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A degeneração democrática do presidencialismo: da origem norte-americana ao contexto brasileiro
A degeneração democrática do presidencialismo: da origem norte-americana ao contexto brasileiro
A degeneração democrática do presidencialismo: da origem norte-americana ao contexto brasileiro
E-book391 páginas5 horas

A degeneração democrática do presidencialismo: da origem norte-americana ao contexto brasileiro

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Sobre este e-book

Como surgiu o presidencialismo? Por que o Brasil é um país presidencialista? Esse sistema de governo é conveniente da maneira como se apresenta? E se não for, há alternativas para sua substituição ou aprimoramento?

Apresentando contornos peculiares desde que foi internalizado pelo Brasil, sobretudo após a Constituição de 1988, o presidencialismo tem enfrentado sérios desafios para seu regular andamento, invocando profundos questionamentos sobre a degeneração de sua concepção original, a conveniência de sua manutenção como sistema de governo e os aperfeiçoamentos que se revelam pertinentes e necessários em sua configuração atual.

O presente livro busca, portanto, unir passado e presente, retomando historicamente as bases retóricas da construção do regime de governo presidencial nos Estados Unidos para, nascido o modelo, apreciar as mudanças que ele sofreu ao longo do tempo e compreender os traços que revelou nas democracias latino-americanas contemporâneas, concentrando-se particularmente nas explicações históricas, sociais e econômicas de sua adoção pelas Repúblicas brasileiras.

A partir de então, sopesando as virtudes e problemas desse regime, o impacto do sistema de partidos sobre o seu funcionamento e a dinâmica das coalizões governamentais, são apresentadas possíveis aproximações ao modelo parlamentar como alternativas para permitir a otimização e a adequação de sua construção teórica original ao propósito de alcançar a tão desejada estabilidade democrático-institucional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento9 de jan. de 2023
ISBN9786525268590
A degeneração democrática do presidencialismo: da origem norte-americana ao contexto brasileiro

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    A degeneração democrática do presidencialismo - Luyza Marks de Almeida

    I INTRODUÇÃO

    Na tradição iorubá¹ existe um itã - um típico relato mítico dessa cultura -, que diz: Exú matou um pássaro ontem com uma pedra que jogou somente hoje.

    Exú, que no panteão mitológico dessa tradição africana é o último orixá e o primeiro humano, a figura que personifica o mensageiro, o intérprete, o símbolo do movimento, por meio deste itã perverte a compreensão convencional do tempo e conecta a memória com a transformação.

    Pois é sobre esse fenômeno que este trabalho pretende debruçar-se: unir as pontas do tempo para apreciar as possíveis transformações que o presidencialismo, enquanto sólido regime de governo adotado nas Américas, pode sofrer e gerar nas democracias atuais, em especial na brasileira, seja por sua admissão, seja por seu desenvolvimento no cenário político contemporâneo.

    E tal intento parte da importante premissa de que, como aponta Adam Przeworski no prólogo da obra Nos los representantes, do argentino Roberto Gargarella, as instituições importam: algumas facilitam e outras obstaculizam a participação, algumas colocam o governo diante do controle popular e outros lhe permitem escapar dele, algumas aceleram as mudanças sociais e outras as atrasam². O que interessa, em última análise, é que as instituições realmente importam, já que é desde a sua configuração e operacionalização que se gerenciam e concretizam as múltiplas demandas sociais, como é também por elas que as democracias ganham sua fisionomia e seu sentido de existir, veiculando as expressões e transformações que se agitam no seu interior.

    Sendo assim, o objetivo das páginas que seguem é compreender o fenômeno do presidencialismo desde o seu nascedouro até sua feição atual. Para tanto, o percurso será iniciado pela apreciação desse regime de governo que, inaugurado pelo constitucionalismo estadunidense, é consequência das demandas que se tornaram efervescentes após a Revolução Americana e das reivindicações dessa sociedade por profundas modificações institucionais na relação entre os poderes de Estado a fim de permitir uma inédita direção da nova ordem social e democrática que se inaugurava.

    No cumprimento desse objetivo, serão apreciados os importantes debates que tiveram lugar com a ratificação do texto da Constituição norte-americana em 1787 e que promoveram a importante produção textual conhecida como O Federalista.

