O Sacerdócio Psiquiátrico
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O Sacerdócio Psiquiátrico - Daniel Figueira
O Sacerdócio Psiquiátrico
Nota Sobre a Escravidão Terapêutica
do Ser Humano
Daniel Figueira
[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
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[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
Sumário
Apresentação
Introdução
Capítulo 1 – A Constituição do Mito da Doença Mental
- O desespero humano e a constituição do mito
- O papel e a função estratégica do bode expiatório
- O Grande Internamento e a fabricação da doença mental
- A Crença em Feitiçaria e a Drapetomania
- O Mito do Homossexualismo e da Insanidade
Masturbatória
- O Mito da Esquizofrenia e o Tratamento Moral
Capítulo 2 – A Ideologia da Saúde Mental
- Reforma Psiquiátrica ou Escravidão Terapêutica?
- Ressocializar não é infantilizar
- Drogas não Matam, Pessoas se Matam!
- Quanto à cultura da doença mental
- Quanto à questão do papel de doente
Capítulo 3 – O Engodo da Política de Inclusão Social
- O estigma da diferença e a mortificação da semelhança
- Políticas de inclusão social ou de destruição individual?
Capítulo 4 – O Engodo da Política de Prevenção do
Suicídio
[ 3 ]
[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
Capítulo 5 - O Engodo da Política de Combate às Drogas
Capítulo 6 – Delírios e Alucinações: Uma análise crítica
- Pessoas não deliram, pessoas mentem!
Capítulo 7 – Justificando o Injustificável: a Alegação de
Insanidade
Capítulo 8 – O Mito da Teoria Bioquímica da Doença
Mental
Capítulo 9 – Tratamento Não é Coerção
Considerações Finais
Epílogo – A destruição do Autocontrole
Resumo
Bibliografia
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[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
Apresentação
Há muita razão na proposição segundo a qual viver
é um risco. Se desejo viver devo aceitar o risco que lhe é
inerente, pois caso a renuncie estaria logicamente
renunciando a própria vida. Assim não pode haver vida
sem risco. Viver implica fazer escolhas, ainda que a
escolha seja nada escolher. Não há como fugir disto.
Qualquer escolha que se faça pode nos orientar a
algo bom ou mau, algo que nos faça sofrer ou nos faça
sentir bem, talvez nem uma coisa nem outra, mas de uma
coisa é certa, a possibilidade do erro estará sempre
presente a despeito de negarmos ou não.
É, portanto justo reescrever a sentença inicial da
seguinte maneira: viver é a arte que envolve o risco da
derrota. Significa assim que não é possível viver sem se
permitir ao erro, pois tal empreendimento só seria viável
caso estivéssemos mortos, quando a possibilidade de
realizar escolhas já não existisse mais.
[ 5 ]
[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
Quando nos sentimos mal ou sentimos que nosso
corpo não está bem podemos optar por buscar um auxílio
profissional ou talvez uma pessoa leiga a quem vamos
depositar nossa confiança pela ajuda que poderá nos
oferecer, embora a facilidade de acesso varie conforme a
condição socioeconômica de cada um.
Isto é algo que ocorre todos os dias na vida de
milhões e milhões pelo mundo afora, não resta dúvida.
Cuidar da saúde é palavra de ordem numa sociedade
adoecida como a nossa. Mas saúde é apenas um dentre
tantos outros valores humanos, como vida, segurança,
liberdade, etc. Podemos, por exemplo, amar mais saúde
que liberdade ou vice-versa.
Há uma posição ética que devemos assumir ao
invés de tentar impingir aos olhos de nosso semelhante
que um valor seja superior a outro. O valor que estimo é
o de liberdade, as ideias que aqui apresento se modelam
conforme tal valor. Este é o posicionamento ético que
adoto e assumo desde já.
[ 6 ]
[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
Por mais que haja pessoas que se sintam mal e
busquem ajuda profissional não significa que todos que
são tratados consentiram com as intervenções a que
foram submetidos. O leitor deve saber o quanto é
gratificante sermos ajudados quando desejamos receber
tal auxílio.
Agora imagine a situação em que você não deseja
ser ajudado e há pessoas que o tentam convencer do
contrário, pior elas simplesmente desqualificam sua fala
dando-lhe um nome degradante (como louco,
esquizofrênico) e o tratam involuntariamente. Consideraria
isto bom para ti?
Se realmente considerasse tal intervenção boa para
ti, a expressão tratamento involuntário perderia sua razão
de ser. Ela só existe justamente pelo fato de representar
uma clara violação do direito do ser humano ser
reconhecido e respeitado em sua liberdade de recusar
tratamento.
[ 7 ]
[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
Elaborei este trabalho como forma de manifestar
minha indignação frente ao caráter elitista, autoritário e
coercitivo do campo da Saúde Mental, sua ideologia
pseudolibertária que mantém indefinidamente o ser
humano nas amarras de uma escravidão terapêutica.
