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O Caso Do Tipógrafo
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E-book282 páginas4 horas

O Caso Do Tipógrafo

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Sobre este e-book

Autobiografia de Emílio Figueira que nasceu com paralisia cerebral com sérias causas na fala e movimentos, conhecendo a forte exclusão social em seus primeiros anos de vida. Vencendo obstáculos sociais e atitudinais por meio da educação, cursou três faculdades, cinco pós e dois doutorados, tendo uma extensa produção científica e literária com mais de oitenta livros publicados. Nestas memórias, o autor narra de forma descontraída suas construções artísticas, superações e motivações pessoais, discutindo como pano de fundo conceitos de Inclusão Social, Educação Inclusiva e sua visão dos efeitos positivos de se ter uma deficiência.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento26 de mai. de 2020
O Caso Do Tipógrafo

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    O Caso Do Tipógrafo - Emílio Figueira

    APRESENTAÇÃO

    O LEGADO DE EMÍLIO FIGUEIRA À INCLUSÃO BRASILEIRA

    DE SUAS EXPERIÊNCIAS PESSOAIS, ÀS SUAS PRODUÇÕES CIENTÍFICAS, CONTRIBUIÇÕES PEDAGÓGICAS E HUMANISTAS

    Por DEISE TOMAZIN BARBOSA

    Mais do que um relato de memórias, esta obra traz a história de um personagem ímpar. Ao nascer com paralisia cerebral no final dos anos 1960, Emílio Figueira conheceu como ninguém a exclusão social, passando seus primeiros anos dentro de uma instituição. Ocasião em que eu o conheci, por volta de 1972, por sermos pacientes e alunos semi-internos na Associação de Assistência à Criança Defeituosa (termo da época), a AACD-Ibirapuera. Foram nove anos da nossa infância em que convivíamos praticamente todos os dias nas terapias e salas de aulas...

    Depois, Emílio, ao partir para viver em uma pequena cidade do interior e, ao ser totalmente incluído educacional e socialmente, fez a diferença. Dois polos que influenciam toda a sua vida e carreira.

    Em meados da década 1980, adolescente, ele tomou consciência de sua própria deficiência. Paralelo as suas primeiras mal traçadas linhas como aspirante a escritor, poeta e estagiário como repórter, Emílio começou a escrever seus textos sobre a temática, a ler artigos e livros sobre esse universo e realizar suas tímidas pesquisas sobre integração social.

    O Brasil daquele período vivia intensamente o Movimento Político desse grupo, inspirados pelo "Ano Internacional da Pessoa Deficiente – 1981". Mas por estar no interior, longe de todas as capitais, Emílio Figueira travava o início do que seria uma caminhada reservada. Uma característica que ele traz desde sua infância até os dias atuais, o gosto pelo trabalho solitário em sua mesa em um canto de seu quarto. Mesa essa que sempre manteve intensamente uma grande e diversificada produção.

    Na década seguinte, Figueira se mudaria para Bauru, cidade de grande porte. Ali, ainda na máquina de escrever, datilografando com um único dedo, ele começou a redigir artigos e textos de opinião sobre todas as questões que envolviam pessoas com deficiência. Esses textos eram enviados espontaneamente para muitos jornais e revistas, sendo em sua grande maioria publicados.

    Período também em que Emílio Figueira foi colaborador das primeiras publicações brasileiras voltadas exclusivamente ao assunto, o jornal carioca Desafio de Hoje e da revista paulista Integração, ambos já extintos. Dali, esse autor definiria qual seria sua principal atividade pelas décadas seguintes: ser um divulgador das informações e novidades que envolvem as pessoas com deficiência.

    Emílio começou a ajuntar um grande acervo de livros e publicações sobre a temática. Trocava muitas correspondências com pessoas do Movimento e pesquisadores da área. Foi de onde veio a sua primeira grande influência, ao conhecer o antropólogo João Baptista Cintra Ribas, o qual o orientou amigavelmente por muitos trabalhos.

    Em seguida, Figueira conheceria uma influência ainda maior, o assistente social Romeu Kazumi Sassaki que, antenado com tudo o que acontecia lá fora, traduzia e trazia para o Brasil todas as tendências e conceitos revolucionários referentes às pessoas com deficiência.

    Nesse período, Emílio, já como pesquisador-bolsista do Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Anomalias Crânio-Faciais (Centrinho-USP/Bauru), realizou sua primeira grande linha de pesquisa intitulada "Deficiência e Comunicação Social". Nela, Figueira defendia a importância da normalização da imagem dessas pessoas nos meios de comunicação de massa, assim como a necessidade de surgirem mais publicações alternativas, focando todo o universo que as envolviam. Para o pesquisador, quanto mais informações veiculadas de forma correta, mais naturalmente ocorreria a integração em todos os níveis.

