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O marxismo autogestionário
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E-book283 páginas3 horas

O marxismo autogestionário

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Sobre este e-book

O Marxismo Autogestionário é uma corrente marxista recente, cujo surgimento ocorre após as lutas sociais do Maio de 1968 na França. A ideia de autogestão se torna fundamental para explicitar o projeto de sociedade da nova tendência, que resgata a autêntica concepção de Karl Marx – deformada pela social-democracia e bolchevismo, bem como pelos países e partidos autodeclarados socialistas e comunistas – e o comunismo de conselhos. A presente obra analisa a origem histórica do marxismo autogestionário, seus antecedentes, o conceito de autogestão, as experiências autogestionárias, os principais representantes teóricos da nova tendência e sua presença na atualidade. A obra expressa uma análise do marxismo que emerge a partir das lutas sociais do final dos anos 1960 e se manifesta até os dias de hoje. A importância teórica do marxismo autogestionário é indiscutível e isso justifica a presente obra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de mai. de 2020
ISBN9786586705119
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    O marxismo autogestionário - Edições Redelp

    2020.

    MAIO DE 1968 E A FORMAÇÃO DO MARXISMO AUTOGESTIONÁRIO

    Nildo Viana*

    O tema que será aqui desenvolvido envolve três aspectos: Maio de 1968, marxismo e autogestão. O objetivo é analisar a relação entre a rebelião estudantil de Maio de 1968 e o marxismo autogestionário. Sem dúvida, o marxismo é anterior ao Maio de 1968 e por isso será abordado primeiro. Assim, vamos fazer uma breve discussão sobre o marxismo e seu desenvolvimento histórico, uma análise breve sobre a rebelião estudantil de Maio de 1968, uma discussão introdutória sobre o conceito de autogestão, para, enfim, analisar a formação do marxismo autogestionário e sua relação com as lutas estudantis e operárias do final dos anos 1960.

    A gênese do marxismo e seu desenvolvimento histórico

    O marxismo original emerge com a obra de Marx e Engels e se desenvolve com as contribuições de Labriola, Makhaïsky e outros. Ele surge a partir da emergência do proletariado e sua autonomização no bojo das lutas de classes que se desdobram nos anos 1840. Nesse momento histórico, várias concepções autodenominadas socialistas emergem e se desenvolvem, a começar pelo chamado socialismo utópico, que é sucedido pelo marxismo, anarquismo e outras tendências. A autonomização do proletariado possibilita a constituição do marxismo e das demais tendências socialistas. Tal como coloca Labriola (2020), além da existência da classe operária, foi necessário a sua autonomização para que Marx produzisse sua obra.

    A obra de Marx assume uma importância fundamental, pois ele não só conseguiu expressar a perspectiva do proletariado, como o fez de forma específica. A forma específica pela qual Marx expressou a perspectiva do proletariado foi a teórica. Assim, outra determinação da formação do marxismo, para além da autonomização do proletariado, foi a erudição de Karl Marx. Não se trata, obviamente, de endeusar o indivíduo Marx, mas de compreender que a sua personalidade (singularidade psíquica)¹ e sua formação erudita é o que possibilitou a existência de uma expressão teórica do proletariado. Sem isso, seria possível existir expressões doutrinárias do proletariado, como o anarquismo, bem como ecletismos e outras formas de expressão dessa classe (artística, religiosa, etc.) e isso efetivamente ocorreu. Marx tinha uma personalidade que apresentava como uma de suas características a coragem, bem como um humanismo radical, aliado ao processo de formação erudita, já que era um grande leitor de obras filosóficas (em geral, desde a filosofia antiga até a filosofia alemã de sua época), econômicas, políticas, historiográficas, etc. A erudição significativa de Marx² (que se distingue da erudição enciclopédica) permitia a ele expressar teoricamente os interesses de classe do proletariado, gerando um saber noosférico, complexo e profundo, que se tornou uma arma fundamental da classe operária na sua luta pela autoemancipação.

    Claro que tudo isso não ocorreria se Marx não fosse um indivíduo determinado, humanista radical, e, por conseguinte, capaz de levar a cabo a crítica desapiedada do existente (VIANA, 2017). Marx é, portanto, a síntese viva do indivíduo que possui a perspectiva do proletariado (valores, sentimentos, etc.) com a erudição significativa, o que explica, por exemplo, que não existiram outros como ele, pois muitos tinham valores e sentimentos compatíveis com o proletariado, mas faltavam-lhes formação intelectual, enquanto que muitos tinham tal formação, mas faltavam-lhes o fogo utópico, o vínculo com a perspectiva do proletariado.

