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A Consunção no Direito Penal Econômico: pertinência e critérios de aplicação
A Consunção no Direito Penal Econômico: pertinência e critérios de aplicação
A Consunção no Direito Penal Econômico: pertinência e critérios de aplicação
E-book320 páginas4 horas

A Consunção no Direito Penal Econômico: pertinência e critérios de aplicação

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Sobre este e-book

Enfrenta-se o problema do conflito aparente de normas no âmbito do direito penal econômico, com enfoque na consunção. Diante das particularidades político-criminais e dogmáticas desse campo repressivo, cujo traço marcante é a quantidade crescente de preceitos incriminadores, acentuam-se desafios de subsunção jurídica. Em um contexto de recorrente sobreposição de normas penais, cabe demarcar as diferenças entre concurso de lei próprio e impróprio, aplainando eventuais obstáculos a fim de tornar menos tortuosa a tarefa do intérprete. Os fundamentos hermenêuticos que impelem o operador a reconhecer a unidade de lei compõem os desafios abordados. Apesar da discricionariedade judicial ínsita ao exame da consunção, cuja natureza é axiológica/valorativa, propõem-se critérios para tornar mais estável e previsível a operação de absorção material de uma norma incriminadora por outra. Entre eles, têm destaque as categorias do desvalor da ação e o desvalor do resultado, ilustrativas da inclinação do moderno direito penal a fins político-criminais. Analisam-se a natureza, pressupostos, divergências dogmáticas e jurisprudenciais e casos clássicos da regra da consunção para relacioná-la com a dimensão material do injusto penal. Ao fim, examinam-se casos colhidos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em que se discutiu a aplicação da consunção a delitos econômicos, tanto para se demonstrar a permanente divergência quanto ao tema, como para se testar os critérios sugeridos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de fev. de 2022
ISBN9786525226538
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    A Consunção no Direito Penal Econômico - Luis Otávio Sales

    1 O DIREITO PENAL ECONÔMICO E O CONFLITO APARENTE DE NORMAS

    1.1 O DPE NO MARCO DE UM DIREITO PENAL NORMATIVIZADO: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

    O denominado direito penal econômico ou direito socioeconômico não supõe um distinto e autônomo ramo do direito penal, mas sim, um subsistema com características peculiares e formulações próprias em relação ao direito penal nuclear (dedicado à proteção da vida, liberdade, patrimônio etc.), sem que isso sugira ruptura plena com os fundamentos do discurso jurídico-penal clássico⁴. Vale dizer, o DPE é um setor inserto no direito penal tal como este é conhecido. Apesar, porém, da inexistente autonomia científica, a peculiaridade do objeto de estudo desse setor do ordenamento jurídico-repressivo (entendido em sentido lato como delitos socioeconômicos) e seus problemas penais específicos impeliram a doutrina a construir uma parte geral própria, sistematizando os traços comuns dessa particular família de delitos⁵.

    Silva Sánchez observa que os problemas práticos relacionados ao direito penal econômico estão por trás das tensões e reformulações das instituições clássicas da teoria do delito, e renovam a demanda de elaboração de obras doutrinárias de parte geral que deem conta dos problemas específicos de DPE em vista de soluções mais justas⁶. A reconfiguração teórica de instituições dogmáticas determinada por situações concretas inéditas é um dos aspectos que demarcam os caminhos epistemológicos distintos das ciências dogmáticas e das ciências experimentais ou exatas. Enquanto nestas a presença de uma exceção (cisne negro) revela a falsidade de uma dada teoria, segundo a fórmula: a exceção refuta a regra, nas ciências do espírito admite-se, em linguagem ordinária, a confirmação da regra pela exceção, sem invalidação da teoria ordinária⁷. O ponto é que o conjunto de casos particulares ao DPE cobra a releitura de categorias clássicas do direito penal, a partir de agora mais abertas pela via da normativização⁸.

