Bioética de Proteção na Atenção Primária à Saúde: uma perspectiva fenomenológica
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Bioética de Proteção na Atenção Primária à Saúde - Carlos Bizarro
Uma abordagem narrativa das principais concepções de corpo no Ocidente
O saber produzido sobre o corpo é imediatamente cultural, já que ele é tributário do simbolismo geral da sociedade. Este saber é que permite ao sujeito dar ao corpo um sentido conforme a visão de mundo da sociedade a que pertence, além de lhe possibilitar conhecer sua posição diante da natureza e do coletivo por meio de um sistema de valores. Neste sentido, o corpo é propriamente o efeito de uma construção social e cultural, um inapreensível, apesar de sua suposta evidência de dado indiscutível⁴. Deste modo, muitas são as concepções que o corpo obteve ao longo do desenvolvimento das sociedades ocidentais e seria necessário um esforço árduo para contemplar as diversas teorias elaboradas para dar conta de descrever, analisar e explicar o corpo humano, objetivo este que passa ao largo das pretensões deste capítulo.
Com efeito, e para nossos propósitos, a compreensão do corpo se fará por meio de um recorte resumido de momentos importantes de sua problematização na história do Ocidente, em especial na sua apreensão pelo pensamento filosófico-científico moderno e contemporâneo. Para tanto, pretende-se partir de uma concepção holística, oriunda da tradição, em paralelo à visão paradoxal do corpo no alvorecer da modernidade, isto é, tendo-o como suporte individual e fronteira da relação do sujeito com o mundo, assim como modelo privilegiado da máquina. A partir daí, nosso propósito é chegar à noção fenomenológica e integrativa
do corpo segundo Maurice Merleau-Ponty, o corpo vivido ou corpo próprio. Ponto de vista retomado posteriormente pelo filósofo italiano Roberto Esposito.
As principais concepções ocidentais de corpo
Do homem cósmico ao homem anatomizado
No período medieval, as relações do homem com o coletivo e a natureza eram assentadas na mistura de tradições populares locais e de referências cristãs, enquanto uma antropologia cósmica estruturava a sociedade e a cultura. Neste ambiente, o homem era parte indistinta da comunidade e do cosmos e não possuía uma singularidade que o fizesse indivíduo, na acepção moderna do termo. Não sendo discernível de seu corpo e do mundo, a consciência de identidade do homem medieval estava atrelada ao seu enraizamento físico no interior de uma rede de correspondências que o ligava a todas as coisas.
Este homem cósmico contrastava com o corpo racional que surgiu nas camadas mais eruditas da sociedade europeia do século XVI e que prefigurou as representações atuais do corpo. Considerado pelo viés da separação, o corpo racional é uma abstração, um corpo liso, moral, sem aspereza, limitado, reticente a toda transformação eventual. Um corpo isolado, separado dos outros, em posição de exterioridade com o mundo, fechado em si mesmo
⁵. Esta concepção de corpo restringiu-se, de início, às camadas sociais econômica e ideologicamente emergentes, enquanto nos grupos populares as fronteiras da carne ainda não definiam os limites individuais e o homem continuava identificado com seu corpo radicado na totalidade social e cósmica. Em acréscimo, a precariedade do poder político dos Estados italianos renascentistas neste mesmo período influenciou o desenvolvimento do espírito de cálculo, do voluntarismo, da ambição e da individualidade. Desse modo, houve o favorecimento da instalação de um cenário no qual o movimento de autonomização relativa de indivíduos de certos grupos se acentuou à medida que os elos sociais característicos da economia medieval se enfraqueceram e deram lugar aos interesses privados.
Ainda, a economia medieval fundada na mesura e no justum pretium (preço justo) provindo das instituições eclesiásticas sofreu dois reveses importantes que abalaram seus fundamentos comunitários. Um deles foi o aparecimento dos empreendimentos comerciais e bancários regularizados pela separação entre leis divinas e humanas realizada por Calvino em 1545; o segundo foi a transformação da religião em problema de consciência pessoal sem necessidade de mediação pelo magistério sacerdotal, promovida pelos grupos protestantes. Ademais, é entre o final do século XV e meados do século XVI que a propagação do individualismo passa a ser favorecida também por influência do capitalismo nascente, o que se perpetuará ao longo dos séculos seguintes.