    Esse compêndio de argumentos que irromperam nos debates sobre a Constituição dos Estados Unidos representa até hoje uma importante referência retórica da ciência política e jurídica para a configuração das características dos poderes constituídos nos Estados democráticos, mas principalmente para a construção do presidencialismo como um sistema de governo de particular força e centralização conferida ao chefe do Poder Executivo.

    Ao passar pelo estabelecimento das bases de uma república de grande extensão territorial, pelo delineamento do sistema de mútuos controles (conhecido como freios e contrapesos), pela consolidação do princípio da representatividade democrática e pela formação de um Executivo dotado de energia e vigor, a proposta deduzida pelos ‘federalistas’ serve de supedâneo para apreciar como o presidencialismo idealizado sobreviveu aos debates sobre a aprovação da Constituição norte-americana e, mais do que isso, ergueu-se como referência mundial de um arranjo institucional. Tal modelo, segundo seus entusiastas, estaria destinado a conduzir as democracias ao progresso, livre do cativeiro que representaria o poder monárquico e da submissão aos caprichos de um parlamento opressor e propenso à mera satisfação das facções febris dos segmentos sociais, as quais não teriam real compromisso com o bem comum.

    No entanto, essa elegante construção político-institucional dos federalistas não ficou isenta de críticas. Assim, seguindo na exposição histórica da formação do regime presidencialista, serão apreciados os argumentos dos opositores aos ideais de república concebidos por Madison, Hamilton e seus seguidores, os quais ficaram conhecidos como ‘os antifederalistas’, bem como os inconvenientes e perigos de uma concentração tão intensa de poderes nas mãos do chefe do Executivo, apontando, em especial, os prejuízos dessa construção retórica aos fundamentos básicos da concepção de democracia e também os riscos de seu distanciamento da verdadeira vontade do povo.

    Superada a investigação da dicotomia federalistas versus antifederalistas, a análise ingressará no legado do balanço dos debates da Grande Discussão Nacional no que diz respeito à configuração do presidencialismo, dando especial ênfase aos traços característicos desse regime e suas transformações ao longo do tempo no cenário político específico dos Estados Unidos, bem como fazendo algumas ponderações sobre sua vocação expansionista para outras democracias do mundo.

    Conhecendo as motivações que sustentam o presidencialismo em sua origem, a segunda parte terá como objetivo avaliar a recepção do regime presidencialista no Brasil. E para desenvolver esse propósito, será feito um percurso histórico desde a transição do Império até a Proclamação da República no ano de 1889, abordando-se a efetiva motivação que inspirou a adoção de uma república presidencialista, bem como adentrando os perfis históricos e normativo-constitucionais da Primeira República - a das Oligarquias -, da República Popular e da Nova República, esta última inaugurada com a Constituição de 1988, além de tecer breves comentários sobre os dois momentos parlamentares que vigoraram no Brasil no curso desses eventos.

    Apesar disso, não serão negligenciados os dois interregnos de governos ditatoriais que compõem a história institucional brasileira: a ditadura civil de Getúlio Vargas no Estado Novo e a ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964, cujas nuances também fornecem importantes contribuições para compreender o desenvolvimento do presidencialismo no Brasil.

    Aos apontamentos históricos gerais sobre as Repúblicas brasileiras, uma análise especial será dedicada à opção presidencialista nos debates constituintes da mais recente carta constitucional democrática: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

    Este estudo apresenta especial relevância em uma obra que se dedica a investigar as justificativas lógicas para a adoção do presidencialismo como sistema de governo, já que este se firma como opção institucional ainda que diante de um cenário de saída recente de um regime ditatorial, no qual o império do Poder Executivo foi estabelecido em marcada sobreposição aos demais poderes, mas que, mesmo assim, não conseguiu enfraquecer a convicção estabelecida sobre a necessidade de se manter um Poder Executivo enérgico e dotado de amplos poderes de ação.