    Pelo menos até agora, não prosperaram as propostas político-criminais de Silva Sánchez e da escola de Frankfurt⁹ relativamente a um direito sancionador distinto para a gama de crimes que notabilizam o direito penal contemporâneo. Para o primeiro, razoável seria um direito penal de distintas velocidades: em se tratando de infrações penais a bens jurídicos personalíssimos a que se comine pena de prisão (direito penal nuclear), devem valer com todo o vigor as regras clássicas de imputação e os princípios-garantia tradicionais; já quanto às infrações penais socioeconômicas erigidas sob a noção de ameaças potenciais (gestão de riscos) a interesses não individualizáveis (direito penal intervencionista), admitir-se-ia um sistema de imputação mais flexível ou menos rigoroso¹⁰. Para a segunda corrente de pensamento, em apartada síntese, o caminho seria a instituição de um direito da intervenção, ramo autônomo entre o direito civil e o público para ilícitos em matéria de drogas, econômicos, ecológicos etc., igualmente menos pretencioso em relação a garantias materiais e processuais, desde que as sanções por ele previstas sejam menos intensas; ao direito penal somente caberia proteger condutas contra bens jurídicos individuais¹¹. De qualquer forma, o que se tem percebido é a efetiva modernização do direito penal e a revisão de suas categorias clássicas, provocadas, especialmente, pela ampliação do catálogo de crimes socioeconômicos, antecipação da proteção e pelos novos interesses colocados sob sua tutela¹².

    Com a pretensão de apenas apresentar o assunto, pode-se se exemplificar a distensão do direito penal clássico com a proliferação de crimes comissivos por omissão e de imprudência (relacionados invariavelmente à infração de deveres), a presença de uma maior densidade regulatória extrapenal pela difusão de técnicas de reenvio e de tipos penais abertos (leis penais em branco, elementos normativos de conteúdo jurídico e elementos de valoração global do fato)¹³, além da antecipação da proteção penal com dispensa de resultado lesivo concreto, conjugada com a ampliação da gama de interesses tutelados pelo direito penal, agora gestor de riscos sociais (o que se designa por administrativização¹⁴). Tudo porque o ambiente político criminal de agora não é mais tanto de reprovação de fins (dolo direito de matar, p.ex.), mas de censura aos meios e aos seus efeitos indesejados, não obstante a legitimidade e aceitação social dos fins (empreendedorismo). Conforme Martínez-Buján, os bens jurídicos peculiares ao direito penal econômico têm natureza conflitual, que corresponde ao aspecto de as fontes de risco provirem de atividades lícitas e socialmente necessárias, que o Estado não pode proibir, apenas controlar¹⁵.

    Nessa toada, é um lugar-comum a constatação de que a matriz teórica do direito penal econômico é marcadamente normativista (funcionalismo normativista¹⁶), não se mostrando mais funcional o modelo clássico doloso de ação, assentado sobre noções de causalidade empírica¹⁷. As teorias normativas têm mostrado melhor capacidade de rendimento na construção das categorias jurídico-penais para a apreensão dos novos fenômenos de dano social, em particular aqueles em que inexiste uma conexão espaço-temporal perceptível entre conduta e dano¹⁸, por mitigarem a necessidade de referenciais ontológicos. Esse realinhamento com o neokantismo (aqui tomado como o esmorecimento de exigências físico-causais para a imputação de crimes e a inclinação ao mundo do dever-ser) não pode ser analisado sem se abordar alguns dos aspectos jurídicos e sociológicos que explicam a expansão inaudita do DPE.

