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Sistema Único de Saúde: Um Direito Fundamental de Natureza Social e Cláusula Pétrea Constitucional: A Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana como Fundamentos do Direito à Saúde no Brasil
Sistema Único de Saúde: Um Direito Fundamental de Natureza Social e Cláusula Pétrea Constitucional: A Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana como Fundamentos do Direito à Saúde no Brasil
Sistema Único de Saúde: Um Direito Fundamental de Natureza Social e Cláusula Pétrea Constitucional: A Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana como Fundamentos do Direito à Saúde no Brasil
E-book732 páginas5 horas

Sistema Único de Saúde: Um Direito Fundamental de Natureza Social e Cláusula Pétrea Constitucional: A Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana como Fundamentos do Direito à Saúde no Brasil

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Sobre este e-book

Considerado a maior conquista social do povo brasileiro na Constituição Federal de 1988 e maior programa de inclusão social do planeta, o SUS é abordado neste livro de uma forma abrangente e inédita a partir da descrição inicial da situação atual da saúde pública no país, bem como o seu histórico e a sua condição de "um grande negócio". A obra traz a concepção de saúde no Brasil, abordando os modelos liberal e republicano de saúde e de sociedade, sem deixar de considerar os aspectos de patrimonialismo e corrupção no SUS. O livro tem a coragem de revelar o papel do Banco Mundial no seu desmonte, por meio de sugestões de políticas neoliberais desestruturantes do sistema. Além disso, o autor apresenta a evolução histórica do direito à saúde no Brasil, desde o seu descobrimento, bem como esse direito na ordem jurídica internacional. Discute-se o SUS a partir da sua previsão constitucional e legal, apontando a sua natureza jurídica de direito fundamental de natureza social e cláusula pétrea constitucional, que tem por fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Aborda o "cuidado" como um Valor Ético da Humanidade e Princípio Universal do Direito à Vida. Finalmente, o livro analisa o SUS sob a perspectiva da ordem econômica constitucional, discutindo questões como interesse público, políticas públicas e judicialização da saúde, inovando ao assinalar o "Máximo Existencial" e a "Reserva do Necessário" como Princípios Constitucionais implícitos do Direito à uma Existência Digna
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de mar. de 2021
ISBN9786559561551
Sistema Único de Saúde: Um Direito Fundamental de Natureza Social e Cláusula Pétrea Constitucional: A Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana como Fundamentos do Direito à Saúde no Brasil

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    Sistema Único de Saúde - Wladimir Tadeu Baptista Soares

    citações.

    PARTE I

     FACTICIDADE

    A pesquisa traz, inicialmente, uma descrição do estado da arte atual do SUS, discutindo as suas instituições públicas estatais, bem como as instituições privadas de saúde, e os seus reflexos no SUS. Ao mesmo tempo, traz uma discussão sobre o fenômeno da terceirização do SUS e suas consequências para o sistema. Avançando um pouco mais, a pesquisa procura revelar a importância das Universidades Públicas e os seus respectivos Hospitais Públicos Universitários tanto na realização do SUS quanto na boa formação de todos os profissionais da saúde, em particular médicos e enfermeiros. Finalmente, nessa parte inicial da pesquisa, o Complexo Econômico-Industrial da Saúde é apresentado na sua perspectiva econômica e de avanço biotecnológico para o país.

    1. A situação da saúde pública hoje no país

    Desde a criação do Sistema Único de Saúde – SUS, em 1988, a sua construção não tem sido fácil. E isto por inúmeras razões: algumas bem identificadas, outras percebidas intuitivamente, outras ainda não claramente conhecidas.

    A Constituição Federal de 1988 – a nossa Constituição Cidadã, ao tratar do direito à saúde no Brasil, positivou áreas de tensão, tanto do ponto de vista ideológico quanto da sua efetividade. Isto porque, ao mesmo tempo em que afirmava a saúde como um direito social universal, igual e integral para todos, afirmava também que as ações e serviços de saúde deveriam ser executadas diretamente ou através de terceiros e por pessoa física ou jurídica de direito privado (artigos. 196 e 197 da CRFB/88). Mais do que isto, a Constituição afirmava que a assistência à saúde seria livre à iniciativa privada (art. 199 da CRFB/88).

    Assim sendo, diante deste cenário repleto de ambiguidades, interesses públicos e interesses privados começaram a se chocar, surgindo diversos atores neste conflito, alguns internos e outros externos, de modo que o embate político se tornou uma regra: um grupo pequeno defendendo os interesses privados e um grupo grande defendendo os interesses públicos. Todavia, o grupo pequeno numericamente sempre foi o grupo mais forte economicamente considerado. Além disso, este grupo economicamente mais forte sempre se manteve mais presente no Congresso Nacional, sempre mais próximo dos parlamentares, sugerindo propostas legislativas que, em geral, como contrapartida, os beneficiariam, ao mesmo tempo em que dificultariam a realização plena do SUS.

    Neste contexto de luta desigual, a soberania popular, quase sempre, foi desastrosamente negligenciada.

    Com isso, o SUS sempre precisou sobreviver em meio a tempestades. Ele sempre precisou sobreviver sob crises, sempre procurando vencer obstáculos, sempre respirando com muita dificuldade.

    A partir da Reforma Administrativa ocorrida em 1995 – reforma essa inspirada no pensamento neoliberal abraçado pelo Banco Mundial -, em que foi ampliado o chamado Terceiro Setor, a crise da saúde pública brasileira começou a se aprofundar cada vez mais, haja vista que o modelo neoliberal de saúde não se encaixa no modelo social do SUS. Em verdade, são concepções antagônicas. O Estado Social e Democrático de Direito não se ajusta a um Estado Neoliberal.

    A saúde pública começou a ser desmontada: concursos públicos foram suspensos; iniciou-se uma verdadeira febre de contratos temporários para o setor; leitos privados contratados pelo SUS foram sendo suspensos; leitos públicos foram sendo progressivamente reduzidos; serviços de emergência, antes abertos e de livre acesso à população, começaram a ser reconceituados, passando a funcionar de forma referenciada, ou seja, de portas semiabertas à população; deliberações dos Conselhos e Conferências de Saúde deixaram de ser respeitados; as matrículas de pacientes nos hospitais públicos passaram a sofrer restrições burocráticas; realização de exames complementares começaram a ser restringidos; o orçamento público previsto para a saúde deixou de ser efetivamente cumprido em muitos Estados e Municípios; o número de profissionais necessários para as ações e serviços de saúde deixou de ser considerado. Soma-se a isso o fato de que o orçamento público referente à saúde no Brasil jamais chegou a alcançar a média do valor aplicado pelos países membros da ONU (Organização das Nações Unidas), sendo inferior até mesmo com relação a alguns países da América do Sul, como a Argentina, Uruguai, Chile e Equador.