Portanto, o tecido comunitário que coligia há tempos as diferentes ordens da sociedade sob a tutela da teologia cristã e das tradições populares principiou a se distender à medida que a estruturação individualista se propagava lentamente pelo universo das práticas e das mentalidades renascentistas. Inicialmente limitado a certas camadas sociais privilegiadas e zonas geográficas, o novo sentimento de si mesmo distinguia o indivíduo do seu coletivo. Ao mesmo tempo, a expansão do retraimento em si
⁶ e o abandono da visão teológica da natureza modificavam a relação desse homem com o mundo que o cercava.
Todas essas mudanças influenciaram o homem renascentista, que passou a considerar o fato de sua encarnação sob o ângulo da contingência ao perder o enraizamento comunitário e se afastar do cosmos. Essa visão de mundo contraria a de algumas sociedades tradicionais nas quais o corpo não existia como realidade empírica e o conhecer não era um ato de inteligência separada do corpo, mas, sim, uma modalidade física de apropriação antes que um ato puramente intelectual. Neste movimento, o corpo humano da Renascença tornou-se uma forma ontologicamente vazia, reduzida, acidental e um obstáculo ao conhecimento.
Esta invenção do corpo como conceito autônomo necessariamente acarretou uma mudança no status do homem. Em outros termos, a constituição do saber anatômico das universidades italianas no Quattrocento e a instituição da prática da dissecção tornaram-se lícitos quando o corpo deixou de ser um signo irredutível da imanência do homem e passou a ser visto como um objeto em sua realidade autônoma. Dito de outra forma, quando a significação do corpo se fechou e passou a se remeter a nada mais que a ele mesmo.
Com efeito, ao ser favorecida pelas investigações anatômicas, a ontologia moderna que se desenvolveu entre os séculos XVI e XVII na Europa contribuiu para a legitimação do saber biomédico pari passu a desvalorização das tradições populares e religiosas. Foi neste contexto que, durante o século XVII, o saber biomédico sobre o corpo se transformou em uma espécie de apanágio de determinados grupos racionalistas que, pouco a pouco, influenciaram as transformações no âmbito social e cultural.
No entanto, as tradições populares continuaram a se manter vivas por meio das fontes alternativas de conhecimento, mesmo que estigmatizadas pelas classes dominantes. Efetivamente, a divisão entre cultura erudita e cultura popular marcou o apagamento ritualizado do corpo na Modernidade. Todavia, esse apagamento que manteve o corpo como algo depreciado e distanciado nas camadas sociais privilegiadas não foi capaz de retirá-lo do lugar de fonte de enraizamento humano no tecido social e no cosmos nos estratos mais populares. Logo, foram duas as concepções principais de corpo que se polarizaram no início da Modernidade: (1) a visão racionalista, que tratava o corpo como uma coisa ou uma posse ou um ter
e (2) a visão popular, que manteve a identidade de substância entre o homem e seu corpo ao modo de um ser
. Contudo, foi a primeira concepção, aquela das classes dominantes, que obteve maior influência no desenvolvimento científico e filosófico do período, grassando suas ideias para além dessa época até chegar aos dias de hoje.
Do homem anatomizado ao corpo-máquina
O advento da filosofia mecanicista na Europa do século XVII foi resultado de um longo percurso epistemológico marcado, principalmente, pelos trabalhos de Copérnico, Bruno, Kepler e Galileu. Desde os séculos anteriores, a pequena e influente intelectualidade ocidental vinha abandonando a concepção de um cosmos fechado da escolástica e começava a penetrar no universo aberto do mecanicismo, resvalando da noção de aproximação para a de precisão. Assim, na passagem da scientia contemplativa à scientia activa, a reflexão sobre a natureza perdia sua base religiosa e se emancipava da autoridade eclesiástica e de suas causas transcendentes, de modo a articular as percepções sensoriais à abstração das fórmulas matemáticas⁷.
Sob o respaldo da matemática, o conhecimento racional das leis que regem a natureza permitiria estabelecer as causas que presidem os fenômenos e assim dominá-los. Pouco a pouco, as causalidades miraculosas cederam espaço às causalidades físicas em um mundo concebido segundo o modelo da máquina e onde a continuidade entre o homem e a natureza foi sendo quebrada em proveito do primeiro. Para os filósofos mecanicistas, a natureza havia perdido sua forma renascentista holística e viva, para se transformar numa forma vazia, uma espécie de espaço geométrico absolutamente estranho às categorias corporais, composto por muitos objetos inter-relacionados subordinados a leis intangíveis.