    No entanto, outro elemento era necessário além dos aspectos individuais que explicam a personalidade de Marx. Marx produziu suas ideias no contexto do regime de acumulação extensivo e sua passagem para o regime de acumulação intensivo. Ele vive a crise do regime de acumulação extensivo, observa a emergência da autonomização do proletariado na Revolução de 1848 e, mais ainda, na Comuna de Paris, e isso possibilita a constituição do marxismo com toda a sua radicalidade revolucionária. Se Marx tivesse nascido numa época de estabilidade do capitalismo, poderia ter sido mais moderado, mas isso dependeria de múltiplas determinações e seu processo histórico de vida.

    Assim, Marx foi o fundador do marxismo, termo criado por seu adversário Bakunin, com um sentido pejorativo e que ele mesmo não utilizou. O nome marxismo pode dar a impressão de personalismo ou endeusamento de Marx. Porém, é o nome que não só se vincula ao pensador que conseguiu expressar teoricamente os interesses de classe do proletariado e da emancipação humana, como lhe rende a homenagem pelo seu mérito intelectual e seu sacrifício por esta causa, e, ainda, vincula a ideia ao seu fundador, o que dificulta apagar a sua contribuição. Labriola (2020) propôs, por exemplo, substituir marxismo por comunismo crítico. O nome é infeliz, pois, embora a crítica revolucionária seja uma característica da perspectiva do proletariado, seria reduzir ao momento da crítica algo que vai além, com um projeto e com a luta concreta que lhe é inseparável. Labriola e seu distanciamento das lutas concretas³ permite realizar tais sugestões problemáticas. Contudo, o nome comunismo crítico geraria uma vinculação a uma palavra e as palavras são deformadas, ressignificadas, etc. No final do século 20, comunismo era vinculado ao capitalismo estatal, aos partidos comunistas, e, portanto, já não tendo mais nada a ver com o marxismo original, ou seja, com as ideias de Karl Marx e a não referência a ele, o que ocorre ao usar o termo marxismo, facilitaria o seu esquecimento e substituição por deformadores, como Lênin, Stálin, Trotsky, Gramsci, entre outros.

    A emergência do marxismo original significou que as lutas proletárias, doravante, teriam uma base teórica e elementos de cultura, estratégia, etc., que seriam fundamentais para as lutas posteriores. Porém, após a morte de Marx iniciou-se um processo de deformação de suas ideias, promovido pela vinculação com os interesses de outras classes. A social-democracia surge como a primeira forma de deformação do marxismo⁴ ao abandonar a perspectiva do proletariado, o que significa entrar em contradição com o pensamento de Marx. A social-democracia passa a priorizar a participação parlamentar (haverá uma discussão interna, mas essa era a posição hegemônica e que suplantava as concepções que colocavam isso como secundário), a conquista do poder estatal via eleições, etc. O evolucionismo e o progressismo burguês são misturados com linguagem marxista. O paradigma positivista se torna mais forte do que a episteme marxista, do que restou apenas a linguagem, totalmente deformada.

    Isso pode ser explicado por um duplo processo: por um lado, a consolidação e estabilização do regime de acumulação intensivo e, por outro, a burocratização crescente na sociedade capitalista a partir desse período e, mais especificamente, dos partidos políticos supostamente operários e dos sindicatos. Na realidade concreta, esses dois elementos caminham juntos. Essa base real é reforçada pela força do paradigma hegemônico, o positivismo. Essas determinações se reforçam reciprocamente. A estabilização do capitalismo durante o regime de acumulação conjugado é expressa ingenuamente por Eduard Bernstein (1997) e a sua interpretação disso, ancorada no paradigma positivista, e expressando interesses (e, logo, tendo apoio) das burocracias partidárias e sindicais, são os elementos que explicam a gênese da hegemonia social-democrata.

