A África no Serro Frio: Vissungos
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A África no Serro Frio - Lúcia Valéria do Nascimento
1. INTRODUÇÃO
Sendo a língua o elemento mais importante da cultura de uma comunidade, quando ela morre, perde-se o saber específico daquela cultura. Assim, tem-se constituído um dos maiores desafios da Linguística – ciência que estuda as línguas, a linguagem humana – tentar salvar as línguas que estão em extinção em várias partes do planeta.
É óbvio que temos de repensar seriamente nossas prioridades para que a lingüística não entre na história como a única ciência que assistiu despreocupadamente ao desaparecimento de 90% do campo a que se dedica.¹.
Há várias tentativas de descobrir quais línguas podem ser salvas e quais devem ser documentadas antes de desaparecerem. Foram preocupações como essas que deram origem à investigação da qual resulta o presente trabalho.
Era voz comum que em algumas localidades próximas a Diamantina, MG, as pessoas se comunicavam em dialeto africano. Isto veio motivar a realização desta pesquisa, pela qual se constatou o quase desaparecimento do referido dialeto.
Este trabalho vem documentar e expor a situação dos remanescentes de língua africana na região de Diamantina, MG.
O processo de desaparecimento da língua africana nesta região está diretamente ligado à morte dos vissungos – cantos ritualísticos produzidos por negros descendentes de escravos – que por sua vez, existiram enquanto houve contexto para a realização das práticas sociais em que eram envolvidos.
Esta pesquisa visa trabalhar os vissungos do ponto de vista de prática social e morte de língua. Para tal foi feita uma análise social, antropológica, um paralelo desta análise com o estudo teórico sobre morte de língua e um estudo sobre as raízes linguísticas dos vissungos. Não se pretendeu aqui, fazer uma análise dos vissungos do ponto de vista linguístico-estrutural.
Nosso objetivo é, portanto, estudar a descrição do gênero vissungo e analisar o seu desaparecimento, na perspectiva da teoria sobre morte de língua.
Na produção científico-literária sobre o assunto, destaca-se a obra de Machado Filho O negro e o garimpo em Minas Gerais editada pela primeira vez em 1943, pelo valor histórico, riqueza de dados e precisão da documentação tanto na letra quanto na música, através dos pentagramas. Nesta obra são documentados os vissungos cantados na região de Quartel do Indaiá/São João da Chapada, MG, numa pesquisa realizada da década de 30.
Para suporte teórico, tomaremos como referência, principalmente, os trabalhos de Ingedore Koch² sobre texto e contexto, os trabalhos de Dell Hymes³ sobre abordagem etnográfica na sociolinguística, estudando a interação da língua e vida social, e os trabalhos de Nancy Dorian⁴ sobre a obsolescência da língua, trabalho de salvamento, últimos falantes e morte de língua.
Como os fenômenos sociolinguísticos não são fáceis de serem explicados em sua totalidade pelas teorias, o desenvolvimento deste estudo exigiu que fossem feitas várias viagens a campo para realização de entrevistas, observação da vida em comunidade e para fazer as gravações dos vissungos. Leituras sobre a história local, com o objetivo de esboçar um quadro sobre a identidade do cantador de vissungo, foram também de extrema importância.
Este trabalho foi dividido em oito capítulos, sendo o primeiro um capítulo introdutório.
No capítulo 2, temos uma apresentação das alterações ocorridas durante a pesquisa e situamos a Comarca do Serro-Frio com o objetivo de esclarecer a escolha das duas localidades pesquisadas.
O capítulo 3 foi dividido em seções com o propósito de apresentar os vissungos sob diferentes perspectivas. Assim, na seção 3.1 tratei da localização e contexto de uso dos vissungos: fiz a caracterização dos principais traços históricos da região mineradora de Diamantina, expliquei o termo vissungo e sua relação com as práticas sociais; na seção 3.2, dos vissungos enquanto texto: montei um quadro teórico baseado em Koch⁵ a partir do qual analisei a contextualização dos vissungos; na seção 3.3, dos vissungos enquanto práticas sociais: temos uma ligeira revisão bibliográfica sobre o assunto; e na seção 3.4, das raízes linguísticas dos vissungos: procurei situar a língua predominantemente cantada nos vissungos. Nesta seção, pude provar que a miscigenação de escravos, na região de Diamantina, era muito grande; eles eram provenientes de várias localidades da África, motivo pelo qual dei destaque especial às línguas banto.
No capítulo 4, analisei o contexto social dos vissungos através de uma descrição etnográfica das comunidades Quartel do Indaiá/ São João da Chapada e Ausente/ Milho Verde.
No capítulo 5, tratei da pesquisa de campo, numa demonstração metodológica.
No capítulo 6, sobre a morte de uma língua, tratei da extinção dos vissungos montando um quadro teórico nas diretrizes de Dorian⁶
No capítulo 7, fiz uma análise comparativa dos vissungos como eram realizados enquanto havia as práticas sociais e na situação atual. Nesse capítulo pude acompanhar todo o ritual de enterro através da narração do Sr. Crispim, um dos cantadores de Ausente/Milho Verde.
