Clamor e ditaduras no Cone Sul: documentação, memória e pesquisa
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Clamor e ditaduras no Cone Sul - EDUC – Editora da PUC-SP
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Maria Amalia Pie Abib Andery
EDITORA DA PUC-SP
Direção: José Luiz Goldfarb
Conselho Editorial
Maria Amalia Pie Abib Andery (Presidente)
Ana Mercês Bahia Bock
Claudia Maria Costin
José Luiz Goldfarb
José Rodolpho Perazzolo
Marcelo Perine
Maria Carmelita Yazbek
Maria Lucia Santaella Braga
Matthias Grenzer
Oswaldo Henrique Duek Marques
Frontspício© Ana Célia Navarro de Andrade e Heloísa de Faria Cruz. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Clamor e ditaduras no Cone Sul : documentação, memória e pesquisa / Ana Célia Navarro de Andrade ; Heloísa de Faria Cruz (orgs.). - São Paulo : EDUC : Associação de Arquivistas de São Paulo, 2020.
1. Recurso on-line: ePub
ISBN 978-65-87387-16-1 (Educ)
ISBN 978-65-991726-1-8 (ARQ-SP)
Disponível para ler em: todas as mídias eletrônicas.
Acesso restrito: http://pucsp.br/educ
1. Ditadura - Países do Cone Sul. 2. Países do Cone Sul - Politica e governo. I. Andrade, Ana Célia Navarro de. II. Cruz, Heloísa de Faria. III. Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Central de Documentação e Informação Professor Casemiro dos Reis Filho
.
CDD 320.98
321.9098
Bibliotecária: Carmen Prates Valls – CRB 8A./556
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
José Luiz Goldfarb
Produção Editorial
Sonia Montone
Revisão
Zeta Studio
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Waldir Alves
Imagem de capa cedida pelos autores
Administração e Vendas
Ronaldo Decicino
Produção do e-book
Waldir Alves
Revisão técnica do e-book
Gabriel Moraes
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
Associação de Arquivistas de São Paulo
Diretoria
Ana Célia Navarro de Andrade (presidente)
Clarissa Moreira dos Santos Schmidt (vice-presidente)
Camilla Campoi (secretária)
Raquel Oliveira Melo (tesoureira)
Conselho Fiscal
Ana Maria de Almeida Camargo
Heloísa Liberalli Bellotto
Johanna Wilhelmina Smit
Avenida Prof. Lineu Prestes, 338, Térreo, Sala N
CEP 05508-000 – São Paulo – SP
Telefax: (11) 3091-3795
E-mail: diretoria@arqsp.org.br – Site: https://arqsp.org.br
Dedicatória
Dedicamos este livro à memória de
Jaime Wright, 12/07/1927 – 29/05/1999;
Paulo Evaristo Arns, 14/09/1921 – 14/12/2016; e
Roberto Grandmaison, 22/12/1942 – 11/10/2020.
Apresentação
O livro Clamor e ditaduras no Cone Sul: documentação, memória e pesquisa é um dos resultados do trabalho arquivístico de organização, complementação, preservação e disponibilização digital da documentação do Fundo Clamor – Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul – desenvolvido pelo Centro de Documentação e Informação Científica (Cedic/PUC-SP) com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Trata-se de mais uma vez tornar disponível aos pesquisadores e ao público em geral informações sobre a riqueza e potencialidades da documentação desta que é reconhecida como uma das mais importantes entidades de solidariedade com refugiados, presos e perseguidos políticos das ditaduras do Cone Sul.
O Clamor atuou com sede em São Paulo, entre os anos de 1978 e 1991; foi criado por um grupo de leigos cristãos preocupados em proporcionar proteção e assistência aos refugiados políticos dos países do Cone Sul, vítimas de violações dos direitos humanos e vivendo no exílio em consequência das arbitrariedades do autoritarismo vigente naqueles países. Fruto da iniciativa dos militantes dos movimentos de defesa dos direitos humanos no Brasil, com o apoio de Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, da CNBB, e da recém-formada Coordenadoria Ecumênica de Serviços (Cese), o Clamor foi criado e atuou como entidade vinculada à Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo.