    Construída essa base histórica, embora sem esgotá-la, o contexto político das presidências no Brasil após a redemocratização passará a ser objeto de apreço, com especial destaque aos desafios da política econômica e das reformas sociais do período, cujos efeitos tiveram um impacto importante nas instituições democráticas nos últimos trinta e quatro anos e, inclusive, na interrupção de dois mandatos presidenciais.

    Breves notas também serão tecidas sobre a notável mudança ideológica sofrida pela política brasileira desde a queda da presidente Dilma Rousseff e a eleição do atual presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, expondo a fragilidade que o constante embate entre o Executivo e outros poderes, mas especialmente o Legislativo, é capaz de gerar na estabilidade democrática, sobretudo face a constantes ameaças de fenômenos disruptivos.

    Para encerrar este segundo capítulo, serão examinadas as características do presidencialismo no Brasil, notadamente as normas vigentes que lhe conferem prerrogativas administrativas e legislativas e que acabam por permitir seja ele identificado como um hiperpresidencialismo ou, mais ainda, um hiperpresidencialismo populista. De grande apelo emocional e de manipulação das massas, o hiperpresidencialismo que se instalou no Brasil representa um arranjo propenso a gerar grandes instabilidades institucionais além de conduzir à não realização dos necessários projetos nacionais e reformas sociais. Dada a personalização extrema e distorcida da liderança que ele promove, será objeto de análise o funcionamento de toda essa dinâmica e como o presidencialismo aqui desenvolvido acaba por possuir características peculiares que permitem classificá-lo como um presidencialismo à brasileira.

    Entrando no capítulo final e levando em conta os pressupostos lógicos que inspiraram a construção do presidencialismo em sua origem, bem como a forma como esse regime foi absorvido e sobrevive na estrutura político-institucional brasileira, a apreciação sobre a degeneração do modelo presidencialista e as possíveis medidas de contenção de suas adversas consequências passam a ser o alvo da investigação.

    Para tanto, parte-se da análise das virtudes e inconvenientes do regime presidencialista como modelo institucional em si mesmo controverso, aprofundando-se nas importantes críticas que lhe foram feitas desde a década de 1980 por Juan Linz e outros cientistas políticos. Estes, com mais ou menos otimismo quanto à vocação do sistema, refletem principalmente sobre a dimensão dos riscos do presidencialismo ao facilitar a instabilidade democrático-institucional em virtude da difícil combinação de seus elementos definidores, o que leva ao agravamento da crise na relação entre os poderes constituídos.

    A apresentação desta crítica passará, portanto, por aportes comparativos entre os sistemas presidencialista e parlamentarista, pelos traços que caracterizam o presidencialismo e simultaneamente comprometem o seu bom funcionamento, bem como considerará os efeitos da extrema personalização da liderança presidencial no equilíbrio do funcionamento das instituições democráticas, o que reforça as opiniões que defendem a inconveniência inerente do sistema como regime de governo.

    Por outro lado, aplacando as severas críticas anteriores, serão discutidas as considerações do cientista político Dieter Nohlen, quem, encontrando ressonância no pensamento de outros importantes autores como Matthew Shugart e John Carey, busca demonstrar que, mais do que um problema intrínseco que o macularia desde o nascimento, o presidencialismo traz, na realidade, uma mutação degenerativa que se expressa pelo contexto em que está inserido, de modo que suas virtudes originárias acabariam sendo mitigadas pela combinação de complexos fatores históricos, políticos, econômicos e sociais.

    E entre esses pontos desafiadores do bom funcionamento do regime presidencialista, no que diz respeito ao contexto em que está inserido, está o desenho do sistema político-partidário. Sobre esse aspecto, considerando que não são raras as afirmações da difícil convivência entre o sistema presidencialista e o multipartidarismo, é imprescindível aprofundar a análise do impacto do sistema de partidos na relação entre os poderes no presidencialismo, especialmente porque as consequências desse sistema revelarão efeitos distintos se considerada sua dinâmica pré e pós-eleitoral.

    A comparação de sistemas multipartidários e bipartidários e de sistemas eleitorais majoritários e proporcionais, os efeitos da fragmentação e indisciplina partidárias, a desintegração das bases ideológicas que caracterizam as formações políticas e, ainda, o baixo grau de institucionalização no sistema de partidos políticos, ademais, serão examinados como fenômenos que agregam complexidade ao arranjo das próprias instituições democráticas, verificando-se se a coexistência entre o presidencialismo e o sistema multipartidário é efetivamente insustentável para regular o funcionamento desse regime de governo.

