Os Raros
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Os Raros - Paulo Fialho Dias
Realizado, dedico para aqueles que me ensinaram as histórias da vida, meu Pai Marcos e minha Mãe Alice.
Para o meu irmão Eduardo, que aventurou-se comigo nas minhas histórias.
Para aquelas que compartilharam suas histórias comigo, as iluminadas Julie e Jinny.
Para Verônica e Álvaro, que me deram a oportunidade de participar de uma nova história.
Para Amy, que, com sua existência, encheu a minha com uma nova luz.
E, agradeço e dedico a Hully Monteiro e a Gabriel Santos, que, em muito, agregaram nesta obra.
Sumário
CAPÍTULO 1. FLECHA 9
CAPÍTULO 2. O CEIFADOR 26
CAPÍTULO 3. O CORPO 36
CAPÍTULO 4. BENEVOLENTE 50
CAPÍTULO 5. HERANÇA 67
CAPÍTULO 6. A CHEGADA 79
CAPÍTULO 7. O NATIVO DAS FLORESTAS 87
CAPÍTULO 8. TEATRO 97
CAPÍTULO 9. PROTEGIDA PELOS DEUSES 112
CAPÍTULO 10. O MORTALHA E A CAÇADORA 123
CAPÍTULO 11. O MENSAGEIRO DOS DEUSES 137
CAPÍTULO 12. OLHOS VERMELHOS 151
CAPÍTULO 13. ALIADOS NO TEMPLO 174
CAPÍTULO 14. A NOITE DO JACARÉ 198
CAPÍTULO 15. O BICHO-PAPÃO 215
CAPÍTULO 16. SANGUE NAS MÃOS 234
CAPÍTULO 17. O PORÃO 257
CAPÍTULO 18. O CAMINHO DOS RAROS 269
CAPÍTULO 19. CRUCACIA 292
CAPÍTULO 20. FACES 299
CAPÍTULO 21. ARMADILHA 319
CAPÍTULO 22. LUTAR E RESISTIR 341
CAPÍTULO 23. VINGANÇA 351
CAPÍTULO 24. REDENÇÃO 381
CAPÍTULO 25. A CAVERNA DA CRUCACIA 400
CAPÍTULO 26. SOMBRAS 410
CAPÍTULO 27. CHAMAS DO PASSADO 428
CAPÍTULO 28. SANGUE NO ALTAR DE PEDRA 445
CAPÍTULO 29. MEDO 454
CAPÍTULO 30. O CORAÇÃO 462
CAPÍTULO 31. OS GORJALAS 472
CAPÍTULO 32. A FORÇA 487
CAPÍTULO 33. ASSÚ E AMAZONA 504
CAPÍTULO 34. DESEJOS 520
CAPÍTULO 35. O CASARÃO 537
CAPÍTULO 36. A ESPADA DE CARVALHO 550
CAPÍTULO 37. SORKI 568
CAPÍTULO 38. O SACRIFÍCIO 580
CAPÍTULO 39. OS AGAVERDISTAS 593
CAPÍTULO 40. CINZAS 604
CAPÍTULO 41. PUNIÇÃO 614
CAPÍTULO 42. A ORDEM DOS RAROS 621
CAPÍTULO 1. FLECHA
Ainda não possuía uma forma física capaz de interagir com o mundo, mas isso era uma vantagem, pois, assim, conseguia movimentar-se com mais facilidade.
Localizou a aura que lhe chamou a atenção, uma aura guerreira e de energia sem igual, com uma força vinda de uma vida de lutas, que enobrece um coração. Pretendia se apresentar para sua escolhida, mas ainda não era hora, tinha que poupar sua energia espiritual para trazer aquele que ainda não nasceu para aquela época.
Decidiu apenas acompanhar seus passos descalços pela rua, enquanto observava do alto dos telhados. Sabia para onde ela estava indo, mas não sabia como pretendia agir, seria uma boa comprovação de que ela tinha sido uma boa escolha.
Visto que teria que se apresentar aos mortais, decidiu assumir uma forma empática para gerar reconhecimento. Lembrou-se, então, de um ser que conheceu durante sua vida pregressa, alguém que liderou a fé de muitos homens e mulheres, mesmo tendo vivido tão pouco.