    Em sete anos que Emílio Figueira permaneceu no Centrinho, produziu seis monografias de especializações, inclusive sobre a imagem das pessoas com deficiência na literatura infantojuvenil e publicou mais de trinta artigos científicos no Brasil e exterior.

    Surgiu a internet, permitindo ao Emílio ampliar consideravelmente o alcance desse jornalismo especializado, escrevendo colunas para diversos blogs de comunicação de massa, exemplo a Globo.com, além dele mesmo criar sites e blogs temáticos, como faz até hoje. E, com o advento do computador e estudando computação gráfica, Figueira ajudou entidades a criarem publicações alternativas.

    Iniciaria sua segunda linha de pesquisa, estudando o que intitulou de "Arte e Deficiência", sobretudo dentro da história da arte, o que lhe rendeu novos artigos publicados em revistas especializadas.

    Ainda na segunda metade dos anos 1990, o professor Romeu Sassaki apresentou-lhe ao conceito de Inclusão. A produção intelectual de Emílio Figueira voltada às questões das pessoas com deficiência passou a ser toda pautada por ela a partir dali.

    Ao resolver cursar psicologia, Emílio abriria horizontes para novas linhas de pesquisas. Ainda na faculdade, estudava e escrevia sobre o que ele chamava de "Arte e Loucura" e de como o fazer artístico poderia ajudar na saúde mental. Estudo que lhe rendeu vários artigos e dois livros.

    O importante mesmo, foi que, motivado pela memória da psicóloga uspiana Lígia Assupção Amaral, sua amiga da época da Revista Integração e que havia falecido na mesma semana em que ele prestou o vestibular, Figueira começou a estudar as relações entre psicologia e pessoas com deficiência, produzindo mais de cem textos, quatro livros. Linha de pesquisa que ele mantém até os dias atuais.

    Foi a partir de seu mestrado em Educação Inclusiva que Emílio iniciou sua grande jornada, escrevendo vários textos de apoios didáticos, treinamentos. Viajou para várias partes do país para palestras, onde devido a sua dificuldade de dicção por causa da paralisia cerebral, montava suas apresentações em vídeo e se fazia ser entendido.

    Teve cursos online em sites educacionais, além de montar os seus. Exemplo, foi um curso de Educação Inclusiva que ele ofereceu por três anos gratuitamente e ajudou a treinar mais de 23 mil educadores no Brasil e exterior. Principalmente nas regiões norte e nordeste, onde sua obra e/ou história de vida tem sido referencial teórico para vários trabalhos e dissertações acadêmicas.

    Fazendo inúmeros cursos e formações, sempre aplicou esses conhecimentos ao mundo das pessoas com deficiência. Exemplo, foi o seu segundo doutorado que, no campo da teologia, focou o caminhar da pessoa com deficiência desde o início da Bíblia e ao longo de todo o cristianismo.

    Emílio Figueira é um curioso em aprender e a produzir intensamente. Edita seus próprios livros, o que lhe permite colocar grande parte de suas obras no campo da inclusão gratuitamente na internet. Como também cria todos seus sites e conteúdos. Sempre dentro de suas possibilidades, atende a todos os pedidos de ajuda, seja virtual ou pessoal, gentilmente. Em sua caminhada e produção referentes às questões das pessoas com deficiência, raramente foi remunerado, atuando por ideologia, como se fosse um sacerdócio, uma missão que recebera ao vir a este mundo.

    "Sei que algumas coisas que faço, produzo ou escrevo podem apresentar erros. Só que, o feito é melhor que o perfeito escondido em uma gaveta. Sempre estarei em busca de resultados e não de reconhecimentos acadêmicos ou eruditos. E com os meus passos dentro das minhas possibilidades, com meus erros e acertos, continuarei fazendo a minha parte para uma Escola e uma Sociedade inclusiva!". Diz ele.

    Sua abordagem humanística está presente não somente nessa área, como em seus escritos literários, peças teatrais e produções audiovisuais. Acreditando em um mundo melhor e igualitário. Como por exemplo, baseado em suas experiências pessoais, defende em seus escritos e palestras a Educação Inclusiva realizada pela afetividade:

    Incluir não tem segredo. Basta receber um aluno, seja ele quem for. Acolher com amor, ter a sensibilidade de perceber e pesquisar o que ele realmente precisa de apoio para se desenvolver em todos os sentidos. Um bom professor precisa ser um suporte seguro que lança seus alunos rumo às infinitas possibilidades.