    A gestão pública do SUS passou a ser terceirizada, principalmente, para ONGs (Organizações não Governamentais), OS (Organizações Sociais) e OSCIPs (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), afastando a responsabilidade da autoridade pública sanitária quanto à gestão e execução das ações e serviços públicos de saúde, gerando uma fragmentação da sua gestão, que passou a ser conduzida sob uma lógica privada de gastos, e não mais sob uma lógica pública de investimentos.

    Em 2011, foi criada a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), cuja lei federal – Lei n. 12.550/2011 - que autorizou a sua criação Poder Executivo da União teve a sua constitucionalidade logo questionada pelo Procurador Geral da República, da época, através da ADI 4895, recentemente julgada pelo STF, que, em decisão unânime, reconheceu a sua constitucionalidade. Por essa lei, os Hospitais Públicos Federais Universitários, por meio de um contrato de gestão, são cedidos das suas respectivas Universidades Públicas Federais para a EBSERH, fazendo com que esses hospitais percam a sua natureza de hospitais de ensino e adquiram uma natureza predominantemente assistencial, de modo que esses hospitais – antes, instituições sociais – passam a ser organizações empresariais, com todas as consequências negativas que isso representa.

    Em 2013, foi criado o Programa Mais Médicos, que trouxe para o país milhares de médicos formados no exterior – na maioria médicos cubanos -, sem que a eles fosse aplicada a prova do REVALIDA (Exame Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições de Educação Superior Estrangeiras), de modo a avaliar a qualificação e capacitação técnica de todos eles, sendo lotados não somente nos lugares mais distantes do país, mas também nas grandes cidades e grandes centros urbanos, por critérios muitas vezes políticos, remunerados muito acima do valor de remuneração pago pelo Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde para os seus profissionais médicos, sendo-lhes concedido, ainda, um certificado de Pós-Graduação após três anos de atividade aqui. Assim, por decisão do Governo Federal, sem a certeza da qualificação e capacitação técnica desses médicos estrangeiros, o certificado de Pós-Graduação está garantido.

    Contudo, esse Programa não foi acompanhado de uma política pública efetiva de transformação da realidade social daqueles lugares aonde esses médicos foram atuar, de modo que toda uma infraestrutura de saúde necessária à boa prática da medicina deixou de ser criada, ficando esses médicos de mãos atadas para resolver muitos casos clínicos ou cirúrgicos que ali se deparam. Naturalmente, em muitos lugares aonde não existiam médicos, o Programa Mais Médicos trouxe alguns avanços, pelo menos com relação às consultas médicas, que antes não existiam, melhorando nesses locais alguns dos indicadores de saúde. Todavia, o nível de assistência médica oferecida não passa do nível primário, negando a integralidade do sistema.

    Tudo isso, ao longo do tempo, foi provocando sérias distorções no Sistema Público de Saúde, a tal ponto que hoje é possível reconhecer uma grave crise no setor, cuja principal causa é de foro político, já que o caos atualmente estabelecido é muito mais um projeto político para a privatização da saúde pública brasileira do que a tão propagada crise de gestão. E isso se dá por meio de um crônico e progressivo subfinanciamento do SUS e de mudanças legislativas (algumas, ao nosso ver, inconstitucionais) no sentido do favorecimento ao seu desmonte.

    Esse financiamento inadequado do SUS gera falta de medicamentos e de insumos nos ambulatórios e hospitais públicos do país; gera desativação de leitos hospitalares; fechamento de serviços – até serviços de oncologia; sucateamento do seu parque tecnológico; dificuldades na realização de pesquisas; deterioração do ensino nas áreas da saúde (medicina, enfermagem, odontologia, nutrição, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, biomedicina etc.), já que o SUS é a sala de aulas práticas dos seus estudantes; redução do quadro de pessoal; falta de kits de laboratório para a realização de exames complementares; dificuldades com relação à compra e manutenção de equipamentos hospitalares, aquisição e manutenção de ambulâncias etc.

    Enquanto isso, o Governo Federal gasta milhões de reais na compra de máquinas para o controle biométrico da frequência dos seus servidores públicos da saúde, como se este fosse o seu maior problema. Pois nem de longe é.

    Esta situação fez com que, entre 2010 e 2018, houvesse uma redução de 34.200 leitos de internação na rede pública de saúde, o que equivale a cerca de 12 leitos a menos por dia – dados esses levantados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 2018. Como justificar isso se a população cresce dia após dia? No Distrito Federal, por exemplo, foram desativados, nesse período, 20% dos leitos hospitalares existentes na rede pública (CANCIAN, 2016).

    Evidentemente, isso acaba por gerar Serviços de Emergência com corredores superlotados de pacientes, nem sempre deitados sobre uma maca de hospital, mas muitas vezes sentados em cadeiras (às vezes, de praia) trazidas por familiares, quando não estão, em alguns momentos, deitados no chão sobre um fino colchonete ou um fino cobertor.

    Assim, pacientes graves, necessitando de leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), morrem sem ter a chance de receber uma assistência médica adequada (entendendo-se essa assistência médica como uma assistência em saúde), diagnósticos não são feitos precocemente, cirurgias são proteladas, a dor e o sofrimento humano são prolongadas.

    Em 2017, estudo feito pelo Conselho Federal de Medicina concluiu que havia 900.000 (novecentos mil) pacientes na fila do SUS, em todo o Brasil, à espera de uma cirurgia, muitas delas para o tratamento cirúrgico de um câncer, quando o fator tempo, nesse caso, é possibilidade de cura ou de morte.

    Não há Sistema de Regulação de Leitos Hospitalares que resolva esse quadro, porque não há como regular aquilo que não se tem: número adequado de leitos hospitalares para atendimento das demandas provocadas pelas doenças em curso. Enquanto houver vida haverá doenças. Enquanto não houver leitos hospitalares suficientes haverá sofrimento e mortes precoces e desnecessárias – um verdadeiro crime de Estado contra o Povo brasileiro.

    Nesse cenário de guerra, aumenta cada dia mais o número de ações judiciais contra o SUS, lutando o cidadão pelo exercício do seu direito fundamental à saúde, o que gera um gasto público, cada ano mais elevado, com esse fenômeno da judicialização (FÁBIO, 2016).

