Deus Ex Machina: Anjos e Demônios na Era do Vapor
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Deus Ex Machina - Davi M. Gonzales
Prefácio
E
stás diante de uma antologia que discorre sobre um passado que jamais houve, sobre criaturas que possivelmente nunca existiram. Portanto lhe ofereço, caro leitor, um contrário de Prefácio o qual, na forma tradicional, lhe suscitaria ir em frente na leitura. Desta feita, entretanto, o presente texto pretende lhe incentivar a ir para trás, não na leitura, mas no tempo.
Se o Steampunk, Vapor Punk ou Vapor Marginal pode ser descrito como escrever Ficção Científica do Século XIX nos presentes dias, creio que esta obra se alia com honras àquelas do mesmo gênero que vem sendo editadas, mas com um especial tempero de nossa cultura.
Machadeando ou não, o escritor brasileiro deste gênero vaporoso faz parte de uma fauna jovem, mas se mostra uma criatura prolífica, imaginativa e profundamente competente na arte da pesquisa histórica clássica, da busca por personagens incomuns e da livre conjectura acerca do mito.
A presente antologia joga carvão em caldeiras brasileiras, para que as nuvens de vapor desvelem a presença de entidades que, de uma ou de outra forma, vêm influenciando os destinos da humanidade, seja através da ação direta, ou da não menos poderosa inspiração desde seu plano imaginário.
Nesta obra, os autores repetidamente compram uma briga controversa e denunciam a responsabilidade de mensageiros alados sobre eventos históricos ou ficcionais, cujas consequências bem conhecemos e sobre cataclismas dos quais jamais tomaríamos conhecimento, senão lendo do próprio Livro da Vida.
É esta a épica peleja, na qual nossos heróis-autores contam com a Editora Estronho, que decidiu-se por adotar o Steampunk, colocá-lo sob suas asas, revestir-se de uma armadura celestial e brandir a espada da cultura por sobre a cabeça, investindo no lançamento de não apenas este mas ainda de outro título do mesmo gênero, uma escaramuça digna das hostes aladas.
Deus Ex Machina é uma obra atípica dentro de um gênero atípico e, dada a avidez e as cores fortes usadas em cada um dos contos presentes neste tomo, posso dizer que este é mesmo um livro no qual o vapor das engenhocas se encontra com a glória do firmamento.
Bruno Accioly é o CEO da dotweb.com.br, editor do OutraCoisa.com.br, concebeu o aoLimiar.com.br a Rede Social de Literatura Fantástica, é co-fundador do Conselho SteamPunk, editor do SteamCast e da revista Vapor Marginal.
A diabólica comédia: a conquista dos mares
Caldeira 01: Romeu Martins
Oh, in the war is common cry
Pick up you swords and fly
The sky is filled with good
And bad that mortals never know
The Battle of Evermore
, Led Zepellin
A
bocarra se arreganha ao despontar sobre as águas que o monstro atravessa como se fosse uma serpente prestes a dar o bote. Seu corpanzil negro vem logo atrás; metade submersa, metade para fora dos vagalhões que sua passagem provoca. Entre as duas fileiras de dentes, posicionados num cortejo de lâminas afiadas, a fera regurgita faíscas incandescentes. É possível ver as chamas arderem lá dentro, irrompendo vez por outra feito o magma dos vulcões, expelidas como o veneno encarnado de suas peçonhas. Em momentos assim, o brilho do fogo se reflete nas grossas escamas que protegem cada parte de sua forma bestial. Das narinas do monstro, dois buracos que se assemelham a crateras lunares, são liberadas nuvens negras e ondulantes, empesteando os céus da mesma forma que sua simples presença conspurca o oceano de onde acaba de brotar.
Este é Raab, O Arremetedor
, a encouraçada nau-capitânia submergível da frota dos infernos. Ela segue seu rumo com as caldeiras exigidas ao máximo para produção do vapor que a impulsiona e à sua tripulação sempre em frente, ao encontro do inimigo nestes tempos de guerra. Assim que emerge, aquilo que seria o dorso da criatura reptiliana que ela representa se abre, dando à máquina bélica uma configuração de navio, e expondo parte dos tripulantes aos ares oceânicos.
Nesta noite de trevas tão densas que obrigam a luz dos olhos da figura de proa a brilhar como sóis, o comandante da nave aproxima-se de seu novo rei. O primeiro enverga a pesada armadura que o consagrou, feita de placas metálicas negras, formando uma carapaça sólida. O segundo veste as roupas cerimoniais herdadas do antigo ocupante do cargo que, por ora, assumiu como seu.