    Alguns poucos marxistas, com certas ambiguidades, mantiveram uma posição mais próxima da perspectiva do proletariado, como Antonio Labriola, Rosa Luxemburgo, Jan Wanclaw Makhaïski. Porém, estes autores foram marginalizados, com intensidades diferentes, pois os mais ambíguos (como Rosa Luxemburgo) podiam ser assimilados e essa tentativa de assimilação permitiu a divulgação de suas obras, tal como no caso de Rosa Luxemburgo, sempre recuperada por seu heroísmo e significado na história da social-democracia alemã e tentativa de revolução nesse país, mas sempre acompanhada das críticas aos seus erros (o embate com Lênin, a crítica ao burocratismo, o espontaneísmo, etc.).

    O bolchevismo foi a forma seguinte de deformação do marxismo e se afirmando como a ortodoxia marxista, tal como antes fizera Karl Kautsky. A gênese do bolchevismo tem na social-democracia (e sua força) uma de suas determinações, bem como o paradigma positivista (reproduzido pelos ideólogos social-democratas) e sua diferenciação é explicada por ter emergido num país de capitalismo retardatário e comandado por um regime czarista e por uma burocracia civil e classe intelectual emergente, sendo que setores dessas classes se fundiam no Partido Social-Democrata Russo. No fundo, o bolchevismo era uma versão russa e mais radicalizada da social-democracia, e por isso reproduziu algumas deformações desta e acrescentou outras, supostamente revolucionárias, que, no fundo, era apenas uma manifestação do insurrecionalismo, confundido com revolução social⁵. O paradigma positivista, o burocratismo, e outros elementos ideológicos, substituem, na ideologia bolchevique, a episteme marxista e teoria da revolução proletária. O bolchevismo assume a forma de expressão da classe burocrática autonomizada, em sua fração mais radicalizada.

    Nesse contexto, o marxismo existente era o ambíguo, que não conseguia ultrapassar a social-democracia e o bolchevismo, colocando-se mais como dissidência interna ou crítica exterior a respeito de forma organizacional, tática, etc., como foi o caso de Rosa Luxemburgo, os tribunistas holandeses (Gorter e Pannekoek), o jovem Trotsky e Parvus, etc. As honrosas exceções foram Hans Müller e Jan Wanclaw Makhaïski, que realizam uma crítica mais radical e começaram a perceber a existência da classe burocrática, mesmo que de forma confusa e ambígua. O marxismo ambíguo desse período se vinculava ao que foi denominado socialismo radical e que grande parte, mais tarde, desembocaria do comunismo de conselhos e outras tendências revolucionárias, rompendo totalmente com o reformismo e leninismo.

    O marxismo, no entanto, renasceria em sua radicalidade e totalidade com as tentativas de revoluções proletárias. Vários pensadores, militantes, organizações revolucionárias recuperaram o marxismo autêntico⁶, com destaque para o comunismo de conselhos. A Revolução Russa e a Revolução Alemã, entre outras, mas com destaque para estas duas experiências, trouxeram os conselhos operários (sovietes) como organizações autárquicas do proletariado, que abriam a possibilidade de autogestão do processo de produção e sua generalização para o conjunto da sociedade, geraram expressões políticas e teóricas que entraram em confronto com as duas principais formas de deformação do marxismo, a social-democracia e o bolchevismo. O comunismo de conselhos, através de Herman Gorter, Otto Rühle, Anton Pannekoek, entre outros, vai combater essas ideologias e suas ações práticas, especialmente no bojo da Revolução Alemã. O pensamento de Marx vai ser retomado pelo comunismo de conselhos, tal como sua concepção de dialética (KORSCH, 1977), e sua concepção política e teoria da autoemancipação proletária e sociedade comunista (PANNEKOEK, 1977), bem como há uma atualização do marxismo, o que é expresso na crítica dos partidos políticos (RÜHLE, 1975; PANNEKOEK, 2012), crítica do bolchevismo (RÜHLE, 2020; WAGNER, 2020; PANNEKOEK, 2020; KORSCH, 1977), crítica ao capitalismo de Estado (PANNEKOEK, 2012).

    A derrota das revoluções proletárias inacabadas da década de 1910 (e seus resquícios no início dos anos 1920) acabaram enfraquecendo tanto o movimento operário quanto o bloco revolucionário, e, assim, o marxismo. Isso gerou novas deformações do marxismo, como o trotskismo, stalinismo, maoísmo, pseudomarxismo acadêmico, etc. Por outro lado, alguns marxistas resilientes continuaram mantendo vivo o marxismo autêntico, mesmo que marginalmente, tal como os comunistas de conselhos ainda vivos e atuantes (Korsch, Pannekoek, Mattick, etc.), e alguns outros.