Naqueles anos, articulando-se à ação de algumas outras instituições congêneres na América Latina, o Clamor teve atuação destacada não só na proteção e assistência a refugiados, que chegavam ao Brasil em situações desesperadoras, como na informação e denúncia internacional sobre os crimes contra os direitos humanos cometidos por essas ditaduras. A importância da entidade na época pode ser medida pelo fato de que foi a primeira organização a denunciar a existência de campos de detenção clandestinos na Argentina; foi uma das primeiras a alertar para a cooperação entre forças de segurança dos países da região no sequestro, na tortura e no desaparecimento de pessoas, mais tarde conhecida como Operação Condor; e foi a primeira a descobrir o paradeiro de algumas das crianças sequestradas e desaparecidas na Argentina.
Com o encerramento das atividades do Comitê, no início dos anos 1990, a documentação acumulada por ele durante mais de uma década de atividades voltadas para a defesa dos direitos humanos nesta parte do continente começou a ser progressivamente transferida para a guarda do Cedic.
Aqui vale inicialmente salientar que a documentação organizada no arquivo do Clamor é extremamente significativa para o estudo do período e contém inúmeros registros sobre dimensões fundamentais das lutas contra o terrorismo de Estado imposto por regimes ditatoriais nos países do Cone Sul bem como registros de lutas e ações em defesa dos direitos de presos e exilados políticos. O fundo é composto por uma grande diversidade de espécies documentais, tais como agendas, boletins internos, cartazes, comunicados à imprensa, correspondência, depoimentos de refugiados e de parentes e amigos de desaparecidos e de presos políticos, dossiês de crianças desaparecidas, fichas de desaparecidos e de torturadores argentinos, fotografias de desaparecidos, informes, livros, publicações periódicas e relatórios de atividades. O acervo contém milhares de cartas e documentos referentes ao período de 1978 a 1990, enviados por familiares e por membros de organizações de direitos humanos, sindicatos e igrejas dos países do Cone Sul, assim como correspondência e informes de agências das Nações Unidas, da Organização dos Estados Americanos (OEA) e de embaixadas estrangeiras e entidades não governamentais de vários países de fora da América Latina, e todas as publicações trazidas a público e recebidas pelo Comitê. Há, também, depoimentos de sobreviventes dos campos de detenção e de ex-presos e de militares que abandonaram as Forças Armadas de seus respectivos países para denunciar os abusos que testemunharam; calendários sobre crianças desaparecidas; cópias de telegramas enviados às autoridades de vários países e da correspondência interna; e relatórios das viagens realizadas por membros do grupo. Destaque-se que por sua importância como patrimônio documental, o Fundo Clamor é hoje um dentre os dez conjuntos documentais brasileiros que detém o Registro Internacional do Programa Memória do Mundo da Unesco.
Consciente da importância do Fundo Clamor para a História recente, não só do Brasil, mas de outros países da América do Sul, desde que se tornou detentor do fundo, o Cedic tem investido fortemente em ações para o tratamento, organização e divulgação de sua documentação. Nestes anos, com apoio de setores da própria PUC-SP e de agências financiadoras como a Cooperación Iberoamericana, por meio de seu Programa de Apoyo al Desarrollo de los Archivos Iberoamericanos (Adai), hoje Iberarchivos, apoiado pelo Ministério de Cultura da Espanha e a Fapesp, nosso Centro desenvolveu projetos que visaram desde o acondicionamento adequado dos mais de 26 mil itens que o compõem até sua completa digitalização. Atualmente, com exceção das publicações periódicas e não periódicas, toda a documentação do Fundo encontra-se digitalizada e a disponibilização pública tanto do inventário como das principais séries da documentação encontra-se em processo de implementação.