Já no âmbito dos saberes sobre o corpo, este se tornou tanto um objeto anatômico que servia para a perscrutação de sua estrutura, como um objeto de estudos estéticos para definir as proporções ideais e para exibições, isto é, um corpo-máquina na metáfora mecânica de Descartes. Assim, a distinção cartesiana feita entre o corpo e o homem produzida na ordem do conhecimento do período traduzia uma nova ontologia na qual o corpo deslizava para fora da noção de pessoa numa evidente ruptura axiológica. Desta forma, o indivíduo moderno revelava-se dividido ontologicamente em duas partes heterogêneas ligadas pela glândula pineal: corpo (res extensa) e espírito (res cogitans). O dualismo ontológico resultante dessa visão filosófica cartesiana, ou seja, a noção de que a constituição original do corpo e da mente promoveria sua participação em domínios radicalmente diferentes da realidade, estabeleceu um sistema dicotômico amplo que incluía várias outras categorias. Nesse cenário, a perspectiva física, isto é, o corpo, a matéria e a natureza ocupavam uma dimensão diferente daquela na qual estaria a não matéria
, a alma ou mente ou eu
, o sobrenatural e o espiritual ou psicológico.
Objeto entre outros objetos, o corpo passou a ser alvo da tecnologia política desenvolvida nos séculos XVII e XVIII e, por meio do princípio de uma ordenação analítica voltada para o escrutínio de todos os aspectos da vida civilizada, as disciplinas se manifestaram como formas gerais de dominação. Dois registros fundamentais surgiram: um anátomo-metafísico, inaugurado por Descartes, e um técnico-político, constituído pelo conjunto de regulamentos institucionais somados aos procedimentos empíricos criados para controlar e corrigir as operações do corpo. Por meio destes dois registros, o homem-máquina emergiu simultaneamente como uma redução materialista da alma e uma teoria geral de adestramento, ambas articuladas ao redor da noção de docilidade a unir um corpo analisável a um corpo manipulável.
Efetivamente, o corpo era o análogo da máquina alinhado a outras máquinas de produção tal como seu apêndice vivo
que, apesar de carregar um resíduo necessário e embaraçoso representado pelos aspectos subjetivos do homem, não se beneficiava de nenhuma indulgência em particular. No entanto, esta noção não se sustentou hegemonicamente e foi acompanhada pelo desenvolvimento paralelo de visões alternativas do corpo, como as concepções fenomenológicas desenvolvidas por Maurice Merleau-Ponty e por Roberto Esposito.
Do corpo-máquina ao corpo próprio
Para introduzir o tema do corpo fenomenológico é importante ter em mente noções atreladas à ideia de corpo próprio − como é o caso dos conceitos de sensação e percepção. Deste modo, vale ressaltar que, no pensamento científico derivado do cartesianismo, a sensação e a percepção sinalizavam dois atributos corporais diferentes vinculados entre si pela causalidade estímulo-resposta em um corpo que funcionava à guisa de uma máquina. Em outros termos, a percepção se reduzia ao ato de apreensão de um dado objeto exterior
(exterocepção) ou interior
(interocepção) por meio dos estímulos sensoriais. De fato, na concepção empirista, o conceito de percepção está relacionado ao efeito que os objetos têm sobre as terminações nervosas daquele que percebe, o sujeito da percepção
, que é apenas a ponta de uma cadeia de causas e efeitos iniciada no objeto percebido. Isto significa dizer que a percepção se dá de forma indireta porque nada mais é que o resultado esperado dentro de uma rede de eventos sucessivos. Assim, perceber um objeto é ter acesso a suas representações, aos seus dados sensoriais
ou ideias
provocados pela maneira que ele afeta os órgãos sensoriais de quem o percebe⁸,⁹.
