Pés que tocam o céu
De Rafaela Cruz
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Pés que tocam o céu - Rafaela Cruz
A primeira pessoa identificada com mutação nasceu numa pequena cidade do interior logo
após a quinta guerra. Uma menina veio ao mundo com a pele num tom levemente azulado. Foi
uma febre na mídia o bebê azul! Mas depois de meses a pele da criança ficou cada vez mais
azul, o que preocupou os pais, que começaram a esconder a filha de todos. Os médicos não
conseguiam descobrir o que havia de errado com a menina, seus exames eram totalmente
normais e saudáveis.
Quando a menina, de nome Ana, tinha três anos, ela caiu na piscina de casa e ficou lá por
quase uma hora, o pai a resgatou e a menina parecia tranquila, não havia se afogado! Só
então, os pais perceberam as discretas brânquias no pescoço da menina, que tinha a
capacidade de respirar na água.
O governo descobriu outras crianças, tão diferentes quanto Ana, que corriam em velocidade
sobre-humana, voavam, desapareciam, eram fortes! As pessoas passaram a ter medo das
crianças estranhas que nasciam por todos os lados, acreditavam que faziam parte de um erro
genético causado pela poluição da quarta guerra. Foram chamados de aberrações, capturados
e presos em um presidio de segurança máxima. Alguns foram mortos pelo próprio governo ou
pela população.
As pessoas especiais eram esperançosas, mesmo após anos de tortura, sofrimento e
humilhação, vivendo mais a margem da sociedade que os pobres, se escondendo e torcendo
para não serem mortos pelos pais ou vizinhos, fizeram uma rebelião na prisão e fugiram ou
morreram tentando, o dia foi um marco na história, conhecido como o Dia da Liberdade
.
Muitas décadas se passaram desde então. As aberrações continuaram se escondendo e
fugindo, temendo o ódio e preconceito da sociedade em que viviam. Uma sociedade dividida
pelos dons, onde quem os possuía era morto apenas por sua existência. As aberrações
continuavam nascendo desenfreadamente, era o maior medo dos pais, que seus filhos
tivessem dons, chegavam a abandonar seus bebês. O presidio se enchia de aberrações, quanto
mais se escondiam ou fugiam, mais eram capturados.
Tesla conhecia essa história de cor, lia nos livros da estante de seu falecido pai. Ela nunca
conheceu ninguém com algum dom assim. Vivia trancada em sua casa. Seus pais nunca lhe
deram um motivo para ela viver isolada do mundo, chegou a pensar que também fosse uma
aberração, mas nunca encontrou habilidade nenhuma em si mesma. A mãe dela, Anabel,
passou a trabalhar fora depois que seu marido morreu, mas seu salário não era o suficiente
para manter a casa moderna e a herança de Fernão foi bloqueada, só podendo ser usada por
Tesla quando ela atingisse a maior idade. O governo pagava famílias para manterem órfãos,
por isso Anabel adotou três meninas e um irmão, que era adulto, mas precisava do abrigo. A
ideia inicial não era essa, e pareceu catastrófico juntar tantas crianças na casa, mas a senhora
Solis pareceu amar a família quando os conheceu e estava certa de que ter mais crianças em
casa faria bem à filha.
Tesla não via a hora de conhecer pessoas diferentes que viveram fora do seu quintal, com
experiencias novas e inéditas. Ela amava a ideia desde que sua mãe anunciou. Não conseguia
parar de fantasiar sobre as órfãs. Tesla viveu reclusa por toda a sua vida, só tendo visto o sol
através das janelas e do quintal dos fundos, que tinha muros altos. Toda a visão que tinha da
cidade vinha dos telhados que enxergava. Era uma amante dos livros, afinal, era tudo o que
tinha, os livros de sua limitada biblioteca, melhor dizendo, estante no escritório do falecido
pai. E a televisão, onde se ocupava com as novelas, tanto antigas como as modernas e a
internet. Infelizmente, ela se considerava uma alienada, só havia vivido através das páginas e
das expressões dos atores, só conhecia as histórias e os romances. Mas a sua geração não era
muito diferente, viviam atrás de telas por escolha própria, presos a um mundo virtual, sem
saber diferenciá-lo da realidade.
Tesla se preparou durante toda a manhã. Assou bolinhos de ameixa, uma das poucas receitas
que sabia fazer sem precisar de um pacote de mistura instantânea. Ela se sentou na mesa
quando tudo ficou pronto e encarou uma chama solitária no fogão, onde aquecia o chá. Sua
mãe não gostava que ela usasse o fogão a gás, preferia o de indução, no qual o aquecimento
não exigia fogo de verdade. Mas, Tesla gostava de coisas antigas, menos digitais e
instantâneas, um pouco mais arcaicas e gostava do fogo e da sensação de conforto que a
chama trazia. Ela se sentia mais próxima do mundo de verdade.
Ela desligou o fogão antes da mãe chegar com os novos moradores e se sentou imóvel na
cozinha. Não era do tipo rebelde, sempre aceitava tudo o que lhe era imposto. E desobedecer
Anabel não era um costume muito habitual para ela.
A senhora Solis era uma mulher alta e enrugada, com um ar sério que lhe envelhecia ainda
mais, se não soubessem, os órfãos diriam que ela era avó de Tesla. A mulher entrou pela porta
da frente primeiro e observou os hospedes deixarem a pouca bagagem no chão da sala, era a
principal característica da mulher, parecia observar a tudo e a todos, nada escapava de seus
olhos e de seu julgamento.
A casa era pequena, porém moderna, continha todos os eletrodomésticos mais recentes
lançados no mercado. Anabel gostava da praticidade. A sala e a cozinha ficavam no térreo, três
quartos no segundo andar, um sótão e um porão que era usado como escritório pelo falecido
Fernão Solis. Tudo na casa era cinza e metálico, até os tapetes e estofados eram em cores frias.
Os órfãos não ficaram abatidos com o desconfortável ar da casa, mas seguiram para a cozinha
como ordenado pela mulher mais velha.
Sentada na mesa de seis lugares estava Tesla, que balançava os pés animada, na sua frente
uma jarra de limonada e os bolinhos, que ela mesma preparou. As três meninas desconhecidas
sorriram e se sentaram em ordem de idade, um costume adquirido com os anos em abrigos.
- Olá! - Tesla sorriu.
- Oi! Eu me chamo Estefânia. - a primeira menina anunciou.
- Eu sou a Esther, tenho 12 anos recém completos e a Estefânia tem 7!
- Eu me chamo Emma. Aquele é nosso irmão …- ela apontou para o garoto que parou de pé na
parede com os braços cruzados.
-É o Edmundo! - as três meninas sussurraram juntas rindo.
O garoto levantou dois dedos e fez um gesto que indicava um cumprimento. Ele estava atento
a conversa, mas não esboçava reação, como se não fizesse parte da cena, como um fantasma
assistindo uma memória.
- Mamãe disse que você tem a minha idade. É verdade? - Tesla perguntou curiosa, colocando
as mãos na mesa e esticando o corpo para frente.
- Bem, eu tenho 14 e o Ed tem 17. - Emma respondeu apontando para si e para o irmão
respectivamente.
Os quatro órfãos eram irmãos, Edmundo já era maior de idade, mas não era considerado
capacitado para cuidar das irmãs. Tesla os observou atentamente enquanto se apresentavam.