    A partir dos sistemas de partidos, o que se fará é adentrar o estudo da atual dinâmica institucional instaurada no Brasil para o funcionamento do presidencialismo e que caracteriza as conquistas e os vícios do sistema então operativo: o presidencialismo de coalizão.

    Ao desenvolver suas origens históricas e a particularidade das raízes sociopolíticas brasileiras, será visto como o presidencialismo se estabelece a partir de intensas negociações com o parlamento e pela concessão de favores, da mesma forma que se apreciará como os movimentos institucionais que lhe correspondem se encontram dentro ou no limite da legalidade para permitir a governabilidade sob esse sistema.

    Este exame se concentrará essencialmente no aspecto horizontal, ou seja, no eixo Executivo-Legislativo, focando principalmente no fenômeno do controle da agenda política pelo Poder Executivo, contudo, não deixará de fornecer dados importantes sobre a relação vertical que se estabelece entre o Executivo central e os Executivos dos estados, tendo em vista que a República brasileira é uma federação cuja dinâmica inter-relacional lhe é naturalmente peculiar.

    Por fim, compreendidos os traços da moderna mecânica do funcionamento das instituições democráticas no contexto brasileiro, o estudo avançará sobre as construções teóricas que oferecem alternativas para a estabilização e realização democrática na República do Brasil.

    Com esse propósito, serão cotejadas quais reformas seriam convenientes ou possíveis para o aumento dos instrumentos de controle do Poder Executivo hipertrofiado que se apresenta no Brasil e em que medida a convergência do presidencialismo ao modelo parlamentarista, entendido a partir de suas mais diversas nuances, pode contribuir para a construção de uma democracia verdadeiramente capaz de promover o respeito e a efetividade dos direitos, baseada em uma estrutura institucional mais estável, evitando movimentos disruptivos que levem ao caos e ao autoritarismo.


    1 Maior grupo etnolinguístico originário da África Ocidental (principalmente de Nigéria e Benin) que chegou ao Brasil em razão da diáspora africana em direção às Américas e cujos traços culturais estão profundamente enraizados na sociedade brasileira, especialmente na religião de grande expressão nacional: o Candomblé. Trata-se de um culto às forças da natureza, cuja manifestação ocorre por deuses com diferentes personalidades, conhecidos como Orixás, e que compõem um significativo panteão de divindades e mitos amplamente conhecidos pela população brasileira em geral. Sobre essa tradição, recomendam-se os destacados estudos de Pierre Verger (fotógrafo, etnólogo, antropólogo e pesquisador francês que se tornou um dos principais investigadores no campo da antropologia e da história da cultura brasileira). Como uma referência básica, consultar Verger, P. F. (1993). Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. São Paulo: Corrupio.

    2 Gargarella, R. (1995). Nos los representantes: crítica a los fundamentos del sistema representativo. Buenos Aires: Miño y Dávila.

    II O PRESIDENCIALISMO COMO MODELO DE CHEFIA DO PODER EXECUTIVO: JUSTIFICANTES HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA ADOÇÃO DO PRESIDENCIALISMO E SUA RECEPÇÃO NO BRASIL

    II.1 O NASCIMENTO DO PRESIDENCIALISMO NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA

    II.1.1 ORIGENS: OS FEDERALISTAS E A DEFESA DA REPÚBLICA

    O presidencialismo, como regime de governo inaugurado para exercer a chefia do Poder Executivo em repúblicas democráticas, surgiu no contexto da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, promovida pelas treze colônias norte-americanas em 04 de julho de 1776, alcançando sua instituição efetiva com a aprovação da Constituição de 1787, objeto da Convenção da Filadélfia do mesmo ano.

    Pode-se dizer que como último ato da Revolução Americana, que se concluiu com o Tratado de Paris de 1783³, desenrolou-se o debate de ratificação da Constituição de 1787, que se configurou historicamente como a Grande Discussão Nacional.