O livro reúne textos sobre o próprio acervo e sua organização bem como sobre temas relevantes por ele suscitados. Nele, às reflexões produzidas no interior dos projetos desenvolvidos pelo Cedic, aqui na PUC-SP, agregam-se reflexões de pesquisadores de diversas outras universidades que na produção de dissertações, teses e outros textos se debruçaram sobre o acervo. Assim, a coletânea de textos aqui apresentada aborda desde o histórico da custódia e do tratamento do acervo, passa pela discussão sobre tipos e dimensões específicas destes documentos, chegando à reflexão sobre questões como as diferentes estratégias repressivas então utilizadas pelas ditaduras de segurança nacional no continente bem como as ações de solidariedade para com as vítimas e a natureza da militância em defesa dos direitos humanos no período.
Ao final, resta indicar que com sua publicação o Cedic visa, antes de tudo, mobilizar a pesquisa e a discussão sobre os temas propostos por este importante conjunto documental, incentivando estudos e discussões sobre práticas, espaços e redes de resistência e solidariedade às ditaduras do Cone Sul.
Sumário
1. O Cedic e o fundo Clamor: preservação, difusão e memória
Heloísa de Faria Cruz
2. Abrindo o arquivo: história arquivística e inventário do fundo Clamor
Ana Célia Navarro de Andrade
3. Boletim Clamor: imprensa de defesa dos direitos humanos para os países do Cone Sul (1978-1985)
Heloísa de Faria Cruz
4. Memórias da luta: depoimentos de pessoas que ajudaram e foram ajudadas pelo Clamor (Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul)
Jan Rocha
5. Teologia das brechas: a atuação do reverendo Jaime Wright na defesa dos direitos humanos durante as ditaduras de segurança nacional, no Cone Sul (1976-1988)
Walter Angelo Fernandes Aló
6. Clamor: a solidariedade contra o terrorismo de estado e a operação Condor
Enrique Serra Padrós
7. Clamor e a rede de solidariedade contra o terrorismo de estado no Cone Sul
Guilherme Barboza de Fraga
8. O clamor dos campos de concentração: a produção de saberes e discursos sobre os sobreviventes dos centros clandestinos de detenção argentinos no arquivo do Clamor (1978-1984)
Marcos Tolentino
9. Histórias de violações de direitos humanos de mulheres e crianças durante as ditaduras civil-militares no Cone Sul
Anna Flávia Arruda Lanna Barreto
Os autores
1
O Cedic e o fundo Clamor: preservação, difusão e memória
Heloísa de Faria Cruz
No final do ano de 1991, o Clamor – Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul – trazia a público documento no qual anunciava o final de sua destemida atuação. No comunicado, o Comitê declarava que após muita reflexão e troca de ideias sobre a conjuntura social e política do Cone Sul, o grupo chegou a conclusão que os objetivos iniciais que provocaram sua fundação haviam sido atingidos
¹. Na avaliação sobre a conjuntura política e sobre as condições para sua atuação concluía que embora a situação de violência e arbítrio ainda continuasse, com milhares de pessoas desaparecidas e os responsáveis pela repressão, impunes, a recomposição dos movimentos civis e a atuação efetiva das entidades de defesa dos direitos humanos nos diferentes países do continente indicava que o Clamor, que tinha sido criado numa situação de emergência, já podia sair de cena.
No mesmo documento, retomado sua trajetória, o grupo explica que sua fundação em 1978 respondeu à situação e aos relatos estarrecedores de refugiados chegados ao Brasil vindos dos diversos países do Cone Sul, então sob regimes ditatoriais, principalmente da Argentina e do Uruguai. A violência vivida nesses países, indicava o informe, em parte aprendida com policiais – torturadores brasileiros
, caracterizada pelo exercício contínuo da tortura, assassinatos e desaparecimento de pessoas em campos de detenção clandestinos era estarrecedora. Tornava-se urgente criar condições de acolhimento para os refugiados políticos no país bem como os meios para divulgar amplamente as denúncias sobre a situação de violência e repressão vivida naqueles países.