    Figueira, por trabalhar na solidão de sua mesa, passa despercebido do cenário inclusivo nacional, onde muitos ganham fama como heróis da inclusão, sem considerar que toda essa construção tivesse fundamentais pioneiros, muitos com os quais Emílio conviveu e foi influenciado e hoje repousam serenos pelas paredes do Memorial da Inclusão aqui em São Paulo.

    Mesmo não tendo como mensurar, podemos imaginar que o trabalho individual de Emílio Figueira, foi se amplificando ao longo de três décadas. Por ser um cientista que escreve na linguagem simplificada de um jornalista, quantas e quantas pessoas foram e ainda são influenciadas pelos seus escritos impressos e digitais.

    Na área de Educação Inclusiva, sua produção didática, palestras, cursos online, permitem conhecimento e mudanças de mentalidades a milhares de professores, possibilitando a tantas crianças a serem incluídas nesses últimos anos.

    Tudo é o legado discreto de uma pessoa que superou sua própria deficiência, leva conhecimento desmistificando preconceitos, abre caminhos para seus pares em várias frentes sociais e colabora para uma Escola realmente para todos, silenciosamente em seu quarto, digitando com um só dedo!

    DEISE TOMAZIN BARBOSA é Licenciada em Matemática e Pedagogia, especialista a em Tecnologias Assistivas e Deficiências e mestre em Deficiências e Psicanálise.  Gestora no Departamento Pedagógico da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo.

    PRIMEIRA PARTE

    MEMÓRIAS EM PRETO E BRANCO DE RETALHOS DOS MEUS PRIMEIROS MOMENTOS

    NASCENDO E JÁ GUERREANDO DURANTE A DITADURA

    Década de 1960, auge da Ditadura Militar no Brasil – período da política brasileira em que os militares governaram o país entre 1964 a 1985, caracterizado pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.

    São Paulo, bairro do Bom Retiro, Avenida Rugde, esquina com a Rua Sérgio Thomás. Ali existia uma usina da Sabesp, uma subestação de tratamento de esgoto – onde hoje é a sede da LBV. Um terreno muito amplo com um extenso e profundo poço em forma de cone aberto ao centro onde o esgoto era tratado lá embaixo quando seus canais enchiam; descendo as escadarias, ainda mais profundo, ficava a casa das máquinas. Em volta muitas e enormes árvores, gramados, plantas rasteiras, partes de pedregulhos, calçadas de cimentos para caminhadas. Tudo muito bem cuidado e cercado por altas grades de ferro que nos permitiam visualizar o movimento da avenida.

    Ao lado quatro casas dos operários. Uma de frente para rua; entre ela e o muro da usina um enorme corredor de mais de trinta metros. No meio mais uma casa que ficava parede-meia com a da frente. Ao chegar ao fundo do corredor, ele se expandia um pouco como se fosse um rol em forma de quadrado com dois portões de madeira altos e lado a lado à esquerda de quem chegava e uma porta de sala bem em frente ao corredor. Portões, porta e famílias que começarei abrir.

    Começando pela porta da sala, ali morava um dos funcionários da usina, meu avô João, minha avó Lourdes, os filhos Dolírio, Ivone, Maria Aparecida e Tadeu, o sobrinho Edson criado como filho, mais as cunhadas, primas e minha bisavó Geralda. A casa era naquele estilo anexando puxados, o que formava praticamente um u, tendo ao centro um bom quintal cimentado, a lavanderia e um pequeno cômodo como se fosse uma dispensa, mas que acabou ficando como a casa do cachorro chamado Ringo. Esse quintal tinha um portão de acesso ao corredor externo, juntamente ao portão direito do rol já descrito. Quintal que sempre era coberto com uma lona para muitas festas. E uma dessas festas foi em 1967, casamento da filha Ivone, bancária, com um operário de fábrica têxtil, José Carlos, onze anos mais velho. Meus futuros pais!

    Era o fim do governo Castello Branco, que estabeleceu eleições indiretas para presidente, além de dissolver os partidos políticos. Indiferentes ao momento político, aquela família vivia os dias rotineiros, cumprindo seus deveres, trabalhando. O jovem casal atravessou todo o tumultuado e histórico ano de 1968. E minha mãe engravidou aos 21 anos em janeiro de 1969.