    Com a conquista da independência depois do fim da guerra, a situação interna da Confederação durante a década de 1780 era tida como crítica por grande parte dos colonos. O que se verificava era um cenário de forte tensão vivenciada pelos chamados founding fathers, os pais fundadores do desenho institucional norte-americano, na medida em que os colonos revolucionários temiam uma ampliação indesejada do poder do monarca inglês, com vocação para mitigar direitos e liberdades dos cidadãos, e, por outro lado, se reconhecia a debilidade e falta de energia de atuação do governo central, conduzido desde a independência pelo Congresso Continental⁴ com base nos Artigos da Federação. Essa situação gerava grande angústia e desconforto pelos constantes conflitos que existiam - nos estados e entre eles -, já que o que marcava o período era o traço de grande soberania de cada uma das colônias, as quais tinham uma ampla gama de atuação independente como, inclusive, ir a guerra sem as demais.

    Era evidente o pouco poder do Congresso, que ao final não conseguia fazer com que suas determinações fossem cumpridas pelos estados. Ao mesmo tempo, os legislativos estaduais apresentavam um alargamento notável de atribuições e poder ante a intensa participação popular que marcava o seu funcionamento, o que se calcava no profundo ideário de liberdade política da Revolução⁵.

    O impulso da independência norte-americana, no entanto, não pode ser identificado como uma revolta de seus colonos de maneira exatamente ‘espontânea’ contra a opressão britânica. O que havia, na verdade, era um terreno propício no âmbito das colônias americanas para as ideias ilustradas do contexto europeu, as quais forneceram substrato intelectual e construtivo para seus propósitos.

    Nesse sentido, embora não se pretenda adentrar toda a origem histórica do Estado Moderno liberal e tampouco isso se revele necessário para compreender o surgimento do presidencialismo, o resgate dos fundamentos básicos do ideal iluminista no pensamento de John Locke e de suas críticas a Thomas Hobbes tem sua relevância no sentido da contextualização dos eventos que se sucederam à Revolução Americana⁶.

    Inspirados por esses ideários⁷ e convencidos da necessidade de garantir liberdades e patrimônio ante os poderes excessivos da figura do monarca é que se pode dizer que houve uma revolução porque tais premissas circulavam de maneira que havia uma clareza sobre os objetivos a serem alcançados: sabiam o que queriam e o que não queriam na configuração de um novo sistema⁸ e, dentre esses pontos, estava a regulamentação do Poder Executivo.⁹

    Nos Estados Unidos, a Constituição, antes de mais nada, apresentou-se como instrumento de escape das grandes ameaças que se identificavam durante o dito período crítico da história norte-americana¹⁰ - a ameaça da anarquia e a ameaça da tirania.

    Quanto à primeira delas, parece mais fácil identificá-la na medida em que, ao tempo da atuação do Congresso Continental, não havia uma autoridade de reconhecimento nacional respeitada por todos que pudesse trazer um sentimento de unidade frente a um cenário de sensível tensão social decorrente da crise econômica que se seguiu à ruptura com a Inglaterra.

    O que era constatado pelo setor majoritário da sociedade, mergulhado em dívidas e empobrecido, é que uma medida drástica seria necessária para devolver a confiança a instituições que estivessem efetivamente preparadas para receber suas demandas e dar a adequada resposta a elas¹¹.

    Já para os setores minoritários¹² - grandes proprietários e credores - a exata falta de garantias institucionais, que marcava o período, os deixava vulneráveis à possibilidade de o setor majoritário galgar espaço no campo do poder político. E é neste ponto que se temia o risco da tirania, já que a ausência de garantias legais era tão explícita que qualquer grupo que lograsse o controle da força pública se tornaria uma óbvia e imediata ameaça pra todos os demais.

    Assim, em 1787, o desejo de fomentar um governo nacional forte e centralizado para sobrepujar a instabilidade social e política que experienciavam possibilitou que se propusesse na Convenção Federal, também conhecida como Convenção da Filadélfia, a criação de uma nova Constituição que substituiria os Artigos da Confederação.¹³

    Tal Convenção, cujos trabalhos se desenvolveram de maio a setembro de 1787 e que contava com cinquenta e cinco delegados dos estados, apresentou natureza de verdadeira ‘convenção constituinte’, já que o saldo dos encontros em que se debateram temas como o novo governo federal, a distribuição de competências entre os estados, a divisão de poderes e a representação parlamentária culminou na redação do novo texto da Constituição, que deveria ter a ratificação de, ao menos, nove estados para entrar em vigor.