    1.2 PRINCIPAIS FATORES DE EXPANSÃO DO DIREITO PENAL ECONÔMICO

    Antes de se indicarem as particularidades do DPE mais sensíveis ao conflito aparente de normas (sobretudo quanto à regra resolutiva da consunção), convém tecer breves comentários sobre as principais razões da expansão do direito penal econômico, bem assim, acerca da intensificação da intervenção penal em áreas tradicionalmente ignoradas. E, em um momento posterior, cabe abordar, pelo menos em linhas gerais, a legitimidade da intensificação da criminalização primária em âmbito socioeconômico. Naturalmente, o enfoque deste trabalho estreita as divisas de investigação, o que permite uma visão apenas panorâmica dos atributos do direito penal moderno, do qual se recorta particularmente o espectro socioeconômico¹⁹.

    1.2.1 A PROTEÇÃO PENAL DA ATIVIDADE ECONÔMICA: DAS ORIGENS AO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL

    O formato atual do DPE perpassa a consolidação da economia de mercado como sistema econômico hegemônico da sociedade globalizada²⁰. A tutela penal da ordem econômica, estruturada com base na noção de bem jurídico supraindividual, era impensável na lógica liberal-burguesa do século XIX. O modelo jurídico surgido a partir do contratualismo e do ideal burguês era predominantemente individualista e patrimonialista, orientado à limitação da intervenção estatal sobre a esfera individual, não havendo lugar para a elaboração de construções coletivistas, até pela inexistente vocação promocional do Estado liberal²¹. É nessa época que se concebe a teoria monista-individualista de bem jurídico²², elemento essencial de identificação do direito penal clássico ou nuclear.

    O arranjo econômico de então é assim sintetizado por Dotti: o Estado deve se abster da intervenção nas relações do setor de aquisição, venda, troca e demais contratos, os quais devem ter suas cláusulas regidas pela lei da oferta e da procura e da livre iniciativa dos indivíduos²³. Guaragni arremata sobre o Estado liberal-burguês: Vida, liberdade e patrimônio, nestes termos, são a tríade em função da qual o estado existe. O dever estatal é preservá-los. No mais, o Estado não deve intervir na vida privada.²⁴ Nesse ambiente ideológico de antagonismo visceral entre indivíduo e Estado não havia espaço para um direito penal econômico estruturado sobre interesses metaindividuais (i.e, supraindividuais)²⁵. Não que inexistissem normas de proteção de caráter supraindividual, como a punição das práticas de monopólio ou ofensivas à propriedade industrial, mas isso se devia à compreensão de que ao Estado não cabia um papel ativo na melhora das condições econômicas dos indivíduos, devendo apenas garantir a preservação das regras de mercado contra os abusos de seus participantes²⁶. De qualquer forma, na lógica liberal essa tarefa era reservada ao direito administrativo, não ao direito penal.

    Com o irrompimento das doutrinas sociais no final do século XIX, em reação à projeção acentuada da burguesia, cresceu a demanda por igualdade social e sedimentou-se o discurso que, no início do século XX, seria meneado como bandeira para a constituição de um estado forte, interventor, moldado em exato oposto ao estado liberal que o antecedeu.²⁷ A revolução de 1917, na Rússia, representou a implantação de um modelo econômico de forte intervenção estatal que contrapôs a doutrina liberal de igualdade formal, com progressiva influência sobre a Europa ocidental. Os estados interventores surgidos após a primeira guerra mundial compartilhavam a mecânica de forte intervenção na vida econômica, controlando minuciosamente o ciclo da produção e distribuição de bens e serviços levado a termo na esfera privada²⁸. Foram modelos de estado que impuseram suas ordens econômicas, inclusive por meio do ordenamento jurídico-penal, para garantir o sucesso das atividades interventoras e da própria preservação do modelo econômico²⁹.

    Nesse ambiente surge o direito penal econômico em sua primeira geração, destinado à tutela do bem jurídico supraindividual ordem econômica, consistente na prerrogativa interventiva do Estado na economia. Guaragni lembra a respeito que, conquanto metaindividual, [essa concepção] deixou patente a pretensão do direito penal econômico de proteger (...) não os interesses das pessoas integrantes da sociedade, mas sim – e sobretudo – os interesses do próprio Estado, enquanto gestor da economia.³⁰ A proteção penal foi acionada para reforçar a política de administração econômica. O surgimento de um direito penal econômico para a proteção da prerrogativa estatal de intervenção na economia não apenas importou na superação do paradigma liberal do século XIX, como se converteu em prima ratio para assegurar o modelo econômico assumido³¹.

