Verão
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Verão - Nivaldo Tenório
No nosso último verão juntos eu tinha 16 anos e eles disseram que eu podia levar um amigo. Eu não tinha amigos, só o Tomás. A gente se conheceu no primeiro ano. Seus pais eram separados e ele morava com a mãe, que trabalhava o dia inteiro. Ele não gostava do trabalho dela nem dos amigos dela, Ela está planejando ir embora daqui, sabia? De fato, nossa viagem à praia foram os últimos dias de nossa convivência. Às vezes eu ia da escola para sua casa e a gente passava a tarde jogando Pac-Man.
Fiz o convite.
Não gosto de praia.
Eu também não, menti. Mas prometeu falar com ela. Não vai ser um problema, garantiu, ela está doida pra se livrar de mim.
Foi o amigo da mãe dele quem o trouxe na sexta-feira de manhã.
Tomás carregava uma sacola com pouca coisa. Na praia a gente não precisa de roupas.
O mar surgiu lá na frente. Eu vi pela janela do carro, depois de uma curva. Papai nos mandou segurar, a descida era de fato íngreme, montanha-russa, mamãe pôs os braços pra fora da janela e, naquela época, a gente nem usava cintos. De vez em quando a vegetação escondia o mar, mas ele ressurgia poderoso, imenso.
Papai gostava de me falar do pai dele, que era um homem gordo e velho mesmo antes de eu nascer e do irmão e do tempo quando eram meninos. A mesa da cozinha era o lugar de nossos encontros, o mais confortável da casa. Fresco no verão. Aquecido no inverno. E o mais mobiliado. Parece que o vejo sentado à minha frente, há pouco jantamos, ajudei-o a pôr a louça na pia, mamãe também está sentada à mesa e corrige provas de seus alunos, de vez em quando ela para o que faz e fica nos olhando, e se ri ou diz alguma coisa, logo se concentra no que estava fazendo.
Nasci dois anos depois que se casaram, ela era a caçula de irmãos e irmãs. Não conheci avôs ou avós, os parentes eram tios e tias, alguns eu só vi pendurados nas paredes. No começo ele e o irmão eram sócios na granja, depois houve uma briga e a granja e as terras da fazenda divididas em dois. Mamãe é professora e só interrompeu as aulas enquanto me amamentou, por causa do trabalho não quis outro filho, e por isso eu cresci na companhia dos bichos. Eles apareciam da mata que ficava no lado sul, micos, capivaras, jabutis eram os mais comuns, mas também havia cobras jararacas e todos me pertenciam, papai dizia. De manhã eu notava as latas reviradas, o lixo fuçado, espalhado, eu não podia culpar mamãe de não aprovar os vizinhos, principalmente os macacos arruaceiros. Enquanto cresci a mata encolheu e não foi necessário que lhe arrancassem uma única árvore, na mata não havia onças nem nela alguém podia se perder, mas era o mundo. Às vezes aparecia alguém querendo comprar madeira, papai podia estar na pior dificuldade, o homem insistir o quanto quisesse, dobrar o preço. Nada.
Quando não estava cercado de algum bicho lá fora, dentro de casa eu brincava com bois de barro que mamãe comprava na feira e que eu gostava de cheirar e encostar a língua até sentir o gosto da tinta. Aos domingos, depois do almoço, papai se sentava na poltrona e assistia ao episódio de Cosmos, na televisão, às vezes ele fazia confusão com os nomes e chamava de religião a natureza. De tanto assistir àqueles programas sobre a imensidão do infinito, comprou um telescópio. Nas noites de muito céu montava o instrumento e ficava uma hora equalizando as lentes. Depois era capaz de passar horas perscrutando o espaço.
O que você procura, papai?
O infinito.
Eu mordia os bois de barro. É verme, mamãe dizia, e se eu insistia em morder é porque os vermes se haviam multiplicado. Enquanto mamãe se ocupava com os remédios que me fariam livres dos minúsculos bichinhos que ameaçavam minha saúde, papai só tinha olhos para os astros, gostava de falar das dimensões dos planetas, o raio equatorial da Terra é de 6.378 de quilômetros, enquanto Júpiter tem 71.492 quilômetros de raio. Eu aprendi com papai aquelas medidas de grandeza enquanto ele me fazia olhar pelo olho mágico.
Naquele verão muita coisa já tinha acontecido, papai não trabalhava mais com granjas, também não existia a mata nem suas onças invisíveis, macacos arruaceiros ou cobras jararacas, a última crise acabou com os negócios e mamãe conseguiu convencê-lo a vender a propriedade, podiam comprar uma casa na cidade e pensar em alguma coisa pra fazer com o resto do dinheiro. Não sobrou muito, mas a casa era boa, num bairro arborizado. Nessa época ela já era professora na faculdade, de forma que a gente não ia passar mal, mesmo que o marido demorasse a achar um novo emprego. Mesmo que tivesse de inventar novos negócios a cada novo fracasso. Papai não gostava da cidade. Todas as noites eles discutiam, ele batia a porta e eu não sei pra onde ia, ela não me dizia.