Não eram parecidos apesar de todos terem olhos indiscutivelmente verdes, como se todos
fossem manequins feitos do mesmo material, mas em moldes diferentes. Era impossível não
saber que eram irmãos, mesmo tão distintos entre si. Edmundo era alto e magro, magro
demais, muito pálido também, tinha os cabelos castanhos caindo sobre os ombros, lhe davam
um ar desajeitado, tinha enormes olheiras marrons, parecia cansado, mas se manteve em pé,
recostado na parede. As meninas na frente de Tesla pareciam mais animadas e saudáveis. A
mais nova, Estefânia tinha o cabelo avermelhado e ondulado, era pequena e ágil, sorria mais
do que deveria e falava com um ar tão infantil que Tesla chegou a se perguntar se não era mais
nova do que disseram. Esther era muito alta, quase da altura da irmã mais velha, tinha ombros
largos, a pele morena e os cabelos negros, a mais diferente entre as irmãs, apesar do formato
do nariz e da boca serem os mesmos. Emma era franzina e educada, o cabelo também
castanho avermelhado foi raspado recentemente, mas ela tinha traços tão femininos que nada
a poderia deixar feia. Na verdade, Tesla gostava da aparência da garota e a considerava a mais
bonita entre as irmãs. Achava que Esther parecia uma amazona, Estefânia uma pequena
fadinha da alegria e Emma uma princesa viking. Era assim que ela as chamava na mente,
mesmo que não dissesse em voz alta. Se as perdesse, seria assim que as descreveria.
- Eu sou Tesla. - ela disse por último.
- Como o cientista? - a mais nova perguntou com os olhos brilhando.
- Sim. Meu pai era um homem da ciência e achou o nome apropriado para mim.
- E onde está o seu pai?
- Ele morreu no ano passado. - Tesla respondeu firme - Foi eletrocutado por uma aberração
que ele estudou.
- Nossa mãe também morreu. Eu não lembro dela, faz realmente muito tempo. - Estefânia
disse triste, colocando as mãozinhas sobre a mesa.
- Apenas eu e Ed nos lembramos dela. - Emma empurrou um bolinho para a pequena irmã.
- E o pai de vocês? Também morreu?
- Nós não temos um pai. - as órfãs responderam em uníssono.
- É impossível não terem um pai. - Tesla balançou a cabeça.
- Nossa mãe era prostituta, não temos pai e nem sabemos quem são os nossos pais. - Edmundo respondeu pelas irmãs. Era a primeira vez que ele falava desde que entraram.
- Não consigo nem imaginar como deve ser. - ela olhou para os pés, mas levantou a cabeça
entusiasmada - Podem me contar?
Emma deu uma gargalhada alta e corou. Nenhum dos irmãos era tão espirituoso quanto ela.
Apesar do jeito marrento, Emma era amável e comunicativa. Tesla sorriu quando a garota
começou a contar as histórias sobre a própria mãe.
Edmundo achou um emprego num mercado na primeira semana. Era esforçado, falava pouco,
mas trabalhava muito. O combinado com a senhora Solis era de que ele trabalharia para ajudar
com as despesas da casa e em troca ela o deixaria dormir na sala.
Tesla implorou para que Emma dividisse o quarto com ela, contrariando a mãe, que já havia
preparado o quarto para as meninas órfãs se instalarem, mas cedeu aos desejos da filha ao
perceber que ela parecia mais feliz do que nos últimos anos. Até suas rotinas eram alternadas
de maneira a agradar a matriarca da família. As meninas mais velhas iam para a escola,
enquanto Estefânia estudava em casa com Tesla.
- Você nunca vai à escola? - a mais nova perguntou numa noite.
- Não. - Tesla respondeu temerosa.
- Por quê?
- Não incomode ela! - Emma reprendeu a irmã.
- Eu fui educada em casa, faço aulas online agora. Não posso sair. - Tesla ignorou a reprimenda
de Emma para a irmã.
- Por quê?!- as três órfãs gritaram de uma vez.
- Eu não sei. Ninguém nunca me disse. Também não posso conversar com as visitas, só com a
irmã da mamãe, tia Rose e a vovó Victoria. Antes o tio Biú também vinha aqui, mas ele não
vem desde que o papai morreu.
- Deve ser terrível viver isolada. - Emma falou mais pra si mesma que para os outros.
Nenhuma das crianças falou sobre o assunto quando a Senhora Solis entrou pela porta. Quase
não falavam na presença dela. A mulher causava um certo temor nas crianças e até mesmo na
filha.
- Do que falavam, Loretta? - a mulher perguntou.
- De um livro que Emma leu na escola.
- Vejo que vocês estão muito próximas! - a mãe sorriu.
De fato, Emma e Tesla já eram inseparáveis. Estavam sempre cochichando e fazendo coisas
juntas, ou aprontando. As irmãs mais novas tentavam seguir o ritmo das duas, mas sempre
acabavam excluídas. Senhora Solis se alegrava com a amizade entre as garotas porque Tesla
era uma menina muito solitária e tristonha.
Edmundo era o mais solitário, trabalhava o dia todo e evitava as tagarelices das meninas, às
vezes só aparecia depois do jantar e a maior parte de suas conversas eram com Emma e
Anabel. A senhora Solis não tinha problemas para cuidar de tantos órfãos, sentia até que sua
vida havia melhorado. Ganhou um ótimo ajudante em Edmundo, criando uma estranha
relação de cumplicidade com o rapaz e Esther a seguia como se fosse o sol, se esforçando para
ser amada.
Numa noite, Tesla acordou de um pesadelo, costumava ter sonhos ruins sempre, desde que se
lembrava. Ela se levantou em silêncio, Emma dormia profundamente, diferente dela, podia
dormir até durante um tiroteio. O copo estava vazio, então a menina resolveu descer para
pegar mais água. A casa estava escura e silenciosa, era madrugada. Tesla chegou à cozinha,
encontrou um vulto grande parado ao lado da geladeira, pensativo, mexendo um copo com a
mão ossuda. Era Edmundo. A garota acendeu a luz, o que o surpreendeu.
- Quer me matar de susto?! - ele protestou.
- Eu só vim pegar água, você que parecia um fantasma parado aí no escuro.
- Não consegue dormir? - ele levantou a sobrancelha.
- Não.
- Percebi que você sempre desce para a cozinha nesse horário. Tem algum problema com o
sono? - Edmundo podia ser silencioso e ausente, mas era muito mais observador que qualquer
outra pessoa.
- Não. Eu não sei. - ela encheu o copo de água e tomou metade - Eu tenho pesadelos, muitos,
o tempo todo, um sono realmente muito conturbado. Meu pai costumava ler para eu dormir,
isso ajudava, mesmo depois que eu cresci, mas aí ele morreu e ninguém mais leu para mim.
Minha mãe não é muito de gastar a madrugada conversando comigo.
- Eu sinto muito.
- Tudo Bem. Pode conversar comigo? Isso ajuda um pouco. - ela se sentou na cadeira mais
próxima sem dar oportunidade para Edmundo recusar.
- Bem, o que você quer que eu faça?
- Pergunte alguma coisa. Se possível, algo idiota e simples. Vem! - ela deu tapinhas na cadeira
ao lado em convite para ele se sentar.
- Loretta é um apelido?
- É meu último nome. Era o nome da minha irmã. Eu não a conheci, ela morreu antes de eu
nascer, quando tinha quinze anos. - ela fixou o olhar na parede tentando lembrar do que sabia.
- Eu… eu não...não sabia…- ele gaguejou arrependido.
- Não tinha como saber. Minha mãe não fala sobre isso. Ela só me disse a origem do nome.