– Curioso pensar que antes do golpe que te levou ao poder nos Reinos Inferiores jamais aceitaria a ti e a teus homens a bordo do Raab. Não sem pelejarmos para ver qual grupo arrancaria mais sangue do outro por tal honra – o capitão fala isso batendo com a manopla no ombro do superior, uma camaradagem nada comum entre realeza e súditos, mas apropriada aos veteranos das frentes de batalhas. – No entanto, estás aqui, Gabriel, antigo inimigo, e lá estão teus comandados, espalhados entre meus guerreiros, todos dividindo as funções do mais poderoso navio que já existiu.
Ainda com semblante melancólico, Gabriel retribui o gesto, tirando uma das mãos que antes repousava no cinturão para acomodá-la no braço do atual companheiro de armas a seu lado, sem, contudo, alcançar-lhe o ombro. Apesar de sua estatura ser considerável, as dimensões de seu braço não rivalizam com as do homem da armadura. Seu olhar passa lentamente da tripulação de fato mista à sua frente para encarar o interlocutor.
– A guerra forja estranhas alianças, capitão Leviatã. Não foi por outro motivo que pude contar com teu apoio para destronar teu antigo mestre, Lúcifer. Mesmo motivo que agora estamos juntos cavalgando os mares, acima e abaixo, na guerra contra a quem servi por tempo demais. Por nenhum outro motivo fazemos isso, que o das estranhas alianças forjadas pela guerra, meu camarada.
Por baixo deles, soldados das duas facções dividem esforços na manutenção da nau em seu curso. Alguns conduzem carregamentos de carvão até a sala das caldeiras, posicionado no andar inferior, ao final do comprido pescoço do dragão que orna aquele ser mecânico, jamais vencido em batalhas. Outros tantos se prostram a estibordo e a bombordo, cuidando dos múltiplos canhões, responsáveis em grande parte por tão invejável condição de invencibilidade da embarcação mais temida dos mares e das fossas abissais. Muitos entoam canções de guerra enquanto dividem a lida no maquinário.
– Lúcifer se foi sem deixar simpatias; ao contrário do antigo rei assassinado por ele. Sabe, mesmo tanto tempo após a morte, Hades ainda é guardado em boa memória por muitos no mundo subterrâneo que um dia levou o nome dele. Caso de Caronte, aquele que me convenceu a apoiar a conspirata que o levou a tomar o poder do Reino Inferior.
– Torço para que não tenhas te arrependido da decisão – o tom de voz é ameno, mas a seriedade que ela transmite deixa evidente que há mais do que torcida. A seriedade da voz e, verdade seja dita, a proximidade da outra mão ainda apoiada no cinturão que prende o renomado gládio do conquistador do Inferno.
O sorriso no rosto do capitão evidencia que ele percebeu a leve ameaça feita pelo homem a quem ele ainda segura pelo ombro. O clima de confraternização entre ambos, entretanto, não chega a ser afetado.
– Gabriel, garanto-te que não me arrependo. Conheces minha fama, de padroeiro infernal da inveja, todavia a verdade é que estou contente por servir a ti nesta nova era de batalhas memoráveis. Não invejo tua posição atual, apenas quero ser lembrado nas futuras conquistas do império.
Convencido pelo ar de genuíno interesse do seu anfitrião, o antigo arcanjo volta a relaxar em um sorriso mais franco.
– Para te falar a verdade, conheço tua fama, mas não os motivos. Ainda não tive o tempo necessário para me inteirar de tudo sobre os bastidores da corte. Desde que pus esta coroa de chifres pela primeira vez – ele tira a mão do braço do capitão para ajeitar o objeto com tais adornos pontudos que lhe pesa a fronte –, só o que faço é preparar tropas em terra, e agora nos oceanos, para as movimentações estratégicas.
Leviatã aproveita a deixa para também livrar o outro do seu aperto e passa a olhá-lo de frente.
– Posso te contar minha história, temos tempo enquanto não localizamos nosso alvo. E ela tem a ver com os símbolos reais que passaste a ostentar depois da decapitação de Lúcifer. Ou melhor, tem a ver com o único deles que tu não estás a utilizar.
