russo se justificar como um não-capitalismo, uma vasta produção ideológica foi necessária. No entanto, tratava-se de uma produção cultural burguesa marcada pelo ecletismo arbitrário com elementos isolados do marxismo que, de teoria, se vê transformado em ideologia. O vanguardismo é transformado no paradigma predominante na Rússia, marcado pelo pragmatismo que tem como determinação fundamental a manutenção do poder custe o que custar (VIANA, 2019).
A grande dificuldade na compreensão desse complexo processo histórico desenvolvido na Rússia está relacionada com a versão dominante dessa história que se impôs. De uma forma ou de outra, as duas maiores potências mundiais do século XX concordavam e propagandeavam por motivos distintos que a Rússia havia se tornado uma nação comunista. E, como grande potência capitalista estatal, a Rússia tinha condições de monopolizar a interpretação correta
da revolução comunista, pois além da ideologia leninista, contavam, a partir de 1917, com um grande exemplo prático a ser seguido. Claro que, por conta do seu caráter contrarrevolucionário, os bolcheviques tiveram muita oposição, o que os levaram a instalar um estado totalitário que silenciava toda e qualquer tentativa de oposição com muita repressão, censura, internações forçadas em hospícios, campos de concentração etc.
Contudo, apesar de marginais, sempre houveram vozes dissidentes e que começaram a melhor sistematizar suas críticas sobre o processo contrarrevolucionário que vinha se desenvolvendo na Rússia após a tomada do poder pelos bolcheviques. Essas vozes dissidentes foram responsáveis por darem origem a uma crítica, muitas vezes marxista, do leninismo. Portanto, o livro Lênin: Burocracia e Ideologia de Gabriel Teles e Aline Ferreira são, de certa forma, herdeiros dessa tradição marxista de crítica desapiedada do leninismo e de todo desserviço que o mesmo presta ao avanço da luta proletária em direção a uma sociedade verdadeiramente livre e humana, fundada na autogestão social. Por essa razão, a presente obra é leitura introdutória obrigatória para quem deseja compreender o verdadeiro significado do leninismo e seu papel contrarrevolucionário.
Lisandro Braga é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná/UFPR e Militante do Movimento Autogestionário/Movaut.
Referências
BRAGA, Lisandro. Intelectualidade e perspectiva de classe. Revista Despierta. Volume