    Curiosamente, a maioria das demandas judiciais na área da saúde dizem respeito não a pedidos de fornecimento de medicamentos de altíssimo custo ou fora da lista de medicamentos do SUS, ou a pedidos de procedimentos/tratamentos para serem realizados no exterior, mas sim com relação àquilo que o SUS tem o dever constitucional de prestar, como pedido de medicamentos/insumos para tratamento e controle da hipertensão arterial sistêmica, diabete melito, doença pulmonar obstrutiva crônica, cirrose hepática, alergia alimentar, doenças autoimunes, câncer , insuficiência renal crônica etc.; além de leitos hospitalares de enfermaria, UTI de adulto, pediátrico ou neonatal; próteses e órteses; exames complementares de alta complexidade como, por exemplo, cineangiocoronariografia (cateterismo cardíaco) etc.

    Com certeza, a judicialização da saúde não seria um problema tão grande se as políticas públicas e o orçamento público para o setor fossem melhor elaborados, equacionados, fiscalizados e executados. Com certeza, uma fiscalização mais firme evitaria muitos desvios de verbas públicas causados pela corrupção: uma corrupção público-privada.

    Recentemente, por uma decisão de governo, ficou estabelecido que no ano de 2021 o DPVAT – o seguro obrigatório dos veículos automotores – não seria pago, o que repercute negativamente no financiamento do SUS, já que 50% do valor apurado pelo DPVAT é direcionado ao SUS.

    Tudo isso tende a se agravar ainda mais em razão da aprovação pelo Congresso Nacional da PEC 241 (Proposta de Emenda Constitucional 241), depois transformada na Emenda Constitucional n. 95/2016, que congelou os gastos públicos por um período de 20 anos. Com isso, os investimentos públicos, de um ano para outro, não terão aumento real, passando tão-somente a incorporar a inflação do ano anterior (PADILHA, 2016).

    Isso trará grave repercussão negativa para a saúde pública brasileira, já que irá impactar negativamente o financiamento e a garantia constitucional do direito à saúde, gerando prejuízos irreparáveis às ações e serviços públicos de saúde, como já vem acontecendo, inclusive com relação ao Programa de Farmácia Popular, repercutindo em sofrimento e morte por desassistência, particularmente da população mais pobre deste nosso país.

    Por falta de verbas, em 2017, o Programa de Atenção Domiciliar ao Idoso foi suspenso no Rio de Janeiro. E coisas assim tendem a acontecer em todas as regiões do país, em todas as cidades (CREMERJ, 2017).

    A assistência em saúde do idoso é um tema ainda muito espinhoso, haja vista a carência praticamente absoluta de unidades de saúde especializadas e preparadas para esse fim, de modo que faltam hospitais e profissionais de saúde com conhecimento e treinamento adequados nessa área.

    Ao longo do tempo, vêm sendo criados, particularmente por meio de Instruções Normativas ou por decisão pessoal do diretor de alguma unidade de saúde do SUS, seja ambulatorial ou hospitalar, inúmeros obstáculos para o livre acesso da população ao Sistema, fazendo com que o SUS perca a sua identidade de um Sistema Público de Saúde de caráter universal.

    Assim, os pacientes encontram dificuldades para marcar consultas, realizar exames, internar, obter remédios para a sua doença, conseguir informações, conseguir realizar uma cirurgia, conseguir vaga em uma UTI etc.

    Mesmo aqueles pacientes que já estão internados não estão salvos dessa precariedade. Isso porque tornou-se comum a falta de medicamentos, materiais e insumos básicos nos hospitais públicos, tais como gazes, esparadrapo, equipo de soro, fios de sutura, compressas cirúrgicas, antibióticos, analgésicos, imunossupressores, quimioterápicos, anticoagulantes, anestésicos, anti-hipertensivos, hipoglicemiantes orais, luvas, trombolíticos, sedativos, vitaminas etc.

    Pacientes diagnosticados com câncer não conseguem leito para internação; quando conseguem o leito, a cirurgia é postergada por falta até mesmo de roupas no centro cirúrgico; quando consegue ser operado, há um atraso no início da quimioterapia por falta do medicamento, ou do início da radioterapia por falta de um lugar aonde possa fazer; quando começa a quimioterapia, muitas vezes o protocolo tem que ser interrompido porque o quimioterápico está em falta; quando se encontra em estágio terminal da sua doença, não consegue uma assistência de cuidados paliativos. E assim vai sendo cumprida uma triste e dolorosa sina por esses pacientes.

    Em reportagem veiculada no canal de televisão BANDNEWS, no dia 29 de dezembro de 2017, às 19h, foi mostrado que no Distrito Federal – ou seja, na capital do país – os pacientes diagnosticados com câncer chegam a ficar até um ano à espera do início da quimioterapia e/ou da radioterapia, levando a que esses pacientes comecem os seus tratamentos já numa fase avançada da doença, já com metástases à distância, sem mais qualquer possibilidade de sucesso terapêutico no que diz respeito à cura de sua doença.

    Assim, muitos pacientes vêm a falecer por não encontrarem no SUS a responsabilidade pública necessária a um Sistema que, por reconhecimento constitucional, é de relevância pública.

    O mesmo acontece com relação aos pacientes que precisam de uma cirurgia ortopédica para colocação de prótese. Chegam a ficar anos na fila de espera. Muitos morrem sem conseguir realizar a cirurgia.

    Mas também com relação a outros milhares de pacientes portadores das mais diversas patologias, clínicas ou cirúrgicas, de todas as especialidades, que encontram o SUS com suas portas fechadas ou, quando abertas, sem a infraestrutura adequada e/ou sem os medicamentos, insumos e equipamentos disponíveis para atender às suas necessidades naquele momento.

    E falta também recursos humanos. Os serviços de emergência, por exemplo, estão funcionando abarrotados de pacientes, porém com equipes de saúde (médicos, enfermeiros, técnicos de radiologia etc.) em número extremamente reduzido, muitas vezes sem equipes completas, por fata de médicos neurocirurgiões, ortopedistas, cirurgiões vasculares, pediatras, clínicos gerais etc. Não é raro que em certas unidades de saúde – unidades de pronto atendimento – esteja de plantão somente um único profissional médico para atender toda a demanda que chega e rever aqueles pacientes que ali já se encontravam desde o plantão anterior.

    No dia 18 de janeiro de 2018, o jornal O GLOBO trouxe uma reportagem na sua primeira página, com o seguinte título: País reduziu em 33% verba para prevenir epidemias. Naturalmente, que isso tem reflexos negativos na Saúde Pública, particularmente em um momento em que o país vem sofrendo, já há muitos anos, com surtos epidêmicos de inúmeras doenças transmitidas por insetos, tais como febre amarela, dengue e outras arboviroses. Mais do que isso, vacinas, as mais diversas, começam a faltar nas Unidades Básicas de Saúde. Por isso, em março de 2019, a Organização Mundial de Saúde declarou que o Brasil perdeu o status de país livre do sarampo, já que houve a notificação de um caso novo na Amazônia. É sempre a população mais pobre que mais sofre com essas políticas inconsequentes e irresponsáveis impostas ao SUS. E isso acaba por refletir, também, na pandemia pelo novo coronavírus.