    Embora as experiências totalitárias respondam pela primeira geração do DPE, as democracias sociais do pós-segunda guerra inauguraram uma segunda geração, alterando o alcance do bem jurídico supraindividual ordem econômica, então relacionado exclusivamente à intervenção estatal na economia. Consolidou-se a economia social de mercado³², que reavivou, em alguma medida, os postulados de origem liberal e esmoreceu a intervenção política típica dos regimes totalitários; isso não significou, porém, a abstenção de intervenção estatal, apenas uma mudança de papel, doravante relacionada à garantia de prestações sociais essenciais para justa distribuição de riquezas. O estado de bem-estar, marcadamente promocional, alterou a compreensão do objeto de tutela desse setor da intervenção penal. A ordem econômica, no contexto das democracias sociais, voltou-se muito mais à preservação dos interesses supraindividuais do que aos interesses do Estado propriamente dito³³. Eis a síntese de Muñoz Conde:

    Atualmente, ninguém discute que o Estado deve intervir na economia, não tanto em substituição à iniciativa privada, mas controlando-a e corrigindo seus excessos, e, em todo caso, redistribuindo a riqueza através de uma política fiscal que lhe permita também adquirir seu próprio patrimônio destinado à realização de atividades caracterizadas mais por sua rentabilidade social do que econômica (transporte, saúde, educação etc.). O que originariamente ou pelo menos sob o prisma do liberalismo econômico capitalista, se considerava como uma anomalia ou uma questão excepcional, se considera hoje algo absolutamente normal, sem o qual nem sequer a economia de mercado poderia sobreviver. (tn)³⁴

    Uma vez consolidada a lógica do livre mercado sob o modelo de um estado comprometido com interesses supraindividuais (coletivos), a legislação penal passou a abrangê-los, experimentando uma notável expansão não apenas quantitativa, mas qualitativa (as infrações penais assimilaram progressivamente características antes restritas às infrações administrativas – gestão de riscos)³⁵. Assim, à função original do DPE de assegurar a intervenção estatal na economia (direito penal econômico em sentido estrito) se somou de forma mais nítida a função de sancionar as diversas condutas danosas que pudessem surgir no ciclo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços, dando origem à concepção ampla de direito penal econômico³⁶.

    1.2.2 DIREITO PENAL DO RISCO: APONTAMENTOS SOCIOLÓGICOS

    A par dessas modificações políticas, emergiu um fator sociológico decisivo à modernização do direito penal, associado ao modelo de economia prevalecente nas democracias ocidentais desde meados do século XX. A sociedade pós-industrial (ou pós-moderna) identifica-se pela presença de riscos surgidos de decisões humanas; não riscos pontuais, localizados e delimitados, mas globais, não delimitáveis e frequentemente irreparáveis, segundo a paradigmática formulação de Ulrich Beck³⁷ – esse aspecto foi abordado pioneiramente pela doutrina penal alemã, na pessoa de Prittwitz³⁸. Embora presente na sociedade industrial (designada por Beck de modernidade simples ou primeira modernidade), na atual sociedade tecnológica (que ele chama de modernidade reflexiva ou segunda modernidade³⁹), o risco atingiu seu paroxismo, tornando-se um predicado insuperável. Uma fase na qual os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem, cada vez mais, a escapar às instituições de monitorização e proteção da sociedade industrial⁴⁰. Por isso, na sociedade de risco, o fenômeno marginal não é o risco, mas sim, sua ausência⁴¹.