- Deve ter sido difícil para a sua mãe perder essa filha. Ela parece tão apegada a você.
- Foi mesmo. Eles nem esperavam mais um bebê. Foi uma surpresa minha mãe engravidar, ela
já tinha passado dos trinta e cinco. Meu pai costumava dizer que eu era um milagre de Natal,
porque eu nasci no Natal. Meu aniversário é daqui dois meses, vou finalmente completar
quinze anos. - ela ficou empolgada de repente.
- Está feliz com a proximidade do seu aniversário? - ele perguntou curioso com o brilho nos
olhos dela.
- Sim! Minha mãe prometeu que quando eu fizesse quinze anos poderia dar uma volta lá fora.
- Ela esperou quinze anos para te deixar dar uma volta? - ele ficou surpreso, ou indignado,
Tesla não sabia dizer.
- Ela é superprotetora. - a garota deu de ombros.
- Ela é um pouco exagerada com relação a você.
- Acho que também era assim com a minha irmã. Eu ouvi meus pais brigando uma vez. Eles
também a mantinham trancada em casa. Acho que a Loretta fez coisas muito ruins antes de
morrer. O jeito como falam dela. Meu pai até mandou levarem ela para o presidio de
aberrações.
- Ela era uma aberração? - ele inclinou o corpo para frente.
- Sim. Uma fria. - ela cochichou.
- E você? Também tem um dom?
- Não! Achava que sim, mas não tenho. Sou totalmente normal e sem graça. - ela colocou as
mãos no colo e se encolheu.
- Tem certeza? Posso confiar que não vai congelar meu coração? - Ed pegou a mão dela e a
pousou sobre o próprio peito, fazendo uma careta de medo.
- Não! - ela riu.
Edmundo segurou a mão da menina por um tempo, massageando uma cicatriz que dividia a
mão esquerda de Tesla, como se tivessem tentado arrancar seus dedos. Ele puxou a mão dela
para a pouca luz que entrava pela janela e analisou o corte.
- Como você fez isso?
- Eu prefiro não dizer. - ela puxou a mão repentinamente.
- Okay. Vou dormir. Faça o mesmo.
- Tão cedo? - ela fez biquinho.
- Eu trabalho, preciso acordar cedo amanhã.
Depois daquela noite Tesla passou a nutrir um carinho especial por Edmundo. Todas as noites
ela tinha pesadelos e descia para cozinha e em quase todas as vezes ele conversava com ela
para a ajudar a se acalmar. Passou a ser um hábito. A menina ficava até triste quando passava
pela sala e o rapa estava dormindo no sofá, mas ela entendia que ele estava cansado e nunca o
incomodava.
A primavera sempre fazia o quintal da casa Solis ficar colorido e bonito. Tesla gostava de ficar
na janela do quarto olhando para os canteiros plantados pelo pai. Ela tinha muitas lembranças
dele, eram próximos. Se ela se esforçasse poderia enxergar o pai ajoelhado no canteiro de
margaridas, com uma revista de jardinagem e o regador.
- Não vai me ajudar? - ele olhava para ela.
- É claro!
- Fez suas tarefas? Vou querer ver todas mais tarde.
Fernão sempre deixava várias lições para Tesla, a fazia estudar o tempo todo. Ela engoliu em
seco pensando nas tarefas que nem existam mais. Uma lágrima ameaçou cair.
- O que está fazendo? - Emma entrou no quarto.
- Olhando o quintal. Me faz lembrar do meu pai.
Emma subiu na cama atrás dela e a abraçou. As duas permaneceram assim por um tempo. A
órfã parecia sempre saber o que dizer e até o momento de ficar quieta. A simples presença
dela já acalmava Tesla, que se sentia compreendida por Emma.
- O que veio fazer aqui?
- Sua mãe está te chamando para o almoço. Edmundo fez carneiro assado. - ela falou sem
soltar a amiga.
- O que ele faz em casa?
- Hoje é domingo, Tesla. Ele não trabalha hoje.
- Verdade! Eu sempre perco a noção do tempo. - ela se virou para descer da cama - Não
aguento mais comer carneiro.
- Sua mãe não gosta da carne bovina vendida no mercado. Ela diz que não são animais de
verdade, são clones.
- Carneiros também são clonados hoje em dia. Todos os bichos são.
- Ela compra carne de carneiro numa criação especial.
- Como você sabe?
- Eu vou com ela fazer compras durante a semana.
- Ah, claro! Você pode sair. Nunca fui ao mercado, sabia?
- Vou pedir para a sua mãe deixar eu te levar para dar uma volta no parque esta tarde. - Emma
saltitou para alcançar Tesla nas escadas.
- Ela não vai deixar. - Tesla suspirou.
- Não custa tentar.
As meninas entraram na cozinha da casa. Senhora Solis já estava sentada na mesa e sorriu ao
vê-las passar. A mulher serviu todas as crianças, estava de bom humor. Desde que Fernão
morreu, a mulher parecia sempre estar de bom humor, a não ser quando a filha chorava ou
sofria por causa da morte do pai. Ela não sabia lidar com Tesla e nem com seu luto.
Emma esperou alguns minutos para perguntar:
- Posso levar a Tesla no parque mais tarde?
- Não. Não é bom que ela pegue friagem.
- E se eu levar elas no cinema? Posso usar o carro. - Edmundo a apoiou.
- Tesla não deve sair de casa. É melhor para ela ficar segura aqui.
- Ela está doente? - Estefânia perguntou com preocupação, compadecendo todos da mesa
com sua inocência.
- Não, querida. No momento certo ela vai sair. É uma menina muito frágil para esse mundo em
que vivemos.
- Eu não sou frágil, mamãe.
- É um pouco. Emotiva, magrela, fraca. Não pode sair ainda. Eu quero te proteger, meu bem.
Não posso perder você também. - Anabel acariciou a bochecha da filha.
- Talvez esteja protegendo demais. - Emma sussurrou, mas a mulher ouviu.
- Não tenho culpa que ninguém protegeu vocês quando crianças. Eu não vou lançar minha filha
lá fora. Ela vai ficar bem aqui dentro.
- É tão ruim assim? - Tesla levantou a voz.
- É! Meu amor, existem criaturas terríveis e assassinas por aí. As aberrações são monstros
horrendos. Não quero que você seja morta como o seu pai.
- Loretta era assim? Monstruosa e assassina?
- Não vamos falar disso, querida.
- Você devia ouvir a sua mãe. Ela sempre está certa. - Esther apontou o garfo para Tesla.
- Isso! Escute a Esther. Ela é sensata.
- É claro! Ela faz tudo o que você manda. Lambe o chão que você passa. Não é sensata, é
obediente.
- E você é insensata por ser tão insolente, Tesla!
- Podemos assistir novela? Você gosta de novela, né? - Edmundo interrompeu antes que uma
briga começasse.
- E você gosta de novela, Edmundo? - Tesla levantou a sobrancelha de forma desconfiada.
- Eu aceito fazer qualquer coisa que mantenha vocês caladas. - ele apontou para as meninas
na mesa.
- Não sei o que eu faria sem vocês! - Anabel sorriu para Esther e Edmundo - Podem fazer o
que quiserem do resto da tarde.
- Vou ler. Papai ficaria magoado se me visse assistindo novela antes de terminar a lição de
casa.
- Ele não é mais o seu professor, querida. Pode descansar.
- Descanso é galardão para os trabalhadores, sem trabalho, sem descanso. Vou estudar. É o
que o meu pai me mandaria fazer.
- Você sabe que eu não sou boa em te preparar lições.