    A Segunda Guerra Mundial e a nova estabilização do capitalismo expresso no regime de acumulação conjugado explicam a marginalização do marxismo autêntico. A estabilidade gerou um recuo do movimento operário, o processo de burocratização se ampliou consideravelmente, os partidos de esquerda e sindicatos se tornaram órgãos do capital (PANNEKOEK, 1977). Assim, temos, novamente, um contexto no qual um novo regime de acumulação se estabiliza e emerge um paradigma correspondente, o reprodutivista, ao lado de mais uma onda de burocratização e mercantilização. Nesse contexto, o pseudomarxismo se torna reprodutivista em sua quase totalidade e o althusserianismo é sua expressão máxima, acompanhado pelo eurocomunismo e outras ideologias pseudomarxistas. Uma poderosa burocracia, sindical e partidária, se alia com o capital e isso, o que corresponde ao paradigma reprodutivista, gera as ideologias da integração da classe operária, pacto entre capital e trabalho, entre outras bizarrices ideológicas. Nesse contexto emerge o autonomismo e outras concepções críticas da burocracia, mas limitadas por diversos motivos, entre os quais a não superação do gerencialismo, tal como o grupo francês Socialismo ou Barbárie (Castoriadis, Lefort, Lyotard e outros), algumas obras críticas de pensadores isolados (Henri Lefebvre, Sartre, etc.) e a Internacional Situacionista, entre uma diversidade de intelectuais e grupos políticos da época, todos marginalizados. Alguns podem ser identificados como marxistas ambíguos (uma espécie de semimarxismo), outros como apenas influenciados, enquanto que alguns são claramente não marxistas.

    Assim, para sintetizar e não delongar esse breve histórico do marxismo antes da emergência do marxismo autogestionário podemos colocar três grandes momentos na história do marxismo: a) o marxismo original de Marx; b) o comunismo de conselhos; c) o marxismo autogestionário. Além desses momentos e correntes expressivas de cada um deles, temos correntes próximas, intelectuais isolados, agrupamentos políticos e intelectuais que expressam um marxismo ambíguo, entre outros. Por isso se trata de grandes momentos e não de uma história completa do marxismo, pois esta teria que discutir as formas do marxismo ambíguo, as correntes e indivíduos representantes do marxismo ambíguo que ficaram isolados e sem grande repercussão, entre outros elementos. Uma vez efetivada essa história do marxismo, especialmente dos seus dois grandes momentos antecedentes do marxismo autogestionário (o marxismo original e o comunismo de conselhos) podemos passar para a análise da gênese deste último.

    O Maio de 1968 e a Ideia de Autogestão

    Antes da rebelião estudantil de Maio de 1968 em Paris, havia um clima de contestação social em várias partes do mundo e na própria sociedade francesa. Porém, a hegemonia do paradigma reprodutivista e o conformismo reinante nos anos anteriores eram fortes. Essa força conservadora no plano intelectual tinha como base real a estabilidade do regime de acumulação conjugado e a burocratização/mercantilização das relações sociais, o que era complementado pela exploração internacional. A expansão do capital oligopolista transnacional gerou um processo específico nos países de capitalismo imperialista, que foi o aumento geral da renda e consumo, reforçando a estabilidade econômica e política. Não abordaremos esses processos que podem ser vistos em outras obras (VIANA, 2009; ALMEIDA, 2020), apenas recordamos o contexto anterior para facilitar a compreensão da explosão de lutas sociais a partir do final dos anos 1960.

    O regime de acumulação conjugado começa a mostrar seus primeiros sinais de desestabilização e isso vai gerar uma reação de setores da população, especialmente da juventude, dos estudantes, de setores do movimento operário, entre outros⁷. Nesse contexto, na França, ocorre uma precarização da universidade e a proposta de reforma universitária (MANDEL, 1979; BRAGA; VIANA, 2019a). Isso vai gerar uma inquietação estudantil crescente e uma maior recepção da cultura contestadora existente, tal como as obras de Sartre, Lefebvre, Situacionismo, entre outras. As lutas estudantis se radicalizam e por fim explode a rebelião estudantil de Maio de 1968. A tendência revolucionária do movimento estudantil⁸ passa de minoritária para majoritária, e esta assimila a cultura contestadora e sofre influência do bloco revolucionário que lhe é externo (Internacional Situacionista, por exemplo). Um amplo processo de mobilização estudantil ocorre ao lado de manifestações, ocupações das universidades, intensa luta cultural. A luta cultural se manifestou sob várias formas e se tornou um elemento fundamental do Maio de 1968 (VIANA, 2019a). No decorrer do processo, o movimento operário entra em cena e um amplo movimento grevista é desencadeado.