    Nesse ambiente de tensão surgem ameaças, gritos, agressões físicas. Os profissionais de saúde são a face para levar o tapa, enquanto os gestores públicos e privados dormem tranquilamente e transferem suas culpas (ou seriam dolos) para aqueles servidores públicos que estão no front dos acontecimentos e que são tão vítimas quanto os pacientes.

    E isso ocorre em todas as esferas administrativas: federal, distrital, estaduais e municipais; e em todos os níveis de assistência em saúde.

    Pacientes atendidos nas Unidades Básicas de Saúde, cuja pesquisa de sangue oculto nas fezes é positiva e que, portanto, precisam realizar um exame de colonoscopia para esclarecimento diagnóstico, podem levar até oito ou mais meses para que o exame seja realizado. Se a causa for um tumor maligno (um câncer), a doença já será diagnosticada em fase bastante avançada.

    Segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde, no dia 1º de dezembro de 2017 – Dia Mundial da Luta contra a AIDS -, a quantidade de pessoas infectadas pelo HIV (vírus da imunodeficiência adquirida, causador da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida – SIDA/AIDS) voltou a crescer no Brasil, em todas as faixas etárias, tanto em homens quanto em mulheres. Para Márcia Rachid, o maior problema está na informação, que deve ser ampla e ressaltar os métodos e a importância da prevenção, diagnóstico e tratamento precoces, o que parece estar falhando neste momento (CREMERJ, 2017, p. 8). O mesmo é possível afirmar com relação a outras doenças infecciosas, tais como, por exemplo, tuberculose e sífilis.

    Muitas vezes, pacientes dão entrada no serviço de emergência apresentando quadro de hemorragia digestiva alta, necessitando realizar uma endoscopia digestiva alta de emergência, tanto para diagnóstico quanto para terapêutica, mas o exame não é realizado porque o aparelho de endoscopia encontra-se com defeito (quebrado) já há vários dias ou semanas, ou, simplesmente, não há esse aparelho.

    Do mesmo modo, pacientes vítimas de acidente vascular cerebral, que necessitam, urgentemente, de uma tomografia computadorizada de crânio, não fazem o exame porque não existe esse aparelho na unidade de saúde aonde eles estão sendo atendidos ou o aparelho encontra-se com defeito há vários meses, aguardando conserto.

    Ou seja, o cenário à nossa frente é de precarização da assistência em saúde em todos os níveis do SUS, inclusive dos Hospitais Universitários – que hoje foram transformados em filiais da EBSERH, excluídos do controle social do SUS.

    Nesse sentido, estudo realizado pela própria Câmara Federal concluiu que o SUS perderá, nos próximos 20 anos, R$ 654.000.000.000,00 (seiscentos e cinquenta e quatro bilhões de reais). Soma-se a isso o fato de o Governo ter aprovado o aumento da Desvinculação das Receitas da União (DRU) de 20 para 30%, estendendo essa medida até 2023, e permitindo que Estados e Municípios façam o mesmo (ANANIAS, 2016).

    O que se observou nos últimos anos, como regra geral, foi que a DRU se deu com maior peso no orçamento da Seguridade Social, aí incluída a saúde, de modo que até 80% dos 20% autorizados para desvinculação foi retirado deste setor (BATISTA; SILVA, 2018).

    A pergunta que não quer calar: a quem interessa esse quadro?

    A pergunta que exige resposta: quem se importa com isso?

    A pergunta que procura resposta: a quem o SUS incomoda?

    1.1 As Instituições Estatais De Saúde Pública (sus)

    Somente após a Segunda Grande Guerra Mundial é que se consolidou a ideia de saúde como um direito humano fundamental a ser garantido a todas as pessoas pelo Estado, a partir de uma progressiva universalização de acesso aos serviços de saúde, seja por intermédio da criação de sistemas nacionais de saúde, seja por meio da ampliação do sistema de seguros sociais.

    No Brasil, essa ideia começou a ser desenvolvida e multiplicada a partir da década de 1970, no chamado Movimento da Reforma Sanitária, que culminou, após intensos debates dentro e fora do Congresso Nacional, na positivação do SUS no texto constitucional, como um sistema público de saúde universal, e não um sistema público de saúde para os pobres.

    Este seu caráter de universalidade diz respeito ao mandamento constitucional de implementação de políticas sociais e econômicas que, progressivamente, sejam capazes de oferecer à toda a população brasileira ações e serviços públicos de saúde de qualidade e gratuitos, em todos os níveis de assistência em saúde, de forma integral, igual e equitativa, de modo a possibilitar que o setor público de saúde seja prevalente com relação ao setor privado, fazendo com que, ao longo do tempo, o setor privado de saúde seja uma opção e não uma necessidade, em razão da precariedade do SUS.

    Dentre as inúmeras instituições estatais de saúde pública, há que se destacar as Unidades Básicas de Saúde, as Policlínicas de Especialidades, as UPAs (Unidades de Pronto Atendimento 24h), os Hospitais Públicos, os Hospitais Universitários, as Instituições de Pesquisa, os Centros de Imagem, os Institutos Nacionais/Estaduais, os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e os órgãos de armazenamento e distribuição de medicamentos.

    As Unidades Básicas de Saúde são os locais onde são desenvolvidas e realizadas ações e serviços de saúde no seu nível primário de atenção, englobando, aí, não somente o atendimento ambulatorial de pacientes de clínica médica, pediatria, dermatologia e ginecologia, mas também, em muitos locais, a oferta de atendimento nas áreas de nutrição, odontologia e psicologia clínica. Além disso, muitas dessas Unidades funcionam com medicina de família, contando com a participação importantíssima dos agentes de saúde. Mais do que isso, as Unidades Básicas de Saúde têm um papel fundamental na concretização dos programas de prevenção de doenças, incluindo aplicação de vacinas, constituindo-se na principal porta de entrada do Sistema Único de Saúde (SUS).

    O CAPS é um serviço de saúde aberto e comunitário do SUS , local de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e persistentes e demais quadros que justifiquem sua permanência num estabelecimento de atenção diária, personalizado e promotor da vida.

    Os CAPS podem ser de tipo I, II, III, álcool e drogas (CAPSad) e infanto-juvenil (CAPSi). Para sua implantação deve-se primeiro observar o critério populacional, cujos parâmetros são definidos da seguinte forma: Municípios de até 20.000 habitantes – rede básica com ações de saúde mental; Municípios entre 20.000 e 70.000 habitantes – CAPS I e rede básica com ações de saúde mental; Municípios entre 70.000 e 200.000 habitantes – CAPS II, CAPSad e rede básica com ações de saúde mental; Municípios com mais de 200.000 habitantes – CAPS II, CAPS III, CAPSad, CAPSi e rede básica com ações de saúde mental e capacitação do SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência). Deve-se ainda observar a realidade local para a escolha do tipo de CAPS mais adequada ao porte do município (Portaria GM nº 336, de 19/02/2002).