- Tudo bem. Eu vou usar o material do escritório do papai. Posso?
- Claro. Isso pode.
- E posso pegar algum livro antigo no sótão?
- De jeito nenhum. Não há nada de interessante lá.
Tesla bufou, mas aceitou. Ela passou a tarde estudando os idiomas mortos. Depois da nova
divisão de países, o mundo todo passou a falar um único idioma, mas Fernão gostava que Tesla
aprendesse sobre as culturas antigas, a história, a língua. Ela ainda se sentia presa aos
costumes do pai, como se o fantasma dele estivesse à espreita observando a casa.
- Não vai descer? - Edmundo parou no batente da porta do quarto.
- Vou terminar essa lista de exercícios primeiro. - ela respondeu sem desviar o olhar para
encará-lo.
- É da escola? Você faz aulas online, não é?
- Sim, eu faço aulas online. Não, isso não é para a escola. Estou estudando porque quero. Já
terminei toda a minha lição de casa.
- Para um pouco! Não precisa se esforçar tanto. Vai fazer faculdade?
- Vou. Quando eu fizer dezesseis.
- Estuda tanto para o vestibular?
- Não. Minha mãe não me deixaria ir pra faculdade. Devo estudar pela internet, então não
preciso passar em nada.
- Não há motivos para você estar presa no quarto estudando em pleno domingo?
- Meu pai me ensinou que eu devo me esforçar sempre. Conhecimento é poder.
- Ele me parecia ser bem rígido.
- Ele era meu amigo.
- Ele te deixava sair?
- Também não. Ele deixava o meu dia melhor. - ela continuava com os olhos fixos no caderno.
Edmundo ficou mudo, mas continuou encostado no batente da porta observando Tesla
escrever furiosa num caderno. Ela estava tão concentrada que o ignorava.
- O que você está escrevendo?
- Estou anotando umas teorias sobre o dom do toque gelado, baseada nas anotações do meu
pai.
- Genética?
- Sim. Eu gosto. Eu seria médica como ele, mas não sei se vou poder atender pacientes tão
cedo.
- Ele era médico?
- Geneticista. Também era obstetra.
- Interessante…
Os dois voltaram a ficar em silencio. Edmundo assobiava para chamar a atenção.
- Bem, eu vou te fazer companhia então. - ele pulou sobre a cama.
- Não precisa.
- Eu posso ficar aqui te observando o dia todo.
- Deve estar passando algum jogo estupido na televisão.
- Eu não ligo. Nunca tive televisão para ser apegado nessas coisas. Nem quando morei com o
senhor Kim.
- Esse é um momento em que eu quero ficar brava e sozinha! Pode sair? Por favor? - ela
finalmente largou o caderno e se virou para ele.
- Nunca pensei que ficaria tão feliz em te ver trovejar. Calma como uma tempestade… é assim
que eu gosto!
- Você está aqui apenas para me irritar?
- Geralmente é você quem vai me perturbar. É bom inverter os papeis de vez em quando.
- Eu nunca te acordo.
- Não disse isso. Também não acho ruim, então não pode ser ruim agora.
- Será que você pode me deixar viver a minha frustração em paz? - ela exclamou vermelha e
irritada.
- Não! Você até fica bonitinha assim, toda vermelha, parece um tomatinho. Sério.
Ela queria continuar praguejando não ter permissão para sair de casa, mas era difícil ignorar a
presença gentil de Edmundo e pior ainda era conter o sorriso que se formava em seus lábios.
Ela queria bater nele e gritar, descontar a raiva que sentia a tanto tempo, ao mesmo tempo
queria o abraçar.
- Não vai falar nada? Pode me xingar se quiser. Mas eu vou retrucar. - ela continuou em
silencio o fuzilando com os olhos azuis - Diga! É só gritar. Sai daqui, Edmundo! Inferno! Eu vou
acertar um raio na sua cabeça! Eu sou uma tempestade, idiota! - ele afinou a voz para imitá-la.
- Eu não falo assim. Eu nem praguejo.
- Ficaria bonitinha assim. Praguejando toda vermelha. Seria como um desenho animado.
- Você não vai me deixar em paz? - ela suspirou.
- Não!
- Nem se eu implorar?
- Eu estou aqui para te fazer feliz - ele abriu um sorriso preguiçoso e pendeu a cabeça para o
lado - ou perder a cabeça. Você escolhe.
Ela pensou por um momento. Sentiu a vontade de bater nele com o travesseiro, de puxar o
cabelo amarrado para trás e até de socá-lo, mas desistiu de todas as ideias. Acabou levantando
em silencio, abandonando os cadernos do jeito que estavam e desceu para a sala, para ficar na
companhia das irmãs adotivas. Edmundo sorriu vitorioso, observou ela sair do quarto, mas não
a acompanhou, aproveitou o quarto vazio e a acama confortável para dormir.
Era uma manhã morna de primavera. O clima de Astero sempre estava morno. Tesla gostava
de passar o dia de pijama, era confortável e quente. Ela estava deitada na cama, ainda
amanhecia. Talvez fosse sexta, ela nunca sabia. Emma andava de um lado a outro do quarto se
preparando para um dia perfeito de aula. Tesla considerava todos os dias da amiga perfeitos,
afinal era impossível ser infeliz sendo Emma. Além da liberdade, a amiga tinha beleza,
inteligência e simpatia. Mesmo que fosse o primeiro ano dela indo à escola e que mal
soubesse ler ou escrever, ninguém ligava para isso, afinal era Emma.
- É bom ser perfeita?
- Que? - ela grunhiu sem ouvir direito.
- Perfeita! Você é perfeita! É bom ser perfeita? - Tesla falou mais alto e devagar para ser
compreendida.
- Eu não sou perfeita. - Emma falou com naturalidade enquanto se olhava uma última vez no
espelho.
- Não importa quantos defeitos você tenha, é perfeita. Acredite em mim.
- Quantas pessoas você conheceu para chegar a essa conclusão sobre mim?
- Bem… - Tesla contou nos dedos apesar de já saber a resposta - 8. Se eu não contar conosco é
claro.
- Então o seu julgamento é impreciso. E não existem pessoas perfeitas, Tesla.
- Existem e você é uma delas! Mesmo que não acredite.
- Eu vou descer. Quer me fazer companhia no café da manhã?
- Está cedo.
- Então por que está acordada? - ela colocou as mãos na cintura.
- Eu não sei. - Tesla rolou para fora da cama.
As meninas desceram para a cozinha vazia. Edmundo passou por elas algumas vezes, sempre
como um vulto, arrancou um pedaço de pão da mão da irmã, beijou a bochecha dela e de
Tesla e saiu sem que elas pudessem protestar.
- Era o meu pão! - Emma gritou enquanto a porta se fechava, mas sabia que ele não a ouviu.
- Eu não sei se conseguiria ser como o Ed. Sempre correndo por aí. - Tesla observou ainda
olhando para a porta onde o rapaz acabava de passar.
- Ele sempre foi muito esforçado. E sua mãe não o deixaria ficar se ele não trabalhasse. É um
homem adulto.
- Eu sei. Acho que ela se apegou a ele.
- Também acho. Isso é bom.
- Pelo menos ela está feliz. - Tesla levantou as sobrancelhas e se concentrou no próprio prato.
- Você não está feliz? - Emma a observou.
- Às vezes sim, e outras não. É difícil dizer. Não sou capaz de dizer se sou feliz. Apenas estou
bem geralmente.
- Se eu puder fazer algo para te fazer feliz, me diga.