No final dos anos de 1970, com as lutas pela anistia e a redemocratização, o Brasil vivia um momento diferenciado de alguns países do Cone Sul. Passados mais de vinte anos do golpe de 1954, o regime ditatorial paraguaio continuava forte e fechado. No Uruguai e no Chile, os anos de chumbo
impostos pelos golpes de 1973 mantinham situações cotidianas de perseguições, prisões, assassinatos e intensas violações de direitos humanos. A Argentina vivia o terror imposto pelo golpe militar, que, em 1976, depôs o governo de Isabel Perón, marcado por violência indiscriminada, perseguição, repressão ilegal, tortura sistemática, assassinatos, desaparecimento forçado de pessoas e manipulação da informação. No Brasil, embora ainda sob domínio militar, o recente avanço dos movimentos de resistência à ditadura e o clima de abertura lenta e gradual da era Geisel, tornou possível a criação e a atuação do Clamor.
Organizado no início de 1978, o Comitê estabeleceu como seu objetivo inicial acolher e dar assistência aos refugiados políticos dos países do Cone Sul não reconhecidos pelo Alto Comissariado das Nações Unidas (Acnur). Refugiados que, vítimas de violações dos direitos humanos e vivendo no exílio em consequência das arbitrariedades do autoritarismo vigente nesses países, quando chegavam ao Brasil viviam numa situação de quase clandestinidade política². Nos anos seguintes o grupo também assumiria como objetivos centrais de sua atuação o de divulgar todas as denúncias colhidas dos refugiados ou que por outras vias chegassem ao conhecimento do Comitê, bem como o estabelecimento de contatos com entidades nacionais e internacionais que atuassem na área da defesa dos direitos humanos e que pudessem auxiliar na proteção aos refugiados e na ampliação das denúncias sobre a situação das vítimas e a violência daqueles regimes.
Naquele momento, a iniciativa de criação do Comitê deveu-se à articulação das preocupações de militantes dos movimentos de defesa dos direitos humanos no Brasil. Como protagonistas iniciais da criação do Comitê, destacam-se as presenças do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, que já atuava como advogado de presos políticos no Brasil, da jornalista inglesa Jan Rocha que se encontrava no Brasil desde 1969 e era correspondente internacional da BBC e do The Guardian, e do reverendo presbiteriano Jaime Wright, que vivenciou a experiência de ter seu irmão sequestrado pelos órgãos de repressão da ditadura brasileira, e que, posteriormente, também teve atuação de destaque no projeto Brasil Nunca Mais. Então, com o apoio de Dom Paulo Evaristo Arns, Cardeal Arcebispo de São Paulo, com a benção
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da recém-formada Coordenadoria Ecumênica de Serviços (Cese), o Clamor foi criado e vinculado à Comissão Arquidiocesana de Direitos Humanos e Marginalizados de São Paulo, estabelecendo-se em uma sala localizada no prédio da Cúria Metropolitana.
Partindo de uma configuração bastante enxuta, aos poucos, o Comitê foi ampliando tanto a sua equipe como os seus contatos com outras entidades internacionais e nacionais da mesma área. Durante os anos de 1980, teve como membros colaboradores ativos cerca de dez militantes dos direitos humanos, dentre os quais estavam Michael Mary Nolan, Roberto Grandmaison, Teresa Brandão, Fermino Fechio, Maria Auxiliadora Arantes, Maria Aparecida Horta, Inge Schilling Lilia Azevedo e João Xerri. A esses militantes se agregava a ajuda voluntária de dezenas de refugiados, de familiares de refugiados e de exilados políticos que, na época, viviam em São Paulo e contribuíam com o Comitê, seja com a tradução de textos, seja com depoimentos ou mesmo no trabalho de apoio. Logrando ampliar suas conexões com organizações congêneres, desde o início dos anos de 1980, o Clamor desenvolveu ações conjuntas com outras entidades, como também contou com o apoio efetivo de organizações internacionais como a Anistia Internacional e, principalmente, entidades ligadas às igrejas cristãs, católicas e protestantes, destacando-se entre essas o Conselho Mundial das Igrejas. Indique-se que foram esses organismos e entidades internacionais ligadas às igrejas cristãs que via doações diversas sustentaram financeiramente e tornaram possível grande parte das ações do Comitê.