    As Policlínicas de Especialidades respondem pela assistência em saúde no seu nível secundário de atenção, oferecendo atendimento médico em algumas especialidades clínicas, tais como endocrinologia, cardiologia, pneumologia, nefrologia, otorrinolaringologia, infectologia etc. Funcionam dando suporte técnico especializado às Unidades Básicas de Saúde, sob um modelo de referência-contra-referência, sendo local também onde é possível contar, em muitos casos, com laboratório capaz de realizar alguns exames de sangue, fezes e urina, além de, eventualmente, dispor de um serviço de radiologia para realização de exames radiológicos simples, tais como raio x de tórax e ultrassonografia. Além disso, aí é possível realizar exame de eletrocardiograma.

    A Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h) é um dos componentes da Rede de Atenção às Urgências, sendo que a implantação deste Programa é uma das estratégias do Ministério da Saúde para reorganizar, qualificar e fortalecer a Rede de Atenção às Urgências e Emergências no país. Instituído em 2008, criando incentivo financeiro para melhorar a infraestrutura dos estabelecimentos de saúde que ofertam este tipo de serviço, em que os resultados esperados são: prover condições adequadas para o funcionamento das unidades, melhorando a qualidade de atenção prestada e a ampliação do acesso. O Ministério da Saúde, com o objetivo de apoiar os gestores na execução dos investimentos aprovados, disponibiliza Projetos Padrões de Arquitetura da UPA 24h, sendo que a utilização deste projeto é facultativa e permitirá aos gestores a economia de tempo e de recursos, assim como possibilitará a construção de unidades com infraestrutura adequada tanto para os profissionais de saúde como para os usuários do SUS. Estes projetos poderão ser usados como Projeto Básico para contratação das obras e projetos complementares, utilizando-se o Regime Diferenciado de Contratação (RDC), com a contratação integrada – artigo 9º da Lei n. 12.462/2011.

    A UPA 24h será implantada em locais ou unidades estratégicas para a configuração da rede de atenção às urgências, em conformidade com a lógica de acolhimento e de classificação de risco, observadas as seguintes diretrizes: funcionamento ininterrupto 24h (vinte e quatro horas) e em todos os dias da semana, incluindo feriados e pontos facultativos; Equipe Assistencial Multiprofissional com quantitativo de profissionais compatível com a necessidade de atendimento com qualidade, considerando a operacionalização do serviço, o tempo-resposta, a garantia do acesso ao paciente e o custo-efetividade, em conformidade com a necessidade da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e as normativas vigentes, inclusive as resoluções dos conselhos de classe profissional; acolhimento; e classificação de risco.

    Entretanto, é passível de críticas o funcionamento dessas UPAs 24h, diante da realidade enfrentada por pacientes e profissionais da saúde nesse contexto.

    Assim, muitas dessas UPAs estão sob a gestão privada de entidades do terceiro setor, principalmente das Organizações Sociais, o que, de certo modo, na prática, afasta a gestão pública exercida pela autoridade sanitária local – o secretário estadual ou municipal de saúde. Em regra, os trabalhadores da saúde dessas unidades não são contratados via concurso público, mas por processo seletivo simplificado; muitas vezes, inclusive, somente por avaliação curricular, eventualmente exigindo-se tão-somente o diploma de conclusão do curso superior na área (medicina, enfermagem etc.), sem exigência de qualquer pós-graduação; habitualmente numa relação de trabalho caracterizada pela precariedade do vínculo contratual. Na maioria das UPAs 24h, a classificação de risco é feita por profissional da enfermagem, e não da medicina, o que expõe o paciente à possibilidade (real) de ter a sua situação médica de urgência erradamente classificada, gerando consequências negativas as mais diversas. Muitas UPAs 24h funcionam sem equipe completa de saúde, acarretando baixa qualidade no atendimento e reclamações (justas) frequentes dos pacientes e seus familiares. Em muitos Estados, as UPAs 24h funcionam dentro de containers alugados da iniciativa privada pelo Poder Público, ao invés de construir unidades próprias do Estado, caracterizando uma transferência milionária, contínua e regular, de dinheiro público para o setor privado, de forma imoral e economicamente condenável. Há, ainda, o fato de que, em razão da falta de leitos hospitalares para internação no SUS, muitos pacientes, mesmo aqueles muito graves, acabam por ficarem internados, em condições precárias de assistência à saúde, nessas Unidades de Pronto Atendimento, advindo complicações e mortes indevidas.

    Os hospitais públicos asseguram atendimento no nível terciário de assistência em saúde, contando com leitos hospitalares distribuídos nas diversas enfermarias de especialidades médicas, centro de tratamento intensivo, centro de diálise, centro de intoxicações, centro de queimados, além de manter atendimento de serviço de emergência 24 horas todos os dias, dispondo de centro cirúrgico, setor de radiologia, banco de sangue, laboratório, serviço de endoscopia digestiva e respiratória, e serviço de patologia. São locais de referência para internação hospitalar, e que também contam com assistência médica ambulatorial.

    Os hospitais universitários, estaduais e federais, são bens públicos da sociedade, integrados, de forma indissociável, à estrutura física, orgânica e funcional das suas respectivas Universidades Públicas, consistindo em verdadeiras salas de aulas práticas para o ensino-aprendizagem dos estudantes das áreas da saúde, particularmente estudantes de medicina e de enfermagem, responsáveis pela assistência de saúde no seu nível de maior complexidade e especificidade, sem se eximir de suas responsabilidades com os níveis primário, secundário e terciário de assistência em saúde, já que são hospitais de ensino, assumindo um caráter não somente assistencial, mas principalmente de ensino, pesquisa e extensão, contando com autonomia administrativa, em relação ao patrimônio, aos recursos humanos e financeiros, e submetidos ao controle social do SUS.

    Várias são as instituições públicas de pesquisa, tais como a FIOCRUZ, responsáveis pelo desenvolvimento e avanço científico, tendo por finalidade o interesse público primário, contribuindo, desse modo, para o desenvolvimento nacional, estando aptas, inclusive, a prestar cooperação e assistência técnica científica internacional, dentre outras coisas, na pesquisa e produção de novas vacinas, soros e medicamentos, além de estudos de doenças raras e emergentes, tanto em nível territorial nacional quanto global.