    Entendido sumariamente como as diversas consequências não desejadas da modernização radicalizada⁴², é a regra, não a exceção, portanto. Os conflitos em torno da distribuição de bens, típicos da sociedade industrial clássica, foram sobrepostos com os conflitos em torno da distribuição dos ‘males’⁴³. Esses males correspondem às ameaças que acompanham, notadamente, a produção de bens e riquezas em nível global e derivam da utilização de tecnologia nuclear, da mudança climática, de colapsos financeiros globais, da engenharia genética, da nanotecnologia e da exploração massiva do meio ambiente⁴⁴.

    Silva Sanchez associa o risco estrutural do modelo social dos últimos decênios como causa direta da expansão do direito penal e motivo fundamental da criação de novos bens jurídicos penais, ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia⁴⁵. O ambiente econômico volátil e dinâmico, a aparição de avanços tecnológicos sem parentesco na história e o desenvolvimento radical da técnica geram uma efetiva demanda social por mais proteção e suscitam não apenas a tutela penal de novas realidades sociais valorativas, mas o incremento de proteção daquilo que tem se tornado escasso, como o meio ambiente equilibrado.

    A natureza dos bens protegidos penalmente também muda. Aumentam os bens jurídicos ditos coletivos⁴⁶, pondo de relevo a crescente dependência do ser humano de realidades externas a si⁴⁷ e a tarefa do direito penal moderno de lidar com a sensação de insegurança estrutural, servindo-se progressivamente de tipos de perigo de configuração cada vez mais abstrata ou formalista (em termos de perigo presumido)⁴⁸. Afinal, se do que se trata é de garantir a segurança, os tipos delitivos que reclamam resultado de lesão passam a ter serventia questionável.

    É verdade que a razão técnico-instrumental permitiu a emancipação do homem de contingências naturais e proporcionou sensível melhora em indicativos como expectativa de vida, saúde, lazer, comunicação, transporte, energia, consumo, apenas para citar alguns exemplos. Porém, a fé num promissor mundo de conforto para todos e a redução da existência humana ao racionalismo científico não tardaram a cobrar seu preço. O discurso científico passou a ser questionado como legatário de um futuro ideal. Os ganhos tecnológicos não se provaram exatamente igualitários, já que o acesso à técnica requer dinheiro, cuja distribuição é desigual. E embora as conquistas proporcionadas pela tecnologia se restrinjam a poucos, seus riscos atingem a todos⁴⁹. Riscos globalizados não respeitam divisões entre ricos e pobres ou entre regiões do mundo.⁵⁰ Além disso, se por um lado o desenvolvimento do saber técnico-científico permitiu o domínio sobre a natureza ou, na expressão de Giddens, a natureza socializada⁵¹, por outro, a exuberância tecnológica e o forte crescimento econômico trouxeram consigo ameaças que tornaram o futuro altamente incerto, em razão de efeitos secundários indesejados e subestimados.

    Outra perspectiva sociológica complementar à compreensão da feição do direito penal moderno (também denominado direito penal do risco⁵²) corresponde às relações de confiança surgidas dos sistemas peritos, segundo a percepção de Giddens. Entendidos, em apartada síntese, como sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos⁵³, são os alicerces sobre os quais repousa a confiança da sociedade de consumo, fundamental para o desenvolvimento econômico no contexto da economia de mercado. Os instrumentos tecnológicos cotidianos corporificam os sistemas peritos e materializam o conjunto de conhecimento operado por homens local e temporalmente desconhecidos. São mecanismos de desencaixe, que reorganizam as relações sociais através de grandes distâncias tempo-espaciais⁵⁴. Não se trata de fidúcia num homem, mas na confiança em objetos síntese de sistemas peritos⁵⁵. Sua utilização prescinde do conhecimento efetivo ou potencial quanto aos processos técnicos nele envolvidos.