Atuando na contramão da conhecida Operação Condor, no Brasil e na América Latina, prestou efetiva assistência aos refugiados no país, oriundos da Argentina, do Chile, Paraguai e Uruguai. Articulando-se à ação de algumas outras instituições congêneres na América Latina, a importância do Clamor, na época, pode ser medida pelo fato de ter sido uma das primeiras organizações a denunciar a existência de campos de detenção clandestinos na Argentina e alertar para a cooperação entre forças de segurança dos países da região no sequestro, na tortura e no desaparecimento de pessoas, mais tarde conhecida como Operação Condor; também destacou-se na campanha de denúncia e pela localização de crianças sequestradas e desaparecidas no continente. O Comitê preparou o que foi, na época, a maior lista de desaparecidos forçados na Argentina, com mais de 7 mil nomes e que, depois da volta do governo civil, em 1983, se tornou uma das principais fontes de informação para os trabalhos da Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (Conadep) daquele país. O Clamor também organizou o primeiro Encontro de Sobreviventes de um campo clandestino de detenção, acontecido em São Paulo, em 1985.
Devido a esta atuação destacada naquela conjuntura, hoje o Clamor é reconhecido como uma das mais importantes entidades de solidariedade com refugiados, presos e perseguidos políticos das ditaduras do Cone Sul, e de informação e denúncia sobre os crimes contra os direitos humanos cometidos por essas ditaduras.
Em seus mais de treze anos de intensa atividade em defesas dos refugiados das ditaduras no Cone Sul, o Clamor realizou inúmeras atividades públicas, entre as quais, destacam-se: conferências de imprensa, nas quais se denunciavam violações de direitos humanos; seminários de caráter internacional referentes à situação dos países do Cone Sul; campanhas diversas, como a sobre crianças desaparecidas e para a soltura de Adolfo Pérez Esquivel e sua nomeação para o Prêmio Nobel da Paz; publicou informes gerais sobre violação dos direitos humanos que ocorriam no Cone Sul e cartilhas e folhetos de caráter informativo e pedagógico sobre temas de direitos humanos. Também realizou diversas missões por meio das quais delegações se deslocavam para países do continente seja com o objetivo de visitar presos políticos cuja integridade se encontrava sob eminente risco, seja para contatar famílias e buscar informações sobre pessoas desaparecidas, ou mesmo para contato com militantes perseguidos pelos diferentes regimes. Manteve inúmeros contatos com autoridades e entidades de outros continentes, que resultavam na ampliação das denúncias sobre violações dos direitos humanos pelas ditaduras então vigentes no Cone Sul para a opinião pública internacional. Exemplos significativos dessas ações e que mostram o senso de oportunidade com que atuava, era o de buscar aproveitar visitas realizadas ao Brasil por autoridades estrangeiras para ampliar suas denúncias. Esse foi o caso da entrega ao presidente Jimmy Carter, quando de sua visita ao país em 1978, de uma lista de desaparecidos políticos brasileiros, ou a entrega ao Papa João Paulo II de uma lista de desaparecidos políticos dos diversos países, em 1980.
Fruto dessa atuação, a entidade acumulou um acervo documental extremamente rico e significativo para o estudo do período e contém inúmeros registros sobre dimensões fundamentais das lutas contra o terrorismo de Estado imposto por regimes ditatoriais nos países do Cone Sul bem como registros de lutas e ações em defesa dos direitos de presos e exilados políticos. Nesse conjunto de registros guardados pelo Comitê encontram-se agendas de trabalho, boletins internos, cartazes, comunicados à imprensa, um conjunto extenso e diversificado de correspondências de familiares e entidades, depoimentos de refugiados e de parentes e amigos de desaparecidos e presos políticos, dossiês de crianças desaparecidas, fichas de desaparecidos e de torturadores argentinos sistematizadas pelo próprio Comitê, fotografias de desaparecidos, informes, relatórios de atividades, livros, além de uma extensa coleção de publicações periódicas editadas pelo Clamor e também por muitas outras entidades que atuavam na defesa dos direitos humanos no período.³
Como indica Jan Rocha, com o fechamento do Clamor, em 1991, a documentação da entidade permaneceu por dois anos em caixas fechadas que passearam por vários espaços e condições pouco adequadas para sua preservação⁴. Em 1993, o Cedic recebeu a primeira parte do arquivo que se encontrava guardado
no Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Cesep). A segunda parte da documentação que completou o Fundo só chegou ao nosso centro em 1999⁵.