    Os centros de imagem têm por objetivo ser um centro de referência para a realização de todos os tipos de exames radiológicos e de imagens, servindo de suporte técnico especializados para todas as unidades de saúde, em todos os seus níveis de atenção, procurando agilizar tanto a realização dos exames quanto a liberação dos seus resultados (laudos).

    Os institutos nacionais/estaduais, em geral, são hospitais especializados, capacitados a diagnosticar, tratar e cuidar das patologias mais complexas e de mais difícil diagnóstico em um determinado grupo de doenças, tais como câncer (Instituto Nacional do Câncer – INCA), doenças ortopédicas (Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia – INTO), doenças do coração (Instituto Nacional de Cardiologia e Instituto Estadual de Cardiologia), doenças endocrinológicas (Instituto Estadual de Endocrinologia), doenças hematológicas (HEMOCENTRO) etc.

    Quanto aos órgãos de armazenamento e distribuição de medicamentos do Ministério da Saúde, estes têm por finalidade assegurar a assistência farmacêutica integral aos pacientes atendidos no SUS.

    Há, ainda, as agências reguladoras, tais como a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar).

    A ANVISA, criada pela Lei nº 9.782/1999, é uma autarquia federal sob regime especial, com sede no Distrito Federal, porém presente em todo o território nacional por meio das coordenações de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados. Tem por finalidade institucional promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos, fronteiras e recintos alfandegados.

    A ANS é uma agência reguladora, com sede na cidade do Rio de Janeiro e com vários núcleos espalhados pelo país, vinculada ao Ministério da Saúde, responsável pelo setor de planos privados de saúde no Brasil, responsável pela adoção e regulação de um conjunto de medidas e ações do Governo que envolvem a criação de normas, o controle e a fiscalização de segmentos de mercado explorados por empresas para assegurar o interesse público, e assim promover a defesa do interesse público na assistência suplementar à saúde, regular as operadoras setoriais, inclusive quanto às suas relações com prestadores e consumidores, contribuindo para o desenvolvimento das ações de saúde no país.

    Especificamente, com relação aos Hospitais Universitários, em razão do seu grau de complexidade e de ser parte estrutural de uma Universidade, em particular da Faculdade de Medicina, consideramos importante destacá-lo como um singular elemento estruturante do SUS, tanto no que diz respeito às ações e serviços públicos de saúde quanto no que se refere à formação de recursos humanos para o setor. Nesse sentido, o hospital universitário tem características específicas que o distingue do hospital assistencial de nível terciário. Por isso, consideramos importante compreender a construção histórica das Universidades, bem como a construção histórica dos hospitais universitários, de modo a compreender a sua inserção no SUS.

    1.1.1 Universidade pública, hospital público universitário e sistema único de saúde

    A origem das Universidades pode ser identificada no século XI, na Itália, na cidade de Bolonha, em 1088.

    Em seguida, duas outras Universidades foram criadas: a Universidade de Paris e a Universidade de Oxford. Com o passar do tempo, inúmeras outras Universidades foram sendo criadas pelo mundo, na Inglaterra, Espanha, Portugal, Itália, República Tcheca, Polônia, Alemanha, Escócia, Bélgica, Dinamarca.

    Desse modo, a Universidade, como instituição de ensino superior, surgiu na Idade Média, numa época em que o homem era concebido como um ser divino, com base no pensamento cristão medieval, do qual a Igreja era a protetora e sua zeladora (SIMÕES, 2013, p. 136-138).

    Por outro lado, as universidades têm seu surgimento no cenário medieval associado a secularização da instrução profissional (LISBOA, 2002, p. 18).

    Portanto, assim como, em algum momento remoto da história, a educação reclamou um espaço próprio para a transmissão do conhecimento, dando-se, então, o nascimento da instituição denominada escola, assim também se deu com relação ao nascimento das instituições de ensino superior conhecidas como Universidades (BOHRER; PUEHRINGER; SILVA; NAIRDOF, 2008).

    Conforme ensina RASHDALL,

    As instituições que a Idade Média nos legou são de um valor maior e mais imperecível do que suas catedrais. E a Universidade é nitidamente uma instituição medieval – tanto quanto a monarquia constitucional, ou os parlamentos, ou o julgamento por meio do Júri. As Universidades e os produtos imediatos das suas atividades, pode ser afirmado, constituem a grande realização da Idade Média na esfera intelectual. Sua organização, suas tradições, seus estudos e seus exercícios influenciaram o progresso e o desenvolvimento intelectual da Europa mais poderosamente, ou (talvez deveria ser dito) mais exclusivamente, do que qualquer escola, com toda probabilidade, jamais fará novamente (RASHDALL, 1895, p. 1-4).

    Para Jacques Verger,

    O surgimento das primeiras universidades, na virada dos séculos XII e XIII, é um momento capital da história cultural do Ocidente medieval (...). Pode-se compreender que ela comportou, em relação à época precedente, elementos de continuidade e elementos de ruptura. Os primeiros devem ser buscados na localização urbana, no conteúdo dos ensinamentos, no papel social atribuído aos homens de saber. Os elementos de ruptura foram inicialmente de ordem institucional. Mesmo que se imponham aproximações entre o sistema universitário e outras formas contemporâneas de vida associativa e comunitária (confrarias, profissões, comunas), este sistema era, no entanto, no domínio das instituições educativas, totalmente novo e original, (...) o agrupamento dos mestres e/ou dos estudantes em comunidades autônomas reconhecidas e protegidas pelas mais altas autoridades leigas e religiosas daquele tempo, permitiu tantos progressos consideráveis no domínio dos métodos de trabalho intelectual e da difusão dos conhecimentos quanto uma inserção muito mais eficiente das pessoas de saber na sociedade da época (VERGER, 2001, p. 189-190).

    No início, algumas Universidades não possuíam estruturas arquitetônicas próprias, de modo que as aulas eram realizadas em salas das Abadias, nas casas dos professores, ou mesmo nas ruas, tendo como técnicas pedagógicas a leitura e o questionamento – leitura e comentários pelo Mestre e discussão entre os estudantes do que o Mestre propunha (SIMÕES, 2013). Outra técnica pedagógica era o debate público, onde o Mestre ou aluno defendia determinada posição e explorava as consequências jurídicas e teológicas do tema (MONROE, 1979).

    Importante salientar que, de certo modo, as Universidades foram criadas para responder necessidades da época. Assim, se elas ainda existem é porque são instituições vivas, cuja vitalidade ainda permite que elas continuem a responder a determinadas exigências da vida humana (OLIVEIRA, 2007).

    Na sua obra A Democracia na América, TOCQUEVILLE assim expõe:

    As faculdades, cujo conjunto constitui a Universidade de Oxford, foram fundadas originalmente para que nelas se pudesse adquirir toda a instrução que comportavam os séculos que as viram nascer. Foram ricamente dotadas no objetivo de nelas fixar os melhores mestres e oferecer gratuitamente a melhor educação possível (TOCQUEVILLE, 1998).