    Por ser o primeiro filho, meus pais queriam dar o melhor para mim. Minha gestação foi acompanhada por uma médica particular e ocorreu tudo normal durante os nove meses. Quando minha mãe entrou em trabalho de parto e foi para o hospital, esse médico estava viajando e não pode estar em São Paulo. Ela ficou por 16 horas sofrendo e nenhum outro médico queria atendê-la por se tratar de um caso particular. Não tendo mais jeito e após minha mãe quase morrer de tanto sofrer, o parto foi feito à força e eu retirado de maneira fórceps de forma violenta, tive asfixia cerebral, nasci todo roxo, sem respiração e sinais vitais. Por instinto dos médicos, mas principalmente pela mão de Deus, fui colocado no balão de oxigênio e deixado lá, mesmo sendo considerado morto. Após cinco horas, comecei a chorar, dando sinal de vida. Os médicos não disseram nada aos meus pais sobre a possibilidade de eu ter consequências por isso.

    Com o passar do tempo, minha bisavó Geralda percebeu que eu era diferente das outras crianças; quando alguém me dava uma bolacha, em vez de eu levar a mão à boca, levava a cabeça até a mão. Ao comentar que eu tinha algum problema, todos ficaram muito bravos com ela. Por volta dos três meses, minha mãe me levou ao posto de saúde para as vacinações de rotina. A médica comentou com ela que eu possivelmente tinha um retardo motoro. Mas ela confundiu com retardo mental e chorou por três dias sem parar.

    Após vários exames, constatou-se que eu tinha paralisia cerebral de forma mista: espástica, com rigidez e tensão muscular nos movimentos lentos e desejados: atetoide, movimentos arritimados que concorrem com os movimentos voluntários, resultando em uma incoordenação global, falta de controle e inibição nos movimentos espontâneos. Praticamente fiquei com dificuldades nos movimentos de coordenação motora e de pronúncia, pois os músculos da fala foram afetados. O intelecto, graças a Deus, foi preservado.

    Certa vez, minha bisavó e minha avó Lourdes fizeram a simpatia do ramo de batata e plantaram no quintal da usina. Geralmente quando brotam e começam a criar ramas rasteiras, a criança começa a andar. Mas a minha, em vez de criar ramas, cresceu para cima. Minha bisavó então comentou: Lourdes, o Emilio vai demorar muito para andar, ou nem vai andar!. E assim foi...

    Com menos de um ano iniciaram os meus tratamentos. Primeiro foi no Centro de reabilitação do Sesi-Ipiranga. Depois em paralelo comecei a ser atendido na Associação de Assistência à Criança Defeituosa (nomenclatura da época) – AACD – no Ibirapuera. Foram anos de muito sacrifício para toda a família. Às vezes, meu pai me levava de carro, assim como a avó Lourdes que também dirigia. Na maioria das vezes, eu era levado de ônibus no colo da minha mãe ou de sua prima que eu a chamava de tia Iracema. Quando ia para a AACD, minha mãe me levava de manhã e ia buscar à tarde, tomando nove ônibus por dia. Era realmente uma heroína, uma mãe que não media esforços pela reabilitação de seu filho!

    Vivíamos uma época que os estudos e técnicas de tratamentos ainda engatinhavam. Por quase cinco anos usei aparelhos em quase todo o corpo para ele endurecer. Pesadas pulseiras de chumbo nos braços para diminuir os movimentos involuntários. Lembro-me de seminários com enormes plateias, onde, crianças, éramos colocados só de cueca no palco, o especialista ia nos mostrando e analisando o caso. Assim fiz parte de muitos outros experimentos e pesquisas no início dos anos 1970. Recentemente comentei com o Lucas Colombo Amarante, um grande amigo fisioterapeuta, sobre muitos equipamentos e aparelhos que eu usava na minha reabilitação; fiquei surpreso quando ele me disse que a maioria deles foram abolidos, pois a fisioterapia moderna entende que não eram eficazes. Mas para mim, tudo isso era fundamental para o desenvolvimento e aperfeiçoamento das ciências que envolvem o processo de reabilitação. E, de certo modo, mesmo de forma modesta, dei uma pequena contribuição para isso, sendo objeto de alguns experimentos.

    Por outro lado, muitas adaptações foram fundamentais para mim: na hora das refeições usava uma prancha fixada à mesa onde tinha o encaixe do prato, do copo e da tigela de sobremesa; minha colher era com um cabo grosso de madeira e torta, pois eu ainda não fazia a curva para chegar à boca; o lápis era engrossado e eu usava uma pulseira de meio quilo de chumbo no pulso, visando diminuir a frequência dos movimentos voluntários e conseguir rabiscar, pintar o papel. Por muito tempo usei pesadas botas ortopédicas, fora inúmeros outros recursos que já fugiram de minha memória. E assim minha vida foi sempre de adaptações que permitiram cada vez mais a minha autonomia...