O interesse do Cedic pela custódia e difusão do Fundo Clamor foi imediato e justificava-se plenamente pelo perfil do acervo do centro bem como pelas perspectivas teórico-políticas que orientam nosso trabalho de documentação e memória.
O Centro de Documentação e Informação Científica (Cedic) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) foi criado, em 1980, como centro de documentação compromissado com a preservação do patrimônio documental e dimensões da memória de movimentos sociais até então pouco visíveis ou silenciadas e articula-se a uma proposta de diálogo da universidade com as questões relativas às lutas pela democratização da sociedade brasileira. Firmando-se como espaço de resistência ao autoritarismo do regime então vigente, no início dos anos 1980, a PUC-SP vivenciaria um período profícuo na construção de seus caminhos como instituição universitária comunitária, aliando projetos de promoção da qualidade acadêmica ao diálogo com as questões sociais e políticas mais urgentes da sociedade brasileira. A criação e estruturação do Cedic como centro de documentação da PUC-SP, voltado para a pesquisa, preservação do patrimônio documental e democratização da memória articula-se às perspectivas de reestruturação das universidades brasileiras. E aqui, importa indicar que desde então a PUC-SP, por meio do Cedic, incorporou ao seu patrimônio acervos de grande importância para a memória social brasileira e dos movimentos sociais e de resistência, e que o histórico de seus acervos está intimamente associado à atuação acadêmica, cultural e política da Instituição.
Como aponta Yara Aun Khoury (2005, p. 4), coordenadora acadêmica do Cedic de 1986 até 2009,
[...] a emergência dos Centros de Documentação universitários, nos anos 1970, acompanhando a constituição dos cursos de pós-graduação, foi bastante significativa, diante do acesso restrito à informação vivido naqueles anos. Abrigando, preferencialmente, arquivos e coleções de grupos políticos, operários, sindicais e de movimentos organizados, em suas várias tendências, e reunindo um conjunto riquíssimo de títulos da imprensa operária e militante, esses Centros não só possibilitavam suprir carências de informação, como se firmavam como mais um espaço de preservação de memórias, sobretudo de origem privada, contribuindo para o alargamento dos horizontes da história e da memória, como um direito de todo cidadão.
Receber o Fundo Clamor não só reforçava as diretrizes que orientam nosso trabalho sobre memória e documentação, como alimentava perspectivas relativas ao papel da preservação documental nas disputas sobre a interpretação de nossa história recente e suas articulações à defesa de políticas públicas voltadas para a democratização da memória. Como aponta Elizabeth Jelin (2002, p. 5), na introdução de importante estudo sobre as memórias traumáticas nos países do Cone Sul:
Em geral, passado um certo tempo – que permite estabelecer um mínimo de distância entre o passado e o presente – as interpretações alternativas (inclusive rivais) desse passado recente e da memória sobre ele começam a ocupar um lugar central nos debates culturais e políticos. Constituem um tema público incontornável na difícil tarefa de forjar sociedades democráticas. Essas memórias e essas interpretações são também elementos chaves nos processos de (re)construção de identidades individuais e coletivas em sociedades que emergem de períodos de violência e trauma. (Tradução nossa)⁶
Sabemos que os movimentos de ativação da memória não são movimentos naturais e que as ações e as intervenções das áreas da História e da Arquivística, propondo direções e critérios para a preservação e patrimonialização de novos conjuntos documentais, atuam em um campo delineado por movimentos políticos mais amplos, que põem em questão as disputas em torno da memória. Assim, ao acolher preferencialmente conjuntos documentais de movimentos sociais diversos e que carregam referências de resistência, críticas e dissidentes às correntes hegemônicas, assumimos que os usos sociais do passado organizam tanto a lembrança como o esquecimento, e que os atos que selecionam registros do passado e os transformam em documentação permanente inscrevem-se no interior dessas disputas a cada momento histórico⁷.