    Não é nossa intenção sintetizar os acontecimentos e nem mesmo o significado do Maio de 1968⁹, mas tão-somente destacar os seus elementos fundamentais para explicar a emergência do marxismo autogestionário. O que explica a relação entre o Maio de 1968 e o marxismo autogestionário é um conjunto de elementos: a) a ruptura com o paradigma reprodutivista, b) a união entre movimento estudantil (e bloco revolucionário) e movimento operário, c) a emergência da ideia de autogestão como projeto de nova sociedade e a recusa total da sociedade capitalista que lhe acompanha, incluindo a proposta de transformação da vida cotidiana, abolição da burocracia, superação do bloco progressista (esquerda).

    A ruptura com o paradigma reprodutivista se manifestou com o próprio movimento radical dos estudantes e operários. O paradigma reprodutivista, que se manifestava concretamente através de várias ideologias, com destaque para o estruturalismo, amplamente hegemônico na sociedade francesa, entra em crise¹⁰, pois seu anistorismo é refutado praticamente pelo movimento estudantil e operário, que reafirmam a historicidade e a possibilidade da revolução social. A crise do paradigma reprodutivista abre espaço para uma mudança cultural que permite, novamente, pensar a transformação social radical e total, o que estava, nesse momento, restrito a poucos intelectuais, militantes e grupos políticos. Ela foi uma condição de possibilidade para a retomada do pensamento revolucionário.

    A articulação entre movimento estudantil e movimento operário é outro elemento fundamental que possibilita a emergência do marxismo autogestionário. O bloco revolucionário durante a estabilidade do regime de acumulação conjugado estava muito debilitado e a ascensão e radicalização do movimento estudantil permitiu seu fortalecimento, bem como a hegemonia conquistada pela tendência revolucionária no seu interior permitiu uma articulação com o movimento operário. Este vinha esboçando uma radicalização, mas foi somente com as lutas estudantis, no caso francês, que ele conseguiu realizar sua autonomização. A radicalização estudantil e a autonomização proletária reforçaram o bloco revolucionário, aumentando sua força, entusiasmo e quantidade, bem como a superação das ambiguidades presentes na sua maioria antes de Maio de 1968. As lutas operárias, expressa na greve de aproximadamente dez milhões de operários, a maior na história da França, gerou um impacto na geração de militantes revolucionários que permitiram a ruptura com as ambiguidades por parte de muitos, bem como a adesão de novos militantes e radicalização intelectual. Assim como a autonomização do proletariado durante a crise do regime de acumulação extensivo possibilitou o marxismo original e a desestabilização do regime de acumulação intensivo e tentativas de revoluções proletárias possibilitaram o comunismo de conselhos, a autonomização do proletariado gerou o marxismo autogestionário¹¹.

    A emergência da ideia de autogestão é outro elemento fundamental para explicar a formação do marxismo autogestionário. A palavra autogestão emerge na antiga Iugoslávia (VIANA, 2013) e depois chega à sociedade francesa, em meados dos anos 1960 (ARVON, 1982; GUILLERM, BOURDET, 1976)¹², na qual alguns militantes, pensadores e grupos políticos começam a utilizar. A palavra ganhou destaque com o lançamento da revista Autogestion, cujo conselho de redação mostrava representantes de várias concepções e correntes políticas ao lado de intelectuais acadêmicos, tais como Jean Bancal, Yvon Bourdet, André Decouflé, Aser Deleon, Henri Desroche, Jean Duvignaud, Joseph Fisera, Daniel Guérin, Serge Jonas, Henri Lefebvre, Chaterine Levy, Albert Meister, Pierre Naville, Michel Raptis, Yves Sartan¹³. A revista, por causa da confusão em torno do seu nome, alterou seu título para Autogestion et Socialisme¹⁴.

    Tanto na revista quanto na sociedade francesa em geral, o significado da palavra não era unívoco, mas apontava geralmente para uma concepção global de sociedade (tal como se proclamava a Iugoslávia) e era usada por sociólogos e círculos políticos, e é nesse significado de sociedade, que seria equivalente a comunismo

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