Eu atuei durante um breve período de tempo neste
campo e acredito que se não houvesse aproveitado a
oportunidade de conhecer um pouco como as coisas
funcionam muitas das questões que aqui abordarei
dificilmente teriam sido formuladas, talvez sequer
cogitadas. Deste modo, antes de apresentá-las considero
essencial apresentar o contexto em que tais surgiram.
Estou certo de que a maneira como irei abordar os
temas resulta não tão somente daquilo que observei na
experiência de meus colegas de profissão, mas também
do que observei em mim mesmo enquanto alguém que
esteve no papel de agente de cuidado.
[ 8 ]
[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
Muito antes de haver pretendido realizar um curso
de graduação em Psicologia nutria crenças que havia
aprendido ao longo da vida: algo a respeito do que seria
doença mental, do que seria alguém com esquizofrenia,
do que seria o trabalho de um profissional desta área, do
que significava tratamento, qual era a função das
medicações, etc.
Penso que qualquer ser humano leigo que tenha
tido um mínimo de contato com a realidade das práticas
psiquiátricas deve provavelmente possuir suas opiniões.
Transportei minhas crenças até o momento em que as
confrontei com o fato do trabalho propriamente dito.
Perguntava-me: que significava aquilo tudo?
Porque algumas pessoas estavam ali? O que elas
realmente
desejavam?
Estariam
verdadeiramente
sofrendo de uma doença? O cuidado oferecido seria algo
imprescindível? Questões cujas respostas me levavam a
maiores questionamentos: Deveríamos fazer algo por
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[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
aquelas pessoas? Se sim, por quê? Se não, por quê? Em
qualquer caso, como?
Apesar de estar diante de questões angustiantes
passei a me dedicar a um aspecto considerado essencial
na tentativa de solucionar este impasse: a convivência
constante com os usuários do serviço associada a uma
contínua observação e reflexão de tudo que ocorria ao
meu redor.
A importância da convivência foi algo que aprendi
com uma das psicólogas do serviço, atualmente diretora
do CAPS, a quem devo o mérito de haver me indicado que
o fundamental a ser considerado na prática de assistência
ao ser humano é o próprio ser humano, aquilo que só
podemos ter acesso através do contato direto, sem
mediações feitas por literaturas ou especulações que
distorcem a realidade que só o outro pode nos dizer.
Uma das coisas que constatei foi o fato de não me
parecer haver substancial diferença no cuidado prestado
[ 10 ]
[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
às pessoas diagnosticadas como portadora de transtorno
mental e seus familiares. Comecei a me indagar sobre a
função do rótulo psiquiátrico e a considerar que ele servia
mais como ferramenta de estigmatização que qualquer
outra coisa que alguém pudesse alegar como bom.
Pois em que poderia tornar melhor o cuidado à
pessoa usuária em saúde mental o fato de ela ser ou não
rotulada como esquizofrênica? Se realmente há algo bom
poderíamos dizer que a relação custo-benefício é
efetivamente favorável ao paciente?
Se não o é, então não vejo justificativa para o uso
de tal ferramenta. Realmente pude notar que muitos
pacientes eram estigmatizados e prejudicados não tanto
pelas coisas consideradas estranhas que fazia, mas pelo
rótulo que carregava, ainda que nada fizesse.
Um pequeno exemplo a citar foi o que ocorreu com
um dos usuários ao ser encaminhado ao serviço de clínica
médica e ao chegar lá ser reencaminhado ao serviço de
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[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
saúde mental apenas por se tratar de um paciente
psiquiátrico, como se um paciente desta categoria não
pudesse sofrer de um problema clínico.
Também notei que muitos destes usuários,
praticamente todos, eram pessoas economicamente
desfavorecidas, desempregadas, com baixa escolaridade,
sem possuir expressivos vínculos familiares e afetivos.
Talvez isto não seja nenhum absurdo dado o fato
de vivermos num país afetado por inúmeros problemas
sociais, como a pobreza, a violência urbana, as crises
econômicas, entre outros. De qualquer modo, a busca
pelo serviço parecia mais como meio de preencher
lacunas ocasionadas pelas circunstâncias adversas da vida
do que uma busca por tratamento de alguma possível
enfermidade.
Além disto, todos faziam uso crônico de drogas
psiquiátricas, embora uns mais outros menos. O curioso
foi o fato de que os usuários que apresentavam menor
[ 12 ]
[O Sacerdócio Psiquiátrico], por [Daniel Figueira]
comprometimento de suas funções vitais eram os que
menos uso faziam de drogas ou rejeitavam tomá-las, ao
passo que os mais comprometidos eram os que mais
faziam seu uso.
Diante
disto
me
ocorreu
o
seguinte
questionamento: tais pessoas estavam mais adoecidas
porque faziam uso da medicação ou faziam uso da
medicação porque sua doença mental estava num estágio
mais avançado, caso contrário estariam ainda mais
doentes?
E também: tais pessoas estavam mais preservadas
porque faziam pouco uso da medicação ou faziam pouco
uso da medicação porque seu transtorno estava
estabilizado, caso contrário estariam piores? Não
reconheço até o momento outra hipótese senão que as
drogas psiquiátricas destroem inúmeras vidas na falsa
esperança de que ajudam