- A sua existência já torna o meu mundo todo cor de rosa. Não precisa fazer mais nada, Emma.
Apenas fique comigo.
- Eu vou ficar. Eu prometo. - ela segurou a mão direita de Tesla, passando gentilmente o
indicador pela cicatriz.
- Vamos falar de outra coisa? O que você vai fazer hoje? - Tesla se empertigou na cadeira e
abriu um sorriso largo e branco.
- Vou para a escola.
- Quero saber o que você vai fazer na escola. - Tesla fez uma expressão de tédio.
- Ah, sim! - Emma deu uma risadinha - Vou ter reforço antes da primeira aula, por isso chegar
cedo. Eu ainda estou bem atrasada comparada aos outros alunos. A professora de reforço é
engraçada. Ela está sempre mascando chiclete e fala de uma maneira preguiçosa.
- Deve dar muito sono! - Tesla fingiu mascar chiclete, imitando a maneira de falar da
professora.
As meninas riram. Emma explicou cada passo do dia. Falou dos colegas de sala. Contou das
intrigas e das aventuras. Tesla gostava de ouvir ela descrever a escola. Até parecia que
conhecia os alunos, como se fossem personagens de um livro que ela lia todos os dias. Fazia
parte da rotina falar da escola para Tesla. Era como abrir uma janela para ela. Como fazê-la
respirar depois de um afogamento. As conversas sempre eram longas e Tesla comentava sobre
tudo e todos. Tinha uma opinião afiada e romântica na maioria das vezes.
Mais tarde naquele dia, depois de fazer todas as atividades e enviar para o professor virtual,
Tesla se concentrou em Estefânia. Ela nunca deixava as lições acumuladas, diferente da
menina a sua frente, que parecia perdida.
- Entendeu? - Tesla perguntou após explicar o mesmo exercício pela terceira vez.
- Acho que sim. É para somar todos os números? - ela falava com as mãos na cabeça.
- Sim! A unidade, a dezena e a centena. Igual você fazia antes.
- Mas quatro mais quatro é oito e é fácil! Agora quatrocentos e quarenta e quatro é muito
difícil! - a voz dela ficava mais aguda a cada segundo.
- É a mesma coisa.
- Não! Tem muitos números!
- Faça um de cada vez. É igual.
Estefânia assentiu, mas continuou olhando para o caderno com as mãos na cabeça. Ela parecia
atordoada. Tesla abriu a boca para tentar explicar mais uma vez, mas a menina ergueu o lápis
e começou a contar nos dedos calmamente.
- É oitocentos e oitenta e oito! - ela gritou - Não é?
- Sim! E o resto? Tem mais sete contas.
A menina gemeu e voltou a colocar as mãos na cabeça, mas parecia mais confiante e logo se
pôs a fazer os exercícios. Tesla esperou, observando a pequena menina apertar os lábios de
vez em quando e riscar a folha com voracidade. Será que era assim que ela ficava quando
estudava? Não! Ela não apertava os lábios. Mesmo assim era interessante observar Estefânia e
imaginar outras pessoas fazendo suas expressões.
- Eu terminei! - ela levantou os dois pulsos cerrados para o alto e comemorou.
Tesla riu puxando a folha para si. Não levou nem um minuto para corrigir. Ela errou algumas
contas por não saber que devia subir um número e somá-lo com a dezena ou a centena. Era
engraçado ver suas reações conforme Tesla explicava o exercício novamente. Estefânia repetiu
as contas outras duas vezes até acertar.
- Muito bem! Dessa vez está perfeito.
- Eu consegui! - ela gritou mais uma vez.
A porta se abriu e Edmundo entrou meio desconfiado.
- Eu consegui! Acertei tudo! Todas as contas! E eram difíceis! Mas eu consegui! - a menina
correu para perto do irmão e começou a saltitar ao redor dele.
- Ótimo, Praguinha. Continue assim.
- O que faz aqui?
- Eu pedi para sair cedo no almoço. Esqueci de levar marmita. Tem algo para comer? - ele
caminhou até a cozinha.
- Vou fazer o almoço! - Tesla levantou e correu para o alcançar.
Ela vasculhou os armários e a geladeira. Havia comida instantânea de sobra, mas Edmundo não
gostava de quase nada. Tesla acabou fazendo a salada, para o convencer de que algo no prato
era de verdade.
- Essa comida mata, sabia? - ele fez uma careta enquanto encarava o rotulo do arroz.
- Mas é rápido de fazer. Só colocar agua e depois três minutos no forno microondas.
- Mata!
- O que diz o rotulo? - ela perguntou inocentemente - Tem algum veneno?
- Eu não sei. Não sei ler. Mas algo que não nasceu da terra e nem veio de um animal,
provavelmente é veneno.
- Por que sua mãe não te levou para a escola? Pelo menos você tinha idade para isso, não?
- Não há escolas nas cidades menores.
Tesla o encarou incrédula. Como isso seria possível? Ela sempre imaginou que havia escolas
em todos os lugares, como delegacias e hospitais. Não fazia sentido. A visão de mundo dela
era embaçada pelas novelas, onde os personagens eram sempre da classe média ou alta e
viviam nas grandes capitais. Ela não se recordava de ver um personagem pobre nos livros
modernos ou na televisão, também não se lembrava de conhecer alguém que não vivesse em
Astero. Não fazia ideia de como era não ter uma casa, ou viver numa cidade sem escola.
- Toda cidade tem escola. - ela disse depois de um tempo.
- Não tem não. Só as capitais e cidades importantes. As cidades trabalhadoras não têm escolas.
- Como não?
- Você não precisa saber ler para arar a terra ou pescar. E escolas são caras, não podem pagar.
- O governo não ajuda?
- O governo gosta de como as coisas são.
- Mas, vocês fazem aula online?
- Eu só vi um computador quando morei com o senhor Kim. Mas ele era médico e vivia em
Corry, a cidade das celeridades. Onde gravam algumas novelas.
- Eu não consigo imaginar uma vida sem conhecimento.
- Isso não é importante. - Edmundo falou de maneira calma porque realmente acreditava
nisso.
- É muito, muito importante. Você não entende agora porque te privaram disso, mas é muito
importante. - Tesla se virou segurando a panela quente nas mãos.
- Não é essencial para vida. - ele riu despreocupado.
- É sim! Como você acha que criamos tantas coisas importantes?
- Mas não mata não saber ler.
- O que você acha que é importante? Essencial para a vida?
- O trabalho. Você não morre de fome se trabalhar bem. É importante a família, vai precisar de
proteção quando não puder trabalhar pela própria sobrevivência. - os olhos verdes dele
queimavam conforme criava seus argumentos - Precisa ser forte para sobreviver. Esperto!
Tem várias coisas mais importantes que os livros. Coisas que aquecem o corpo e o estomago.
- Isso é terrível! - Tesla gemeu, mas não deu continuidade ao assunto. Ela sabia que não
poderia convencer Edmundo do que acreditava. Era difícil para ela imaginar que as pessoas
podiam ser tão ignorantes. O mundo passou a ser um pouco mais sombrio aos olhos dela
naquele momento e ela agradeceu nunca o ter visto. Imaginou o que acontecia no prédio do
governo em Tenassem, a capital do país. Um dia aquelas cidades foram vários outros países
destruídos pela quinta guerra. Ela pensou em quem eram os homens da quinta guerra, tantos
séculos atrás, que acreditavam que se tornariam uma nação forte e justa. Onde estava a
justiça?