    Sem os sistemas peritos, seria impossível o ambiente de economia de mercado. A produção, distribuição e consumo de bens e serviços, em patamares globalizados, seriam inviáveis caso demandassem a participação e acompanhamento de cada consumidor em cada um de seus processos. O consumo massivo tecnológico depende da confiança em tais sistemas, enquanto artigo de ‘fé’⁵⁶. Aceita-se o risco confiando-se na perícia implementada e na experiência de que tais objetos funcionem conforme o esperado: risco e confiança se entrelaçam⁵⁷. É o caso, p.ex., de veículos de transporte (avião, automóvel, metrô), meios de comunicação (celulares, internet), fontes de energia (nuclear, hidrelétrica), manipulação industrial de alimentos, roupas, medicamentos etc.⁵⁸ Em consequência, o gerenciamento dessas autênticas fontes de risco designadas sistemas peritos torna-se pauta político-criminal, explicando em boa medida a exasperação dos delitos de comissão por omissão e de imprudência, assim como a diminuição das áreas de risco permitido: enquanto o pensamento típico da sociedade industrial desenvolvimentista sintetizava-se na máxima navegar é preciso, viver não é preciso, no atual momento histórico, notabiliza-se mesmo a necessidade de viver⁵⁹.

    Nesse cenário de ameaças permanentes e insegurança generalizada, o discurso do dever-ser jurídico-penal acaba absorvendo as demandas sociais de proteção. Guaragni observa que a necessidade de que os sistemas peritos operem dentro dos patamares de risco tolerado – condição essencial para que sejam merecedores de ‘fé’ [...] converge para atribuir-se ao direito penal a função de contenção de riscos.⁶⁰ É o que se designa, como já dito, direito penal da sociedade de risco ou, simplesmente, direito penal do risco⁶¹. Portanto, e resumidamente, a sociedade pós-industrial, orientada pela economia de mercado, pela tecnologia corporificada em sistemas peritos, pela comunicação instantânea e pela atividade econômica global, núcleo do sistema social moderno para a produção de riqueza⁶², insufla o risco. A massificação de riscos de proporções catastróficas gera um drama público insolúvel que suscita novos paradigmas de responsabilidade e põe em evidência as instâncias de controle social disponíveis, num esforço para debelar a sensação de insegurança em constante expansão⁶³.

    Não surpreende que essa vocação expansiva do direito penal moderno promova tensões profundas com a tradição clássico-liberal que, comprometida com o garantismo e à restrição da intervenção penal (cf. os corolários da fragmentariedade e da intervenção mínima), acaba se tornando inútil para a assimilação das crescentes demandas sociais protetivas e preventivas⁶⁴. Nas palavras de Marta Machado:

    não se trata, simplesmente, do aumento quantitativo da reação punitiva ou da simples definição de novos comportamentos penalmente relevantes, mas do desenvolvimento de uma nova racionalidade de imputação, a partir da utilização de figuras dogmáticas diferenciadas – algumas vistas como excepcionais no passado – mais flexíveis e direcionadas muito mais à prevenção em face dos riscos do que à tradicional manifestação repressiva.⁶⁵

    Assim, é de se esperar que a assimilação pelo sistema penal do compromisso de prevenção dos riscos inerentes à sociedade pós-moderna e globalizada, no contexto da modernidade reflexiva, exponha contradições e coloque em evidência a falta de rendimento dos postulados jurídico-penais tradicionais, impulsionando a reformulação das categorias clássicas para incorporação das pressões geradas pelo paradigma da sociedade de risco⁶⁶. Os instrumentos mais característicos do direito penal do risco são a ampliação do rol de bens jurídicos supraindividuais (coletivos⁶⁷), a antecipação da tutela penal mediante crimes de perigo abstrato⁶⁸, o abrandamento das regras de causalidade para imputação do resultado, a crescente normatização do tipo objetivo (infração de dever), a proliferação de tipos omissivos e culposos e dos tipos cumulativos, assim como a responsabilização penal da pessoa

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