Daí que, no pensamento científico tradicional, a percepção não é apenas indireta como também é composta, ou seja, possível de ser analisada a partir de seus vários componentes. Assim, perceber não é ter contato direto com um objeto específico como ele mesmo é no todo, mas montá-lo a partir de um certo número de representações diferentes, provocadas por estímulos sensoriais derivados das suas propriedades físico-químicas. Ao final, o que se percebe é a ideia composta de uma coleção de representações que se passa como se fosse uma ideia simples
daquele objeto. Destarte, uma explicação de como ocorre a percepção deve rastrear a cadeia de causas e efeitos entre o objeto e aquele que percebe, o que implica considerar que a percepção é (1) indireta, (2) representativa e (3) passiva. Este ponto é importante para as pretensões epistemológicas do empirismo pelo fato de que a passividade daria uma espécie de garantia de que as crenças verdadeiras acerca do objeto percebido seriam fornecidas ao ser humano¹⁰.
Todavia, com o advento do movimento Gestalt¹¹ no início do século XX, foi elaborado um outro olhar sobre a percepção, agora compreendida a partir da noção de campo. Isso significa que a concepção anterior da percepção como um conhecimento exaustivo e total do objeto derivado de sensações elementares e objetos isolados foi substituída pelo entendimento de que essa atividade em específico é sempre uma interpretação provisória e incompleta do mundo. Assim, é no diálogo com essa nova abordagem da percepção que a compreensão fenomenológica do corpo foi idealizada.
Vale ainda ressaltar, quanto às funções sensoriais e perceptivas do corpo, que novos modelos teóricos¹² desenvolvidos nas últimas décadas têm a compreensão de que o corpo assume diversas configurações, a depender das contingências. Nesse sentido, tem havido uma tendência em se levar em conta a sensação não mais como simples janela da alma
aberta para o conhecimento, bem como a percepção não mais apenas como uma atividade de decodificação de estímulos de modo linear. Tais funções têm sido percebidas como uma atividade reflexiva da estrutura do corpo imerso no seu entorno, que inclui tanto o ambiente físico quanto os múltiplos contextos sociais, culturais e afetivos.
Essa tendência é corroborada pela noção cara à fenomenologia de que o corpo e seu comportamento têm relação intrínseca com a percepção, o que significa dizer que a apreensão dos sentidos se faz pelo corpo e não simplesmente pela causalidade linear estímulo-resposta. Desse modo, o corpo é um campo criador de sentidos pelo fato de que a função perceptiva não pode mais ser reduzida a uma representação mentalista, quando, na verdade, é um acontecimento corporal e, portanto, da existência¹³,¹⁴. É o que se pode depreender das seguintes palavras de Merleau-Ponty: Antes da ciência do corpo – que implica a relação com outrem –, a experiência de minha carne como ganga de minha percepção ensinou-me que a percepção não nasce em qualquer lugar, mas emerge no recesso de um corpo
¹⁵.
Com efeito, em Merleau-Ponty, a consciência ou subjetividade é um campo experimental, uma relação de presença, ou uma estrutura relacional de presença
no qual o corpo indica o modo de presença ou o modo de estar presente
¹⁶ dessa subjetividade e não mais o pensamento em seu insulamento intangível e abstrato. Deste modo, não se trata agora de compreender que existe um corpo-veículo de um eu
ou uma consciência que se comporta como alguma instância imaterial, e sim uma subjetividade como uma espécie de estado biológico
complexo e interconectado ao seu entorno. Em outros termos, o corpo não é um intermediário entre consciência e mundo na concepção merleau-pontiana, mas, sim, o pivô do sujeito, isto é, um corpo próprio ou um corpo vivido.
A noção de corpo em Maurice Merleau-Ponty
Em meados do século XX, as ideias desenvolvidas pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty produziram um novo olhar sobre a concepção mecanicista e intelectualista do corpo humano estabelecida pela ciência moderna. De fato, ao recusar tanto a noção de corpo como substância pela qual se chega a uma essência, quanto a concepção cartesiana de corpo como um ser inteiramente exterior e como puro objeto, Merleau-Ponty assume uma filosofia orientada para a percepção e para o corpo próprio. Esta mudança de perspectiva trouxe como consequência a abertura do horizonte filosófico para a experiência do corpo no mundo, isto é, para a relação com o seu entorno, com os outros, com a cultura e a historicidade¹⁷.
Para esclarecer a visão de Merleau-Ponty sobre o