    Passada a Convenção, o projeto da Constituição seguiu, então, para o processo de ratificação que ocorreria em cada um dos estados integrantes das treze colônias. Tal processo de ratificação, no entanto, produziu um extraordinário debate retórico envolvendo os posicionamentos favoráveis e os contrários ao referido projeto.

    Idealizado como alternativa à fórmula monárquica inglesa¹⁴ ¹⁵, ao tempo tida como opressiva, e concebido em termos pragmáticos pelos delegados da convenção constitucional norte-americana de 1787, o presidencialismo é objeto de análise em um compilado de artigos conhecido como O Federalista (The Federalist)¹⁶.

    A intenção desse movimento foi fazer um esforço de buscar a aprovação dos votantes na Convenção de Ratificação do Estado de Nova York quanto ao texto da nova Constituição dos Estados Unidos da América, esboçado na Convenção da Filadélfia naquele mesmo ano.

    Na qualidade de deputado, idealizador de The Federalist e, depois, como Presidente dos Estados Unidos (1808-1816), foi James Madison - o federalista da Virgínia - quem defendeu a força do Poder Executivo. Para Madison, a União e um forte Poder Executivo garantiriam a independência da nova nação, fortaleciam-na e, consequentemente, garantiam sua sobrevivência. Alexander Hamilton, por sua vez, foi o autor dos excertos de O Federalista nos quais se debate com mais especificidade o tema da separação de poderes, o que se verifica, em especial nos Artigos 47 e 51¹⁷, brote estruturante dos contornos do presidencialismo.

    O Federalista pode ser entendido como produção retórica representativa do iluminismo no âmbito norte-americano, de inspiração clássica, em especial quanto à concepção de virtudes republicanas, bem como quanto à idealização de uma estrutura institucional que decorresse do esforço consciente dos indivíduos e não produto do azar ou da força¹⁸. Em última instância, trata-se de uma construção teórica bem articulada que até hoje consiste em conteúdo de fundamental referência para a ciência política e para a teoria constitucional.

    Isso, não somente por serem textos que sustentaram a inauguração de um novo sistema, senão porque se estruturaram em propostas prudentes, que levam em conta os traços da natureza humana e a experiência de sistemas políticos pretéritos para efetivamente iniciar uma nova prática institucional. Conforme enuncia Madison no Artigo n. 37, era objetivo da Convenção: combinar a estabilidade e a firmeza necessárias ao governo com a sagrada atenção devida à liberdade e à forma republicana.¹⁹.

    Dentre os aspectos conceituais desse projeto pode-se destacar o estabelecimento de uma república de larga extensão territorial, com vocação expansionista e de contenção da ação de facções eventualmente atuantes no território. Assim, desenhou-se uma estrutura federal composta de um governo nacional, de poderes enumerados, e dos governos estaduais detendo poderes residuais, além de estabelecerem a formação de um legislativo bicameral, diferente do que havia ao tempo do Congresso Continental.

    Para sustentação desse sistema, invocaram o princípio da separação dos poderes, tendo como ponto de partida os fundamentos trazidos por Montesquieu²⁰, porém com alguns matizes e modificações, inaugurando o chamado controle pelo sistema de freios e contrapesos. De qualquer sorte, a invocação de tal princípio, assegurando a harmonia entre os ramos de poder, culminou, também, na criação de um Poder Judiciário independente, encarregado de assegurar o equilíbrio de todo o sistema²¹. Consagrou-se, ademais, o princípio da representatividade, consistente na defesa de que ‘homens virtuosos’ deveriam se ocupar das funções públicas, dos interesses nacionais, imbuídos de um espírito cosmopolita, e não baseados unicamente em motivações locais.