    Para Terezinha Oliveira, a grande inovação da Universidade foi dar uma dimensão nova ao conhecimento, o ensino e o saber,

    consistindo a memória histórica medieval – tanto oral quanto escrita – um elemento de enorme importância para a construção de novos saberes e de nossas identidades, em que o saber deixa de ser um dom, uma graça divina, como era considerado até então, tornando-se uma atividade humana que qualquer um que possuísse intelecto racional poderia desempenhar, ou seja, qualquer ser humano (OLIVEIRA, 2007).

    Sobre a questão da memória histórica, Tomás de Aquino assim leciona:

    O esquecimento diz respeito ao conhecimento e, portanto, pode-se por esquecimento perder totalmente arte e ciência, que consistem em razão. (...) O esquecimento, porém, pode tornar-se um impedimento para a prudência, já que ela, para comandar, precisa de alguns conhecimentos, que, pelo esquecimento, podem desaparecer (AQUINO, 2001-2005).

    No Brasil, as primeiras Faculdades de ensino superior surgiram em 1808, logo após a chegada da família Real portuguesa, quando foram criadas a Escola de Direito, em Olinda – Pernambuco; as Escolas de Medicina em Salvador – Bahia - e Rio de Janeiro; e a Escola de Engenharia, no Rio de Janeiro. Todas elas foram criadas inspiradas no modelo curricular francês – modelo este que só seria mudado para o modelo norte-americano na década de 1970, durante o regime militar.

    Nas palavras de Maria de Fátima de Paula,

    O modelo francês napoleônico de universidade, caracterizado por escolas isoladas de cunho profissionalizante, com dissociação entre ensino e pesquisa e grande centralização estatal, vai marcar profundamente a organização da Universidade do Rio de Janeiro. Não houve a preocupação de introduzir a pesquisa como uma das principais finalidades da universidade. No modelo norte-americano, a instituição universitária procura associar estreitamente os aspectos ideais (ensino e pesquisa) aos funcionais (serviços), estruturando-se de tal maneira que possa ajustar-se às necessidades da massificação da educação superior e da sociedade de consumo. Ao adotar a forma empresarial, boa parte das universidades procura atender aos interesses imediatos do setor produtivo, do Estado e da sociedade, produzindo especialistas, conhecimento tecnológico e aplicado, pesquisas de interesse utilitário, assim como serviços de uma maneira geral. [...] No contexto neoliberal, marcado pela razão instrumental mercadológica do capital, a concepção norte-americana, com seu conteúdo pragmático e utilitário, torna-se hegemônica nas instituições de educação superior brasileiras. Há um processo crescente de macdonaldização do ensino, sobretudo no âmbito das instituições privadas, com a proliferação de cursos que, no passado, não possuíam o menor status acadêmico, havendo uma banalização e um aligeiramento da formação em nível superior para atender as demandas de mercado e dos clientes que procuram um título universitário (PAULA, 2009, p. 73, 78).

    Desde o início, as Universidades vêm desempenhando um importante papel social, cultivando e transmitindo o saber acumulado (WANDERLEY, 2003).

    Para receber conhecimento, os estudantes dependiam muito das aulas, já que os livros eram raros e de custo bastante elevado, conforme explica Paul Monroe:

    A educação universitária, a princípio, era totalmente livresca, feita por uma seleção muito limitada de livros em cada campo, livros que eram aceitos como se suas palavras fossem a absoluta e última verdade. Era dirigida muito mais para o domínio do poder dos discursos formais, especialmente argumentação, do que para a aquisição de conhecimento ou para a busca da verdade no sentido mais amplo, ou mesmo para familiarizar o estudante com aquelas fontes literárias do saber que, embora ao seu alcance, estavam fora da aprovação eclesiástica ortodoxa (MONROE, 1979, p. 133).

    Segundo GILES,

    É nas universidades que o acervo dos conhecimentos se organiza, se conserva e se transmite. A Universidade é o verdadeiro centro da atividade intelectual onde o processo educativo progride mais do que em qualquer outra instituição. A função da Universidade como casa de liberdade intelectual, numa época altamente desconfiada de qualquer suspeita de heresia, é de máxima importância. É o único lugar onde assuntos proibidos ou suspeitos podem ser discutidos com certa impunidade (GILES, 1987).

    Nesse sentido, como exemplo de instituição democrática, as Universidades, desde o início, tiveram notável influência política, tendo voz no governo, sendo reconhecida em um patamar de igualdade com a Igreja, o Estado e a Nobreza (MONROE, 1979).

    Segundo WANDERLEY,

    Foi o modelo alemão do século XIX que estabeleceu um padrão vinculando a pesquisa científica com o ensino superior. Na França, a atividade científica esteve vinculada aos institutos independentes (...). Nos Estados Unidos, que assimilou o modelo alemão, houve inovação ao nível da formação dos cientistas nos cursos de doutoramento, credenciando-os para atividades universitárias e outras externas, diferentemente dos doutores europeus (WANDERLEY, 2003, p. 20).

    Com relação ao Brasil, PILETTI identifica três fases da educação:

    No período colonial, o ensino das principais letras tinha a função de criar condições necessárias à catequese e à imposição dos costumes europeus; no período monárquico, foram legalmente estabelecidos o ensino primário, o curso secundário regular e a escola superior; no período republicano, as leis de educação foram modificadas ao invés de modificar a realidade (PILETTI, 2003, p. 38).

    Assim, durante muitos anos, de 1549 a 1759, a educação brasileira foi realizada pela Companhia de Jesus, com o objetivo principal de difundir e conservar a fé católica. Todavia, por questões políticas, após a expulsão dos Jesuítas do Brasil, determinada pelo Marquês de Pombal, a escola deixou de servir aos interesses da Igreja e passou a atender aos interesses do Estado, cuja principal preocupação era a de formar as elites que dirigiriam o país (PILETTI, 2003, p. 79).

    Foi a partir de 1930, com a introdução de diversas modificações no ensino superior, que foram criadas as condições para a criação e o funcionamento das nossas Universidades, superando a fase das escolas superiores isoladas (PILETTI, 2003).

    Para ROSSATO (2005), foi no século XX que a Universidade se tornou uma instituição universal, ganhando um caráter cada vez mais autônomo e sedimentando a pesquisa como uma das suas missões institucional.

    Com relação à autonomia, BOHRER, PUEHRINGER, SILVA e NAIRDOF (2008) entendem como sendo elemento necessário e fundamental para o desenvolvimento da Universidade, pois é ela que possibilita a Universidade pensar, entender, formular e criar o pensamento que sirva como roteiro/caminho para a construção de um novo país.