Na primeira manhã de dezembro Tesla acordou cedo, pretendia fazer o café da manhã para a
família. Ela amava dezembro, era seu mês favorito, o mais divertido. Era também o primeiro
dia de férias para ela e para as outras meninas. O sol ainda estava nascendo, deixando tudo
um pouco iluminado. Ela desceu as escadas correndo e pulou sobre o sofá, mas Ed não estava
lá.
- Edmundo? - ela sussurrou.
Nenhum som, nenhuma resposta. Tesla se levantou devagar, cheirou o travesseiro de Ed e
olhou ao redor o procurando na escuridão. Ela andou sobre a ponta dos pés para a cozinha. A
janela estava aberta, uma enorme janela de alumínio que tinha vista para a cidade, a única que
não tinha telas, podia ver o sol nascendo e os telhados das casas. Ela parou para ver, o céu
alaranjado e a grande bola de fogo e gás subindo ao céu, era lindo…. De repente uma sombra
cortou o céu rapidamente. Tesla piscou várias vezes incrédula! Um vulto, um homem voando
tranquilamente pela cidade adormecida. Ela correu para o quintal dos fundos, segurando o
travesseiro de Ed nos braços. Quando a menina chegou no quintal seu susto foi ainda maior!
Edmundo era o homem voador.
Ele aterrissou graciosamente no meio das samambaias e levantou o rosto. Os olhos do rapaz se
arregalaram, até quase saírem das orbitas. Bem na frente dele, de camisola e agarrada a um
travesseiro, estava Tesla, testemunhando tudo.
- Tesla! - ele rompeu o silêncio.
- Edmundo! - ela respondeu.
- O que você viu…
- Eu não vi nada! - garota abriu um sorriso cumplice.
Ela estava em total desespero. Tentava pensar em todas as precauções que seu pai a ensinou
sobre lidar com aberrações. E se ela corresse? Ou se batesse nele? Mas só tinha um
travesseiro. O que faria? Estavam abrigando um monstro em casa! Pior! Podiam estar
abrigando quatro criaturas assassinas. O que ela faria? O importante naquele momento era
manter o sorriso e não fazer nada brusco.
- Que bom.
- Não vou dizer que você é uma aberração a minha mãe só porque você trouxe leite. - ela
olhou para a sacola e depois entrou, tentando disfarçar que tremia.
Era importante para Tesla parecer madura e corajosa como as mocinhas de seus livros, e ainda
mais importante, manter Edmundo sob controle. Uma aberração era uma criatura sorrateira e
malcriada. Tesla não conseguia acreditar que nunca percebeu que Edmundo era uma
aberração. Como teria deixado passar um detalhe tão grotesco? Ele era ignorante e silencioso,
mas nunca ameaçador, muito menos se parecia com um assassino.
- Você não devia estar na cama? - ele entrou atrás dela.
- Decidi fazer o café da manhã. Vai me ajudar?
- Claro! Mas antes eu tenho que tomar banho. - ele largou as compras na mesa.
Tesla observou o rapaz puxar a camisa, revelando as costas ossudas. Ele sumiu pela escada e
reapareceu poucos minutos depois, com o cabelo molhado e cheirando a amêndoa. Ela ficou
inquieta, não conseguia disfarçar sua vontade de cravar uma faca em seu pescoço e acabar
com o mal instaurado na casa. Ela se sentia desprotegida, mas ao mesmo tempo encantada.
Percebeu, de repente, que sentia inveja de Edmundo. Ele podia voa e ela não.
Para desespero dela, não sabia disfarçar suas emoções quando as sentia. Era transparente
demais. Como um vulcão sempre em erupção.
- Tesla?
- O que? - ela voltou do transe como se caísse de um pesadelo.
- Você está bem?
- Por que?
- Está segurando a faca com muita força. - ele apontou para a mão dela, onde o punho cerrado
com força ao redor de uma faca de manteiga começava a sangrar.
- Ah! - Tesla soltou a faca com um grito e esticou a mão na direção da pia.
- O que estava pensando? - ele se aproximou para ajudar.
- Nada!
- Está tão chocada assim?
- Bem, eu nunca vi uma aberração antes. - admitiu ela com certo sarcasmo.
- Mas não precisa ficar tão desastrada. Parecia que estava em surto.
- Talvez eu esteja.
- Está mesmo. - ele concordou balançando a cabeça enquanto esfregava os dedos dela
delicadamente.
- Eu sou uma idiota! - ela se referia ao fato de não perceber que Edmundo era uma aberração,
mas ele não percebeu de imediato.
- Isso é verdade. Mas você melhora com o tempo.
- Estou tão atordoada que nem consigo pensar no que fazer! Eu sou realmente muito frágil. Fui
criada para pensar rápido e estou aqui machucando a mim mesma. Tão burra! - ela usou a
mão livre para dar um tapa na testa.
- Muito burra!
- Pare de concordar comigo! Não vê que estou tentando pensar num jeito de me livrar de
você?
- Se livrar de mim? - ele a puxou para virar de frente para ele.
- É claro! Você é perigoso.
- Perigoso? - ele passou o polegar pela cicatriz de Tesla nas costas da mão direita enquanto
pensava - Você acha que eu sou perigoso? Acha que eu vou fazer mal para você?
- Acho! - ela puxou a mão para perto de si e se afastou alguns passos.
- Você mal consegue se manter de pé! Se eu não tivesse te parado teria arrancado os próprios
dedos. E pelo visto não é a primeira vez! Você sozinha já é perigosa para si mesma. Se acha tão
intelectual e superior, mas não consegue lidar com uma pessoa diferente! É como o governo e
os homens poderosos. Você os critica, mas é como eles.
- Eu não sou como eles.
- É! Você é! - ele levantou a voz e se arrependeu logo me seguida, poderiam acordar a casa
toda - Vou trabalhar.
- Como você pode enganar a todos desse jeito? É um criminoso. Suas irmãs também são…
- Aberrações? - ele passou a mão pelo cabelo comprido, nervoso - Não, elas não. Apenas eu. E
eu estou me protegendo. Não sou um criminoso, não matei e nem roubei. Nunca machuquei
ninguém que não merecia. Não pode me acusar de ser ruim só por eu ter nascido com um
dom.
- Não acho que seja ruim. Quero achar, mas não acho. - ela sussurrou envergonhada. Pensar
em Emma ou Estefânia a fez perceber que não eram pessoas más e nem jamais seriam, mesmo
que tentassem.
- Eu vou trabalhar, Tesla. - ele se virou, mas voltou - Não fale a ninguém sobre isso. Por favor?
Minhas irmãs irão ser jogadas na rua e …
- Eu não vou falar. - ela passou a andar de um lado ao outro - Eu deveria. Esse é o certo, te
denunciar. Mas, você não é e nem nunca foi perigoso e eu não entendo. Talvez eu esteja
esperando você revelar o animal que existe em você. Eu não sei.
- Tesla, eu não sou um animal! Me deixe provar para você. - ele segurou as pontas do dedo
dela e depois soltou.
- Eu vou te dar um voto de confiança.
Edmundo assentiu e saiu porta afora, se esquecendo de tomar café, esquecendo o boné e
talvez até do risco que corria. Desde muito antes de saber que ele era alguém ele já sabia que
devia temer os humanos normais. Quem não tinha dom, tinha ódio. Ele não conseguia se
lembrar, mas sabia que sua mãe já havia sido casada, quando jovem, adolescente. Ele sabia
que esse marido era o seu pai e que ele o queria morto. Sabia que seu próprio pai o queria
morto por ser uma aberração. Sua mãe fugiu com ele, sem emprego ou dinheiro, nada que
pudesse os assegurar, apenas o amor. Ele confiava que Tesla era como sua mãe. Que
enxergava além do que entendia. Acreditava que a misericórdia dela era maior que seu ódio e
que isso bastaria para a manter em silencio sobre seu segredo mais mortal.