    Nessa época conheci uma colega chamada Deise Tomazin Barbosa que só tinha o braço esquerdo levemente mais curto que o outro, decorrência da paralisia infantil, mas já era o suficiente para ela não poder estudar em uma escola normal. Éramos uns dos poucos alunos que andavam na AACD. Por conta disso, aprontávamos demais, vivíamos na diretoria.

    Dentre as poucas lembranças da minha infância estão as brincadeiras no quintal de meus avós, tantos brinquedos que tive, assim como uma bicicleta azul de quatro rodas e uma tonka. Esse mesmo quintal que foi palco de tantas grandes festas. Desde bebê eu tomava sol na usina onde meu avô João trabalhava, sempre vigiado por seu cachorro, o Ringo. Vizinho da casa morava um casal, Seu Antônio e Dona Eugênia, aos quais eu chamava de avô e avó e brincava muito na casa deles. No meio do extenso corredor morava um casal com muitos filhos; eles eram membros da Congregação Cristã no Brasil e anunciaram a graça aos meus avós que se converteram a essa doutrina em meados da década de 1970. Lembro-me que por várias vezes passeei no colo do avô João pelas ruas do bairro e fui congregar com ele no Bom Retiro.

    Perto dos meus três anos, minha mãe engravidou da Ana Paula. Por conta disso, a avó Lourdes passou a me levar e buscar na AACD. Com meus pais, mudamos para um apartamento, que contarei mais para frente.

    Durante a minha infância, paralelo ao tratamento, eu frequentava os primeiros anos da educação infantil na EMEI Raul Tabajara, na Barra Funda, normalmente entre as demais crianças do meu bairro – o que hoje chamam de Inclusão Escolar. Ao atingir a idade escolar de alfabetização, fui efetivado na AACD como aluno semi-interno e passei a ter direito a perua de transporte escolar.

    Voltando ao meu parto, como disse certa vez uma psicóloga muito minha amiga, eu nasci vencendo a morte. Acredito que nasci já guerreando por um ideal: o de viver! E esse espírito guerreiro tem me acompanhado por toda a minha caminhada em todas as áreas. Sempre com muito otimismo e uma fé inabalável em Deus. Sempre digo com convicção que acho que Ele já me deu muito mais do que uma pessoa na minha condição poderia alcançar. Mas, ao mesmo tempo, sei que Ele ainda tem muito mais coisas para realizar em minha vida do que posso imaginar. E faço desse otimismo o meu combustível para lutar. Claro, após o meu parto, por algumas vezes já passei perto da morte e ainda passarei por vários motivos e ocasiões. Mas tenho certeza absoluta que chegará o dia que serei definitivamente vencido por ela. E partirei com uma sensação de na minha pequena existência ter feito a diferença. Ou pelo menos, tentado...

    ANOS DE ISOLAMENTO NA AACD-CENTRAL, O CAMPO DE REABILITAÇÃO

    Lembro-me que quando fui efetivado como aluno da AACD-Central (como sempre chamei a unidade do Ibirapuera!), no dia em que fui com minha mãe fazer a documentação, lá no salão principal de festas um grupo no palco vestido de papel prata e capacete dançava a música Tomo banho de Lua.... O local lotado, era a comemoração de final de ano. Minha mãe e eu estávamos bem no fundo e na nossa frente havia um repórter cinematográfico com uma câmera de televisão. Logo mais à noite, vi a cena da dança no Jornal Nacional.

    Nos anos 1970 o frio era muito intenso, cinzento e durava exatamente três meses. Levantava-me cedo, tinha que colocar muita roupa, indo com meu pai José Carlos no fusquinha cor café-com-leite. Todos os dias passava pelo Monumento às Bandeiras (o popular Deixa que eu empurro) de Vitor Brecheret, no Ibirapuera, e me admirava por ele. Meu pai me deixava à portaria da AACD antes das sete horas da manhã e eu esperava dar o momento de entrar. Ali via muitos funcionários bater o ponto, inclusive minha primeira professora que se chamava Therezinha. Quando as peruas kombis começavam a chegar, os porteiros me liberavam e eu ia ajudar a pegar as cadeiras e carrinhos de rodas, andadores para

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