Seu pai precisa arejar a cabeça.
Qual é o problema, mamãe?
Não é nada, ela dizia, ele vai se adaptar.
Mamãe admirava as árvores do bairro, bonitas com as copas redondas e aparadas pela prefeitura. Um dia eles não discutiram mais e eu me lembrei do que ela dissera sobre a força do tempo, meu tio também ajudou quando ofereceu emprego ao irmão. Papai dirigia todo dia até a fazenda e só voltava à noite, cansado.
No fim daquele primeiro ano na cidade eu conheci Tomás, e ele me apresentou o Atari.
Agora, na praia, curtindo o verão, papai se recupera da cirurgia que extraiu o câncer da próstata. À noite eu escuto os sons que ele faz no banheiro. Durante o tempo que puderem os dois vão me poupar dos detalhes. O pior do tratamento ainda por vir, mas só depois, nos meses seguintes aos dias na praia, agora tudo está bem, a praia o lugar pra convalescer. A cirurgia um sucesso. O tratamento levará à cura.
Fazia muito calor. Na televisão só se falava do aumento da temperatura, efeito estufa, o perigo das calotas de gelo derreter. Cidades inteiras seriam inundadas. O Armagedom.
Não é pra já, papai me tranquilizou, e, como gostasse das hipérboles, jurou que o fim do mundo está postergado para daqui a milhares de anos no futuro.
Milhares?
Milhões! Bilhões!
No condomínio, nosso chalé ficava ao lado da piscina. Não se enxergava o fundo dela e alguns azulejos azuis foram substituídos por brancos. Um homem drenava o lodo acumulado no fundo do último inverno. Além do nosso chalé apenas dois ou três, naquele primeiro dia, recebiam seus moradores. Eu e Tomás resolvemos explorar a praia enquanto papai e mamãe tiravam as bolsas do carro. As pessoas ainda estão chegando, Tomás falou. De fato, estava tudo deserto, andamos ouvindo as ondas rebentando, andamos sem conversar, eu olhava suas pernas, são maiores do que as minhas, eu ficava tentando andar ao mesmo passo, mas não conseguia, entre as pernas dele e as minhas um descompasso que eu não conseguia corrigir por mais que me esforçasse.
Está tudo bem?
Sim, respondi.
No que está pensando?
Nada.
O mar estava enchendo rápido, de vez em quando a água nos dava nos joelhos, a gente parava e esperava que as ondas retrocedessem. Retornamos no trecho de pedras cobertas pelo mar.
Ouvimos os gritos de papai.
Não estão com fome?
Sim, eu estava com muita fome.
O vestido de mamãe tinha estampas coloridas e uma das alças caída do ombro. Papai pediu a Tomás que ele fosse um cavalheiro e abrisse a porta, todos nós rimos, mamãe inventou para si modos requintados, e agradeceu quando o jovem cavalheiro abriu a porta e lhe ofereceu a mão. Rodamos uns dez minutos até o restaurante onde comemos peixe.
Enquanto fomos e voltamos alguns carros chegaram ao condomínio, e ou eram crianças ou idosos, nossos vizinhos de chalés.
Dormi depois do almoço e só acordei perto das cinco. Não sei por onde andou Tomás, nem vi mamãe ou papai, depois eu saberia que ele saiu pra comprar cervejas. No quiosque do condomínio é proibida a venda de álcool. O dia ainda estava firme, o céu azul com muita luminosidade. Caminhei até a varanda e olhei a piscina. Um pai gordo brincava com a filha, uma menininha loura, ele pulava e provocava ondas e chacoalhava a boia inflável onde enfiou a filha. Devia ser a mulher dele e mãe da garotinha a mulher de papel estendida na espreguiçadeira. Do outro lado da piscina vi duas outras espreguiçadeiras uma ao lado da outra, numa delas Tomás na outra mamãe. Os dois acenaram, devolvi os acenos e me sentei. Na nossa varanda tem uma mesinha baixa demais para as quatro cadeiras. Achei que Tomás viria ao meu encontro, feliz que eu o libertasse de mamãe. Porém o tempo passou e os dois continuaram silhuetas naquele final de tarde com a luz doendo nos meus olhos. Cansei da luz. Dentro do chalé fechei as persianas e liguei a televisão. Devia ter passado uma hora e já estava escuro quando papai chegou. Perguntou se dormi bem, eu respondi sim, mas acordei com dor de cabeça. Ele foi procurar uma aspirina na bolsa de mamãe e estava fazendo isso quando os dois entraram. Mamãe falou da piscina, era funda no meio, mas ninguém devia se preocupar pois o Tomás sabia nadar. Tomás nunca me falou de suas habilidades. Papai não encontrou cerveja, andou uns 10 quilômetros. Isso aqui é um deserto. Mamãe perguntou onde a gente ia comer e papai sugeriu que ela fosse com Tomás até a cidade, pois ele não estava com fome e este rapaz aqui com dor de cabeça. Onde foi que você guardou as aspirinas? Um instante depois ela surgiu do quarto pronta, na mão trazia o remédio e as chaves do carro.