Muitas horas depois, quando Edmundo já estava descansando em seu sofá, quieto, fitando o
teto, Tesla desceu sorrateira pela escada e se sentou no braço da poltrona ao lado dele.
- Me desculpe.
Ele a olhou surpreso, mas não disse nada. Não sabia o que dizer.
- Eu não quero o seu mal e nem te acho perigoso. Eu refleti o dia inteiro e cheguei à conclusão
de que eu estava errada. - ela apontou para si mesma.
- Isso é surpreendente!
- Eu fui preparada para matar pessoas como você. E agora, eu só quero que você fique vivo. -
ela sussurrou - Eu invejo você!
- Inveja?
- Sim. Eu queria ter um motivo para viver presa nesta casa além de ser muito frágil para o
mundo perigoso lá fora. Deve ser tão incrível voar! Você parecia tão rápido…
- Eu estava empolgado.
- É bom? Voar é bom?
- Maravilhoso! - ele sorriu, mas ao olhar para ela percebeu que estava triste - Um dia você vai
saber como é. Eu acho.
- Um dia, quem sabe, eu vou saber como é muitas coisas. Como andar na grama ou nadar
numa piscina. Ir ao médico…
- Médico?
- Eu acho legal tudo o que um ser humano normal faz e eu não. Até trabalhar ou ir para a
escola. O próximo ano eu vou ficar tão sozinha aqui.
- Vou comprar alguma coisa para você passar o tempo. O que quer?
- Eu tenho uma lista de livros. Não precisa comprar todos é claro, mas pelo menos um. - ela
abaixou e sussurrou para compartilhar um segredo - Meus pais sempre controlaram o que eu
podia ler ou assistir, até o tempo que faço isso ou o quanto fico na internet e que sites eu
entro. Eu tenho uma lista de livros que sempre fui curiosa para ler e ninguém deixou. Você
compra pra mim?
- Claro! Um para cada salario que eu ganhar, talvez dois. Eu não sei. Mas sua mãe não pode
saber!
- Eu que não vou falar! Vai que ela joga no sótão e eu nunca mais vejo minha listinha.
- Vai dormir, agora?
- Eu não sei… - ela se espreguiçou.
- Eu vou dormir. Boa noite.
Edmundo se jogou debaixo das cobertas e fechou os olhos. Tesla sorriu. Ela beijou a testa dele
antes de subir de volta para o quarto. Ele corou, mas ela não percebeu. O coração dele estava
sendo amolecido por uma menina temperamental.
As férias foram muito animadas, Tesla e Emma fizeram compras pela internet e plantaram um
canteiro de rosas no quintal. Tesla ensinou Esther a fazer bolo e corrigiu os exercícios que ela
mesma fazia para Estefânia. Elas tentaram vários hobbys juntas, mas não havia nada que as
quatro gostassem. Então Estefânia sugeriu que jogassem vídeo game, um jogo de dança! O
jogo logo se tornou o elo entre as quatro meninas. Elas realmente agiam como irmãs que
acabaram de se reencontrar, após uma vida inteira esperando. Tesla acreditava que eram
almas destinadas a viverem unidas.
Foi Edmundo quem contou para Emma que Tesla sabia seu segredo. Ela mesma fingia tão bem
que não sabia de absolutamente nada sobre ninguém que poderia ser um diário ou uma espiã.
Devido a criação rígida, ela adquiriu o hábito de descobrir coisas e fingir que não viu nada,
tinha uma discrição tão grande que chegava a parecer ingênua diante das pessoas, uma capa
para a sua mente cheia de ideias e descobertas.
- Você o viu voando! - Emma sussurrou quando passou pela porta do quarto.
- Do que está falando? - a menina tentou disfarçar.
- Você sabe que o Edmundo é uma aberração! - ela sussurrou ainda mais baixo, com medo que
as paredes pudessem ouvir.
- Não vou falar nada, se é isso que te preocupa. - a menina colocou uma mão o peito e
levantou a outra como um juramento.
- Eu sei, conheço você.
- Eu queria ser uma aberração também. Eu pensava que era, porque meus pais me
esconderam durante toda a minha vida, mas já perdi as esperanças a muito tempo. Sempre
quis saber como era para a Loretta, tem vários diários dela no sótão, mas minha mãe me
proibiu de pegar.
- Podemos pegar mais tarde e descobrir. - ela abriu um sorriso malicioso.
- O sótão fica trancado.
- Talvez, mas só talvez, eu tenha a habilidade de abrir portas.
- Você é perfeita. - os de Tesla brilhavam de entusiasmo.
Horas mais tarde as duas meninas se esgueiravam pela escuridão da casa na direção da escada
do sótão. Elas acordaram Edmundo para as ajudar, o pobre rapaz não teve escapatória.
- Eu preciso dormir! - gemeu ele.
- Já vai! Me ajude a alcançar a escada. - Emma apontou para a escada do sótão.
Edmundo era alto, não precisou nem se esticar para puxar a escada retrátil e a encaixar no
chão. As meninas saltaram de alegria, tentavam não fazer barulho a todo custo. Ele foi o
primeiro a entrar, puxando as garotas para cima e depois procurou a lâmpada pendurada no
teto.
- O que estamos procurando? - o rapaz perguntou girando a lâmpada para aceder a luz.
- Uma caixa de papelão com cadernos de capa vermelha. - Tesla descreveu se enfiando entre
as caixas da parede.
Ela já havia visto a caixa com os diários antes, quando criança. Chegou a tocá-los, mas sua mãe
surgiu rapidamente e levou os diários embora. Ela demorou a entender do que se tratavam.
Talvez só tenha percebido porque os cadernos tinham o nome de Loretta nas capas. Ela
tentava se agarrar a memória enquanto vasculhava as caixas do fundo do cômodo.
Segundos depois, Tesla deu um salto e pegou um quadro que encontrou no chão. Os outros
dois correram ao seu encontro preocupados que tivesse cortado o dedo ou encontrado algo
macabro.
- Não é possível! - ela sussurrou. - É a ….
- Loretta! - os irmãos se juntaram a ela.
Se Tesla não se conhecesse poderia dizer que eram a mesma pessoa, a foto de Loretta era
antiga, mas muito nítida, a menina devia ter doze anos, tinha os mesmos olhos azuis brilhantes
e cabelos loiros e ondulados de Tesla, os rostos eram parecidos, mas Loretta tinha sardas e
Tesla nunca teve sardas em toda a sua vida.
- Ela realmente se parece com você. - Emma falou em voz alta.
- Os diários estão ali. - Edmundo apontou para a caixa que estava atrás do quadro.
Eles acharam sete diários que correspondiam a sete anos, os sete anos antes de Loretta
morrer. Edmundo fez as meninas descerem e voltou para o sofá, apesar de se esforçar, ele
estava sonolento e não teria férias do trabalho tão cedo. Emma e Tesla levaram os diários para
o quarto e passaram a noite lendo, acordaram no meio da manhã do outro dia com Esther
gritando na porta do quarto. Emma dormiu segurando um diário, sentada na escrivaninha,
Tesla adormeceu deitada sobre os outros diários. Esther as observou despertar curiosa.
- O que estavam lendo?
- Ensaios sobre hemorragia. - Tesla gaguejou.