A energia de seu espírito, conjurou uma forma mais tangível, mesmo que ainda que desaparecesse com o vento e seu brilho pálido, fosse quase translúcido, agora possuía uma imagem, que dará credibilidade às suas palavras. Precisava deles, de todos eles, mas tinha que mover cada um, como uma peça de tabuleiro. Pequenos movimentos, para convergir no derradeiro encontro que garantiria o sucesso de tudo o que organizava.
Uma adorável criança, de pele feita de cristal, montada em um enorme cavalo pálido, acompanhou, discretamente, em galopes que nada tocavam, mas permitiam que transitasse no breu da noite sobre as casas, sem desafixar os olhos cristalinos da filha das ásvores, que parecia ser feita de madeira e tinha um andar determinado.
Naquela noite, enquanto apenas alguns gatos caminhavam pelos telhados, o último bar fechava suas portas, deixando seu último cliente sair, caminhando pelas ruas, envolto na fumaça de um fumo, um Nirel. Não era comum, um nobre da raça das Aves Reais, andar durante a noite, mesmo tendo os privilégios dos nobres. Os riscos de ser abordado por um arruaceiro, eram grandes, pois, durante a noite, os guardas da cidade limitavam-se a fazer vigia no palácio real.
Ao contrário das outras raças, os Aves Reais possuíam penas e a pele completamente escura; eram esguios e altos e, cada uma das famílias, possuíam penas de cores diferentes. Ao contrário do povo dos Filhos das Árvores, que possuíam os cabelos de folhas e a cor da pele que mudava, de família para família, pois a madeira do qual seus corpos eram feitos, tinha coloração única.
O Nirel, havia parado seu cavalo, ali próximo, e sentou-se num banco, à beira de uma fonte, enquanto aguardava seu encontro. O silêncio era sepulcral, apenas um único ruído era ouvido por entre as ruas centrais da grande cidade de Palma, capital do continente de Arabutã.
Os domadores de cavalos, andavam rindo e carregando os achados sem se importarem em olhar para os becos escuros que passavam. Cambaleavam, tanto por tropeçar nos paralelepípedos tortos na rua, quanto por terem bebido toda a aguardente, conhecida como Cachum, que haviam confiscado. As garrafas, tiveram como destino, serem arremessadas contra a parede da casa que invadiram, há poucos minutos. Ato realizado para comemorar a segunda empreitada com sucesso; há alguns dias, tinham conseguido dar cabo de um líder dos filhos das árvores. O Nirel, assim intitulado aquele que possui uma enorme propriedade, conhecida como um Ninho Real, estava muito feliz com seus progressos e havia pedido para eles darem uma olhada na situação posterior ao caso, mas, como voltavam com mais histórias, sabiam que seriam recompensados com elogios do patrão.
Os três, chegaram na praça enfeitada com uma gloriosa fonte, de esculturas majestosas das aves reais, seus antepassados. Em um dos bancos que a circulavam, estava seu patrão, os aguardando para, juntos, cavalgarem de volta ao casarão. O Nirel, Andes Gaviones, era jovem, não tinha nem penas no rosto ainda, mas conseguia ser confundido com uma Ave já de idade. Seu peso e sua saúde não eram vindouros, devido ao excesso de bebida e fumos e, ainda, usava o chapéu e o casaco do falecido pai, de mesmo nome e título.
Tarco, um dos três domadores de cavalos, se adianta na caminhada, indo onde o Nirel estava e coloca a sacola sobre a lateral do banco, revelando, ao seu chefe, os objetos apreendidos:
— Veja aqui, meu senhor de Penas! — Disse, chamando-lhe a atenção para os itens apreendidos. — Fomos lá ver os murmurinhos que pediu e dois cascas, que nós surramos, contaram que aquela gente está abalada depois da morte do mestre deles. Pode ficar tranquilo, que esses agaverdistas...