O novo Rei do Inferno passa os olhos em torno de si para tentar entender sobre o que o capitão fala. Além da coroa, ele usa a capa de pele vermelha e até mesmo as botas escuras com casco de bode do antecessor desde que se rebelou contra o governante das Terras Altas e tomou o poder no Reino Inferior.
– Não sei no que reparas, capitão. Uso por conselho de meu irmão, Rafael, estas indumentárias ao gosto exótico do meu antecessor. Diz ele que tal gesto pode facilitar a transição de poder entre os que teimam em questionar minha autoridade no antigo Hades. Não faço ideia do que ainda me faltaria nas insígnias reais.
O capitão acena para um dos seus tripulantes com um gesto diante da boca.
– Posso te contar os fatos enquanto navegamos, a noite é longa e as engrenagens do tempo giram lentamente. Enquanto isso bebe algo, pois ouvir a seco os contos de um marujo não seria justo. E se há três coisas que não podem faltar em um navio sob minhas ordens são ferro, vapor... e rum.
Com ambos abastecidos de canecas cheias daquela bebida forte, o demônio de armadura passa a narrar suas lembranças ao arcanjo rebelado.
Mar Egeu. Muitos anos antes.
Lúcifer havia acabado de ser expulso dos Céus naqueles tempos. Fazia pouco que ele surgira, ainda ferido e humilhado, no Hades. Através da traição, matara o antigo soberano e tomara para si a esposa dele, a mesma Perséfone que agora é tua companheira, Gabriel. Todavia, tomar um reino sempre é algo mais simples que conseguir mantê-lo, como bem sabes. Assim sendo, fui enviado como embaixador para tentar garantir a paz com a terceira potência da época, um feudo dominado pelo irmão do rei recentemente assassinado. Poseidon era o nome do dono do castelo onde me encontrava.
Último representante de uma antiga linhagem de monarcas guerreiros, ele me recebeu sozinho na sala do trono. Usava cabeleira e barbas tão negras quanto compridas. Estava de peito nu, enquanto eu envergava armadura completa, mesmo desprovido de armamentos. Já ele portava como cetro a estranha lança de três pontas que chamava de tridente. Sabia eu que a arma continha história.
Foi com ela que Poseidon e dois de seus irmãos haviam matado, tempos atrás, o próprio pai, o tirano Cronos, que praticava canibalismo em suas crias justamente por medo de um dia ser degolado pelos herdeiros. Traído pela esposa, que ocultara o trio de irmãos, o tirano teve o maior receio tornado realidade.
Após derrotar o pai, os filhos dividiram a herança. Coube ao mais velho, Zeus, as terras em torno de um monte de nome Olimpo; Hades ocupou a região mais baixa, a qual rebatizou com o próprio nome; e meu anfitrião naquela tarde tornou-se o senhor das vastidões oceânicas. Poseidon era o único de sua geração a manter uma coroa sobre a cabeça. Zeus foi o primeiro a cair, quando teu antigo mestre, com tua ajuda, Gabriel, invadiu os domínios onde hoje se encontram as Terras Altas. Já o sangue de Hades ainda encharcava as mãos de Lúcifer quando ele me enviou àquele castelo para assegurar, pelo menos, a neutralidade de um regente cercado de vizinhos belicosos.
Esta era minha missão e foi a que comuniquei ao homem à minha frente, que me ouvia com semblante furioso. Apesar dele mesmo dever o império marítimo ao regicídio e de ter como opção de aliança um rei que havia derrubado outro de seus irmãos, Poseidon não escondia o desconforto com tal audiência.
Neste momento devo reconhecer que, apesar de minhas ordens serem pela paz, meu desejo pessoal era bem outro. Ansiava por ter meu próprio quinhão em um período no qual o poder estava sendo dividido. Por isso não me esforcei em nada para desfazer as dúvidas daquele monarca quanto às intenções de Lúcifer, inimigo do homem que conquistara o Olimpo, e que estaria ali, por meu intermédio, oferecendo uma declaração de armistício ao regente dos oceanos.
Meu ar de deboche diante do luto daquela autoridade e minha má vontade diante das perguntas que me fazia tiveram êxito em provocar-lhe cólera mortal. Antes que minha vista pudesse se dar conta, ele arremessou o tridente contra meu peito, da mesma forma que seu irmão mais velho fazia com lanças em forma de raios, quando dominava os céus a partir do Olimpo. Tal foi a violência do ato que fui jogado na direção de uma das paredes do palácio.
Minha armadura bateu naquela massa de pedra soando feito um sino. O estrondo reverberou por toda a sala do