    Para Franklin Leopoldo e SILVA (2006, p. 191), o projeto humanista moderno define-se na sua base pelo ideal de construção e autoconstrução a partir da liberdade. E esta liberdade é a expressão máxima da autonomia universitária, aí entendida como liberdades pedagógica, de ensino-aprendizagem, científica, de gestão administrativa e financeira, cultural, patrimonial e de pensamento e expressão. É nesse sentido que a liberdade é terapêutica (BESAGLIA, 1985), sendo terapêutica a dignidade.

    Para Cristovam Buarque, A Universidade é talvez a única com vocação para exercer todos os gestos da aventura humana [...], dotada do poder de transformar o mundo e ampliar o horizonte de liberdade dos homens (BUARQUE, 2004, p. 16).

    Desse modo, a Universidade pode e deve ser reconhecida como um patrimônio histórico da humanidade, criada muito antes da existência do Estado-Nação como hoje conhecemos, razão pela qual a ele (Estado) não pertence, sendo uma instituição que pertence à sociedade, e cujos saberes ali desenvolvidos devem visar servir para a construção de um mundo melhor para todos, capaz de inspirar ideias e as condições de fato e de direito para a realização do bem comum e da felicidade geral, concebida sob uma dimensão de universalidade, aberta a igual oportunidade para todos, sem qualquer tipo de discriminação, tendo a liberdade e a autonomia como seus princípios estruturantes, aptos a assegurar que o interesse público seja o seu fim primeiro e último, de modo a cumprir o seu papel democrático e o seu caráter emancipatório, como instituição social que é.

    Nesse sentido, assim leciona Cristovam Buarque:

    É na revolução das ideias que está o verdadeiro compromisso e papel da universidade. Sem esquecer os compromissos sociais gerais do professor, do aluno e do funcionário, a responsabilidade específica da instituição está no seu compromisso com a invenção de novas ideias, através da subversão das formas e dos produtos do pensamento (BUARQUE, 2014, p. 29).

    Com relação aos Hospitais Públicos Universitários, estes têm natureza jurídica de Hospitais-Escolas, sendo verdadeiras extensões das Faculdades de Medicina, partes integrantes, de forma indissolúvel, das Universidades Públicas e campo de ensino prático para os estudantes de nível superior de todas as áreas da saúde, razão pela qual foram concebidos como hospitais gerais com tríplice função: ensino, pesquisa, assistência. Mas eles também cumprem uma função de extensão, já que os professores universitários que ali exercem o seu ofício levam os conhecimentos, já assimilados ou recentemente produzidos, para fora das suas paredes em Simpósios, Seminários e Congressos, nacionais e internacionais, além de atuarem em aulas práticas em outras unidades de saúde, integrando-se, assim, a todo o ambiente do SUS.

    Todavia, os Hospitais Universitários foram uma criação tardia na história dos hospitais.

    Assim, no mundo ocidental, é possível identificar o século IV como sendo o marco histórico formal da criação dos hospitais, momento a partir do qual passaram a ser reconhecidos como as instituições que cuidam dos enfermos e das enfermidades (MILLER, 1985), embora a história da medicina e do cuidado sejam muito mais antigas, provavelmente desde o início da história da humanidade.

    Na Antiguidade, pobres, órfãos, doentes e peregrinos eram todos considerados pessoas necessitadas de cuidados, sendo difícil encontrar uma denominação de um local próprio onde toda essa gente recebia acolhimento e algum tipo de cuidado.

    A palavra hospital deriva do latim hospitalis, que significa ser hospitaleiro, acolhedor. Hoje em dia, hospital tem o mesmo significado de nosocomium – lugar dos doentes.

    Conforme ensina Teresinha Covas Lisboa,

    As primeiras figuras humanas a exercerem a arte de curar são os sacerdotes dos templos e, estes, os primeiros locais para onde afluem os doentes. No início, são movimentos espontâneos, pois os enfermos iam orar ao Deus, pedindo cura para os seus males. Aos poucos, com o número desses enfermos aumentando, foi necessária a criação de lugares apropriados e, finalmente, por iniciativa dos sacerdotes, os novos templos foram erigidos em locais de bosques sagrados, com fontes de água de propriedades terapêuticas, para atender aos doentes. Surgem, a seguir, os iatreuns, lugares públicos de tratamento, servidos por médicos que não pertenciam à casa sacerdotal (LISBOA, 2002, p. 11-12).

    Com o advento do Cristianismo, uma nova visão humanística trazida por ele alterou a organização social e apontou novas responsabilidades para os indivíduos, dentre elas, a assistência aos menos favorecidos, enfermos, órfãos, viúvas e idosos, bem como viajantes e peregrinos.

    Em 313 d.C., o imperador Constantino proclamou o decreto de Milão, liberando a Igreja Cristã para exercer as suas atividades, entre as quais a assistência aos necessitados, garantida pelas contribuições dos cristãos. Alguns anos depois, em 325 d.C., o Concílio de Nicéia determinou a obrigatoriedade deste atendimento, dando um grande impulso para o surgimento dos hospitais, sendo que a primeira instituição eclesiástica, de cunho assistencial, consistia nas diaconias, que atendiam pobres e enfermos, em todas as cidades onde se estabeleciam cristãos (LISBOA, 2002, p. 14).

    No Ocidente, entre os anos 380 e 399 d.C., é possível identificar a construção do primeiro hospital (nosocomium), em Roma, por obra de Fabíola – uma matrona romana (BOLÉO-TOMÉ, 2014).

    Foi no Oriente, inicialmente em Bagdá (séculos IX e X) e, posteriormente, no Cairo (século XIII), que o ensino da medicina começou a ser realizado utilizando os hospitais como locais para este fim.

    Nesse sentido, assim leciona Lisboa:

    O ensino da medicina e a organização dos serviços sanitários incrementaram a fundação dos hospitais. Em Bagdá, existiam dois: um, inaugurado no século IX; outro no século X. Este conservou-se até a destruição da cidade em 1258. O hospital do Cairo, construído em 1283, representava a forma geral dos hospitais do território ocupado pelo Islã: possuía enfermarias separadas para os feridos, os convalescentes, as mulheres, os que sofriam de doenças nos olhos, os que tinham febre, farmácias, cozinhas etc. O hospital era dirigido por um médico a quem eram subordinados outros, sendo que todos ministravam lições diárias aos discípulos. Como auxiliares, havia enfermeiros de ambos os sexos. [...] O exercício da medicina era reservado àqueles que, tendo completado o curso, eram aprovados em exames pelos médicos mais destacados. Assim, graças aos árabes, o hospital torna-se escola de medicina (LISBOA, 2002, p. 16).

    Foi nessa época,

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