Neste momento, lembrou-se, rapidamente, que o Nirel não conhecia a prática dos agaverdistas e resolveu contextualizar:
– Aqueles que ensinavam agaverde, o estilo ridículo de luta dos cascas, de forma escondida, vão acabar de vez agora! Esperar que os guardas do reino os peguem, é dar mole demais para os cascas! E pegamos essas coisas da casa deles. — Enquanto falava com orgulho, apontava para os pertences que estavam amontoados.
Entre as facas, fumo e roupas, o Nirel, teve sua atenção presa a um estranho instrumento que estava ali, nunca o tinha visto antes. Era um Werimbo. Até colocou seu cigarro de lado e esticou-se para pegar o objeto na mão, curioso em saber como aquilo funcionava e tocou a corda, algumas vezes, com o dedo para ouvir o som que fazia. O instrumento, feito de madeira em forma de W, com cordas estre os vértices, emitia um som semelhante a chuva nas pedras. O Nirel, parecia um bobo descobrindo um novo brinquedo.
Os domadores se gabaram do medo dos meninos que abordaram. Tamanho era o pavor, que eles os levaram às suas casas, como narrou Tarco, orgulhoso, enquanto cutucava Ferdim, seu companheiro, para confirmar sua versão. Eles nem pretendiam tomar nada, apenas colocar os cascas em suas moradas, para que não começassem a andar pelas ruas da cidade, mas, quando chegaram ao local indicado pelos meninos, resolveram fazer a limpa necessária, disseram que só não pegaram a comida que lá estava, pois estava com cheiro forte.
O Nirel, nada diz. Estava vidrado no instrumento, mas se diverte com as partes da história que consegue prestar atenção. Pretendia repreender o grupo por estar fedendo a cachum e apoiados uns nos outros, pois, certamente, haviam bebido em serviço. Disse para não beberem, pois estava com receio de que se envolvessem em confusões. O Nirel, era envolvido em muitas negociatas secretas e seus domadores sabiam. Deixá-los à solta, bêbados, era um risco de ser dedurado pelos ignorantes empregados, mas deixou aquela violação passar, sem advertências, estava orgulhoso pelo trabalho realizado.
Enquanto mexiam nos itens, uma voz atravessa a praça.
— Devolvam!
Uma voz feminina, do outro lado da fonte, alcança os quatro, que olham para sua direção.
Estavam tão entretidos, entre os risos e falas em volume alto, que até ecoava pelas ruas vazias e de pouca iluminação, que não ouviram a aproximação.
Em pé, oculta pelas águas que se elevavam da fonte, surgiu uma filha das árvores, com a pele de madeira, cabelos cor de folhas e com os olhos de jabuticaba, que ostentavam uma fúria nunca antes vista. Com sua postura firme, ela os encarava, fixamente e parecia determinada a algo, pois seus pés descalços, estavam bem cravados no chão:
— Isso não pertence a vocês!
O Nirel, se surpreendeu, nunca havia visto uma fêmea dos Filhos das Árvores, sozinha e numa postura de guerreira, estava acostumado as vê-las como servas ou criadas. O único filho das árvores que o incomodou daquela maneira, havia acabado de sofrer as consequências.
Os três domadores, Tarco, Ferdim e Jocar, a observam. Não tinham visto ela na casa que haviam batido; e ela não estava com os meninos que eles abordaram. Por não a reconhecerem, deram de ombros para a intimação e apenas a olharam de forma debochada:
— Quem é você, casca? Do que está falando? — Questionou o Nirel, que não se deu ao trabalho de levantar para averiguar a moça, mas continuou mexendo nos itens apreendidos.
— Deixa, patrão Penas. — Disse, Tarco, com o rosto rubro de embriaguez. — Acho que ela é do grupo de agaverdistas. Me lembro de ter visto esse corpo rodando algumas vezes.
Todos riram da afirmação, em tom sarcástico.
A filha das árvores, mantinha o olhar fixo e permanecera em silêncio, sem retrucar a provocação.
Tarco, que fez o infeliz comentário, olhou aquela fêmea, dos pés à cabeça, e mordeu os lábios de desejo, ao imaginar atos libidinosos com aquela agaverdista.