Então, a documentação do Fundo Clamor foi incorporada ao acervo do centro que hoje é formado por conjuntos documentais, chamados na arquivologia de fundos de arquivo, e coleções geradas por movimentos e organizações sociais, por projetos de pesquisa ou pelas próprias atividades acadêmicas da PUC-SP. Atualmente, este acervo é composto por 21 fundos de arquivo e mais de 100 coleções de documentos textuais, iconográficos, sonoros e audiovisuais, num total de aproximadamente um milhão de itens. Dentre esses fundos e coleções, vários são de grande relevância para o estudo das lutas sociais entre as décadas 1960 e 1990 e dos movimentos de defesa dos direitos humanos e de resistência à ditadura daquele período⁸.
Em razão da forte atuação de leigos cristãos, nas décadas de 1950 a 1980, questionando injustiças sociais na realidade brasileira, seus movimentos foram severamente reprimidos e muitos de seus arquivos apreendidos, a partir do golpe militar de 1964. Parcela significativa do acervo do Cedic se refere a alguns desses movimentos, reunindo registros que foram preservados de diferentes maneiras. Dentre eles, destacam-se, principalmente nos anos 1950 e 1960, os arquivos da Ação Católica Brasileira (ACB) e seus movimentos específicos – Juventude Agrária Católica (JAC), Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Independente Católica (JIC), Juventude Operária Católica (JOC) e Juventude Universitária Católica (JUC) –, que constituem um patrimônio documental expressivo da intensa atuação de muitos grupos leigos mediados pela ação da Igreja Católica. O Fundo Juventude Agrária Católica (JAC), por exemplo, contém registros diversos e valiosos sobre muitas dimensões da vida rural brasileira naqueles anos e, especialmente da vida dos de trabalhadores rurais em várias regiões do país. Por sua vez, por meio de seus jornais, dossiês de Conferências Nacionais, e outros, a documentação da Juventude Operária Católica (JOC) propõe questões sobre diferentes dimensões dos problemas vividos pelos trabalhadores urbanos no período e indica importantes trajetórias de organizações, das lutas sindicais e político-partidárias e da repressão que se abateu sobre o movimento. Já os arquivos da Juventude Universitária Católica (JUC) e da Juventude Estudantil Católica (JEC) trazem dimensões importante dos movimentos estudantis brasileiro, dos problemas da educação, da política universitária e dos movimentos políticos mais amplos da sociedade brasileira.
Nas últimas décadas, acompanhando as tendências de reflexão da universidade e as demandas sociais na área da preservação documental, o perfil temático do centro vem sendo ampliado em torno de questões sociais, políticas e culturais e dos movimentos por direitos humanos. Novos conjuntos foram incorporados ao acervo dando visibilidade às experiências e lutas de novos movimentos sociais que se forjaram no bojo da própria repressão política e das lutas de resistência a partir dos anos 1980 e que se articulam, principalmente, em torno da defesa dos direitos sociais e dos direitos humanos de uma grande diversidade de grupos e sujeitos sociais.
Fundo de grande importância sobre a atuação de grupos leigos e religiosos católicos na defesa dos direitos humanos é o do Grupo Solidário São Domingos que reúne os arquivos sobre a atuação de militantes ligados aos dominicanos entre a década de 1980 e início dos anos 2000, e que contou, até mesmo, com a militância de alguns membros oriundos do Clamor. Influenciado pela Teologia da Libertação, envolvendo-se no combate às desigualdades sociais no Brasil, mantendo um forte contato com outras organizações