    Em suma, havia uma inclinação dos defensores da Constituição em buscar uma estrutura que fosse mais permeável às mudanças e variações de opiniões que estão presentes no seio da sociedade, evitando se referenciar em modelos já obsoletos e anacrônicos²². Tendo em conta tal cenário e no intuito de sistematizar o desenho institucional que propunham, os federalistas partiram de uma premissa bastante relevante: os vícios inerentes à natureza humana.

    A premissa é de que os indivíduos não atuam movidos pelo interesse no bem comum, senão nos seus interesses pessoais ou partidários. Tal está explícito no Artigo n. 06 (Hamilton), quando diz que os homens são ambiciosos, vingativos e gananciosos; no Artigo 10 (Madison), quando destaca que a divisão dos homens em partidos inflamou-os com mútua animosidade e tornou-os ainda mais dispostos a se molestar e se oprimir mutuamente ao invés de cooperar pelo bem comum, bem como no Artigo 15 (Hamilton) ao dizer que o homem tem ânsia de poder e que o egoísmo humano leva à ruína²³.

    Portanto, sabendo que o mundo não é composto de anjos e que, se assim fosse, sequer seria necessário governo, como bem assinala Madison no Artigo 51, o que se revelava necessário era que: a ambição deve poder contra-atacar a ambição. O interesse do homem deve estar vinculado aos direitos constitucionais do cargo. Talvez não seja lisonjeiro para a natureza humana considerar que tais estratagemas poderiam ser necessários para o controle de abusos do governo. Mas o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana?²⁴.

    Ao reconhecer tal fenômeno, a proposta federalista se calcava na firme confiança de que um conjunto bem organizado de regras institucionais, aplicados sobre a natureza humana, teria condições de gerar a estabilidade institucional tão desejada.

    É o que afirma Madison, no Artigo 39, quando sustenta que somente a república é compatível com a louvável determinação que anima todos os adeptos da liberdade a fundar as experiências políticas na capacidade de autogoverno da humanidade²⁵. Nesse trecho, há a clara demonstração de que confiam na capacidade humana de instituir um sistema de governo eficaz, justo e compatível com as liberdades dos cidadãos, apesar dela possuir suas inclinações perversas, ainda que consista num experimento político.

    Portanto, segundo advogavam, a nova Constituição consistia num experimento que não se finca num vazio político prévio, senão em uma proposta que, consciente do passado, busca corrigir o caminho ao futuro²⁶.

    E a fim de amarrar as pontas desse sistema político proposto, levando em conta a tendência da natureza humana, propuseram o enfraquecimento do Poder Legislativo com a simultânea ampliação das prerrogativas do Poder Executivo, a ser chefiado pela figura do Presidente, bem como enalteceram a criação de um Poder Judiciário central, sendo esses três poderes regidos por um mecanismo de mútuos controles que, inspirado na teoria pura da separação de poderes, a ela não se limitava.

    O presidencialismo aqui concebido, portanto, buscou refletir essa nova forma de organizar as instituições políticas, baseando-se, em primeiro lugar, na figura de um gestor potente, com vocação para mitigar a intensa concessão de prerrogativas antes conferidas ao Poder Legislativo. E, dentro dessa nova forma, um elemento que ganha especial destaque é a concepção de Hamilton segundo a qual ao presidente caberia, entre outros pontos, manter a unidade na ação governamental. Sob esse viés, o que desponta é que a energia, o vigor, do Poder Executivo seria um dos principais eixos de uma boa Constituição.

    Sobre esse aspecto, importantes considerações foram feitas por Hamilton no Artigo 70, as quais merecem especial destaque.

    Nesse arrazoado, acentuou-se que o Poder Executivo, na pessoa do presidente, representaria uma instância institucional eficiente e prospectiva: enérgica, no sentido positivo do termo, que seria formado pela conjugação de diversos fatores: os ingredientes que constituem a força do executivo são: unidade; duração; condições adequadas de apoio; e poderes adequados.²⁷.

    Em tal passagem fica clara a configuração de uma atividade executiva concentrada na figura de uma só pessoa que, tendo a garantia de permanência na função, pode dar continuidade aos atos de governo com mais assertividade, haja vista possuir os poderes suficientes para tanto.

    A ênfase à unidade e ao fortalecimento

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