- Nojento! Por que?
- Eu quero estudar medicina. - Tesla deu um sorriso amarelo que fez Esther sossegar.
Horas depois as meninas estavam sentadas no sofá apoiadas uma na outra para não
desmoronarem de sono.
- O que descobriram? - Edmundo cochichou entre as garotas quando chegou no jantar.
A Senhora Solis estava ocupada preparando a salada e não pareceu ouvir a conversa. Os
adolescentes estavam sempre tentando escapar de seus ouvidos atentos e seus olhos rápidos,
muitas vezes a velha senhora parecia ser onipresente.
- Ela tinha oito anos quando começou a escrever. Ela escrevia porque se sentia sozinha. Ela
tinha as mãos tão geladas que podia congelar o que tocasse e não tinha controle sobre isso. -
Emma explicou, falando baixo o suficiente que apenas o irmão e amiga pudessem ouvir- O
Senhor Solis achava que poderia treinar ela para aprender a controlar o dom. Ele achava que
ela poderia se tornar ainda mais forte com treinamento. A Senhora Solis tinha muito medo de
que os agentes do governo descobrissem ela. A Loretta sempre ouvia os pais brigando e ela
tinha muito medo. Ela usava luvas de borracha o tempo todo. Ela ia para a escola por um
tempo, mas ficou perigoso, as outras crianças começaram a zombar dela e queriam tirar suas
luvas quando estava calor. A senhora Solis a tirou da escola imediatamente e passou a educá-la em casa. Quando ela fez onze anos ela fez amizade com um vizinho que morava na casa ao
lado, ele era dois anos mais velho que ela e achava ela uma garota esquisita. A casa foi
derrubada e não sabemos o porquê, mas eles eram amigos e conversavam muito. Só lemos até
aí.
- Passaram a noite lendo? - ele reparou na cara de sono das meninas.
- Sim. Teríamos lido mais durante a tarde, mas as meninas não nos deixaram em paz. - Emma
respondeu revirando os olhos.
- Você está tão quieta. - Edmundo empurrou Tesla com a mão.
- Ela está distraída. - Emma riu.
- Eu só estou com muitos pensamentos depois de todas as descobertas. - Tesla balançou a
cabeça.
- Pensamentos com o que? - Senhora Solis surgiu atrás das crianças.
- Meninos! - Tesla respondeu sem pensar.
- Meninos? - a mãe abriu a boca num perfeito o
.
- É.- Tesla ficou vermelha e arrependida na mesma hora. - Emma estava me falando dos
garotos bonitos que tem na escola e eu nunca terei a oportunidade de conhecer. Não é?
- É! Muitos bonitos! Acho que estou até apaixonada. - Emma abriu um sorriso amarelo que
pouco convenceu.
- Meninos são problemas! - a mãe puxou as duas meninas do sofá.
- Eu adoraria ter o problema de estar apaixonada. Mas eu sei que jamais vou conhecer alguém
interessante ou sair desta casa. - Tesla fez uma careta triste para a mãe.
- Eu vou escolher um ótimo marido para você um dia. - Anabel sorriu sonhadora.
- A senhora controla muito a vida da Tesla. - Emma defendeu a amiga.
- Eu sou mãe dela e faço o que é melhor para ela.
- Talvez o melhor seja deixá-la enfrentar o mundo.
- Isso é o pior para ela! Vai machucá-la terrivelmente.
Emma bufou, mas não teve forças para discutir ou reclamar. Nenhuma das crianças falou
qualquer coisa durante o jantar. Senhora Solis ficou com um péssimo humor. Mas depois da
estranha conversa com a filha, ela passou a planejar casar a garota com Edmundo, considerava
o rapaz muito inteligente e trabalhador, ele era tão fácil de manipular quanto a filha e aceitaria
de bom grado a manter dentro de casa. A mulher até separou dinheiro para pagar a Edmundo
pelo favor.
Naquela noite, Tesla e Emma terminaram de ler os diários de Loretta. Foi uma tarefa cansativa
e entediante, levou horas e ambas as meninas tinham sono. Descobriram que Loretta fugia
para o quarto do tal vizinho durante a noite e seu pai descobriu. Ela ficou de castigo por
meses, trancada no quarto com a janela lacrada, a família do vizinho se mudou antes do
castigo dela acabar e ela estava certa de que a culpa era do pai que trabalhava para o governo.
- Aqui! - Tesla levantou o caderno para cima e começou a ler - Esta manhã é com toda a
certeza a mais terrível de toda a minha vida. Eu achava que o pior momento havia sido quando
eu fui expulsa da escola por bater numa garota, bem, não bater, mas dar um tapa na mão dela.
Eu só não queria que ela puxasse minhas luvas. O dom gelado deixou sua marca queimando a
pele dela. Eu me senti muito injustiçada, mas meus pais não fizeram nada. Eles ficaram
aliviados em me ver fora da escola. Eu achei que nunca mais me recuperaria daquele dia. E
então… Miguel e toda a sua família somem! Eu não sei o que fazer. Não posso gritar e nem sair
para o procurar. Só resta essa vista imunda na minha janela. A casa dele foi demolida e o
terreno está lamacento e vazio. Uma sensação estranha me embrulha o estomago sempre que
olho. Tenho medo de que papai os tenha mandado prender. Os irmãos de Miguel já são
maiores de idade. Isso me preocupa muito. E se ele foi jogado em algum abrigo para menores?
Deve estar com muita raiva de mim, afinal a culpa é minha. Eu me deixei ser flagrada saltando
para dentro do quarto dele. Ele até era bom escondendo a prancha que usávamos para
atravessar de uma janela a outra, mas eu me esqueci de fechar a porta. Não sei como tudo
aconteceu, fui trancada no porão. Meus pais mantém uma cama lá, parece realmente uma
cela. Não tem janelas. Posso dizer que não vi o sol nascer quadrado, não vi absolutamente
nada por semanas. E agora a casa do Miguel sumiu. Ele se foi. Eu sei que nunca mais o verei.
Isso me dói. Arde no meu coração não me reencontrar com meu melhor amigo. Eu achava que
ele era o meu príncipe encantado e que me salvaria dessa prisão de gelo um dia. Isso não vai
acontecer. Eu nunca mais o verei. Pelo menos posso dizer que vivi um amor na vida, ainda que
pouco recíproco. Miguel me considerava uma amiga, o que é uma pena. Talvez, se ele tivesse
se apaixonado por mim teria me tirado daqui antes. Quando eu percebi que ele havia sumido
eu entrei em pânico. Foi ontem, eu acho. Meus pais me apagaram com algum calmante. Acho
que fiz uma trilha de gelo por toda a casa. Não tenho certeza. A seringa me atingiu antes de eu
saber o que ocorria ao meu redor. Tudo o que eu enxergava era a dor que eu sentia naquele
momento. Acho que o gelo, como parte de mim, sabe que eu morri ontem.
Tesla fez uma pausa, olhando para a página que tinha acabado de ler com tristeza. Ela olhou
ao redor tentando imaginar o lugar em pedaços ou congelado.
- Ela parecia tão triste.
- Ela parece ter sofrido bastante. - Emma respondeu suspirando dramaticamente.
Nos últimos dois diários de Loretta ela passou a fazer mais poesias e pequenos contos e
evitava falar de sua rotina, apesar de ficar claro que ela vivia como Tesla, trancada na casa,
sem poder sair ou receber visitas. Ela brigava muito com o pai e seu dom vinha piorando, ela
congelou boa parte do quarto