Finalmente, no capítulo 8, estão registradas as ideias conclusivas, apontando os indicadores que comprovam o desaparecimento da língua africana na região pesquisada.
1 KRAUSS, Michael. The world’s languages in crisis. Language, v. 68, n. 1, p. 4–10, 1992. Apud GIBBS, W. Wayt. Salve as línguas que estão morrendo. Scientific American Brasil, v. 3, p. 81-87, ago 2003.
2 KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
3 HYMES, Dell. Foundations in Sociolinguistics: an ethnographic approach. London: Tavistock Publications Limited, 1974.
4 DORIAN, Nancy. Last speakers. The Language Project, Universal Forum of Cultures, Barcelona, 2004. Forthcoming.; DORIAN, Nancy. Obsolescent Languages. In: FRAULBLEY, William, (Ed.). The International Encyclopedia of Linguistics. 2. ed. Oxford: University Press. 2003, v. 3. ; DORIAN, Nancy. Salvage Work (endangered languages). In: MESTHRIE, Rajend, (Ed.). Concise Encyclopedia of Sociolinguistics. Ofxord: Elsevier. 2001. p.813-816.; DORIAN, Nancy. The Study of Language Obsolescence: stages, surprises, challenges. Languages and Linguistics. Langues et Linguistique/Languages and Linguistics: Revue Internationale de Linguistique. v. 3:, p. 99-122., 1999.
5 KOCH. Desvendando os segredos do texto.
6 DORIAN. Salvage Work (endangered languages). In: MESTHRIE, (Ed.). Concise Encyclopedia of Sociolinguistics; DORIAN. The Study of Language Obsolence: stages, surprises, challenges. Languages and Linguistics. Langues et Linguistique/Languages and Linguistics; DORIAN. Last speakers. The Language Project, Universal Forum of Cultures; DORIAN. Obsolescent Languages. In: FRAULBLEY, (Ed.). The International Encyclopedia of Linguistics.
2. NA TRILHA DOS VISSUNGOS
No projeto de dissertação Estudo Fonológico dos Vissungos de São João da Chapada, apresentado à POSLIN (FALE/UFMG) em março do ano de 2001, propus fazer um estudo comparativo entre os vissungos – cantos ritualísticos produzidos por negros descendentes de escravos – colhidos por Machado Filho e publicados em 1943 no livro O negro e o garimpo em Minas Gerais, na região de São João da Chapada/Quartel do Indaiá, e os vissungos coligidos por mim nos anos de 2001/2002, dentro de uma perspectiva fonológica. Esse projeto previa a coleta de dados na mesma região onde Machado Filho fez sua investigação. Da comparação dos dados colhidos por Machado Filho⁷ , e dos dados coletados pela pesquisadora, constatou-se que a proposta inicial de um estudo fonológico apresentada no projeto de dissertação não deveria ser realizada, visto os vissungos remanescentes naquela região serem em número muito reduzido e com uma acentuada alteração. Esta constatação conduziu a uma nova proposta: a urgência de registrar tais vissungos e um estudo mais detalhado sobre sua natureza e função.
Contudo, a hipótese inicial do projeto poderá ser objeto de estudos posteriores, caso se comprove a existência de um corpus que justifique uma análise fonológica comparativa dos vissungos. Entretanto, constatei que apenas dois cantadores identificados em toda a localidade são os únicos a reter na memória os cantos, tornando-se necessário partir para o registro destes em sua forma atual e trabalhar sobre uma perspectiva da linguística textual, aliada a uma necessidade de abordar os vissungos na perspectiva a morte de língua
A presente justificativa tem como objetivo demonstrar a alteração da proposta inicial de uma análise fonológica para uma análise em linguística textual. Essa alteração visa garantir o registro do corpus coletado em 2001/2002, analisar os vissungos como práticas sociais e as possíveis razões que levaram ao desaparecimento dessas mesmas práticas. Machado Filho coletou 65 vissungos na década de 30 e eu encontrei, na mesma região, apenas 14 vissungos guardados na memória dos cantadores.
Sendo a pesquisa conduzida para o novo rumo, realizei uma segunda coleta de vissungos, partindo para o registro dos dados e, consequentemente, para uma análise dos seus usos e funções dentro das práticas ritualísticas. A nova coleta se deu no povoado de Ausente, próximo ao distrito de Milho Verde, pertencente ao município do Serro (MG). Também nesta localidade foram encontrados apenas dois cantadores, dos quais somente um se mostrou receptivo à pesquisa. Os vissungos encontrados em Ausente diferem em grande parte dos cantados em Quartel do Indaiá quanto às letras das músicas, mas não diferem quanto ao uso e às funções.
Os povoados de Ausente/Milho Verde e Quartel do Indaiá/São João da Chapada faziam parte da