Presumiu que ela fosse uma agaverdista pelo modo como se vestia. Ela estava usando uma calça de bocas largas, um cinto de cordas entrelaçadas de cores diferentes e uma regata de pano, com pequenas placas de pedras. Não se vestia como uma criada, ao seu ver.
Ela se mantém, encarando o grupo, não parecia amedrontada pelos olhares julgadores.
Tarco, no auge de sua confiança e seguro que não haveria reação contrária, decide brincar. Ele pega o Werimbo, da mão do Nirel, e ergue em direção a ela, desafiando-a a pegar.
O Nirel Andes, desaprova a ação, estava interessado no instrumento, mas ficou curioso para ver a reação da filha das árvores, da mesma forma que se observa os atos de um animal pela imprevisibilidade das ações.
Flecha, não teve dúvida alguma, sabia que era uma provocação, mas avançou dois passos, devagar, e tentou pegar o instrumento, em vão. Tarco, o puxou para trás, deixando escapar de seus dedos.
Ele sorriu quando viu ela franzir a testa e decidiu dar outra chance. Se aproximou, esticando o tronco, dizendo com a boca mole:
— Sabe o que tem que fazer para ter de volta. Só precis....
Flecha, não se conteve.
A fala do domador, foi interrompida, quando o pé direito da agaverdista, juntou os dentes que formavam a fileira de baixo da boca com os de cima, com tamanha força, que o fez contorcer o pescoço para trás e suspendê-lo do chão.
Caindo sobre o banco onde o Nirel estava sentado, fazendo-o se levantar, impressionado com o quão imprevisível foi o resultado daquele gesto. Arregalou os olhos para os demais domadores, que só conseguiam observar Tarco, desacordado, sobre os objetos apreendidos e sobre o banco de cimento.
Todos ficaram de olhos arregalados, tinha sido muito rápido, não conseguiam dizer se ela tinha dado um soco ou um chute.
Quem era aquela mulher, que manteve a perna esticada para o alto, para assinar seu golpe e se punha arqueada, em posição de luta, para desafiá-los?
Ferdim, em contra-ataque, tenta sacar sua arma, que estava presa na cintura, mas, seu movimento atrapalhado, devido ao excesso de cachum tomado momentos antes, chama a atenção dela. Flecha, junta os pés e joga o corpo para frente, suas mãos tocam o chão e ela roda os pés para o alto, que quase tocam a lamparina pendurada no poste, por fim, desce, ambos os calcanhares, sobre o peito do domador, Ferdim, que ainda tentava sacar a arma, fazendo-o colidir, bruscamente, contra o poste as suas costas.
O impacto, enverga a estrutura, que se dobra a ponto de cair a parte superior, atingindo o alto da cabeça de Ferdim, o deixando inconsciente e sem forças para continuar sua defesa. A lamparina, cai ao chão esparramando o óleo e o fogo, fazendo um enorme brilho e assustando, mais uma vez, Andes, que recua até próximo da fonte.
O Nirel, olhava seu empregado de confiança, caído sobre o banco de ponta-cabeça, completamente desacordado pelo golpe e seu outro empregado desacordado, com o poste envergado sobre si. Então, sentiu-se ameaçado pela figura que subestimou. As chamas fracas no chão, deram um ar sobrenatural a presença de Flecha, quando o brilho alaranjado tocou sua pele amadeirada.
— Atire nela! — Gritou, o Nirel Andes, para fazer Jocar tomar alguma atitude. Ele mesmo teria feito, mas só notou, naquele momento que estava desarmado.
Jocar, que testemunhava a movimentação da agaverdista com temor e admiração, ouviu a ordem e, no automático, sacou a arma, conseguindo ser mais rápido que seu antecessor e a apontou para os cabelos de folha, em forma de coroa, que ela ostentava e preparou-se para disparar.
Flecha, com extrema velocidade, agachou-se e passou uma rasteira no oponente, esticando a perna e o alcançando. O domador cai no chão.
No tombo, ele bate o cotovelo, justamente o do braço que empunhava a arma, disparando, por equívoco, a bala de prata na direção do Nirel. A bala não o acerta, mas passa varando seu chapéu, arrancando parte de suas penas vermelhas, as quais escondia sob o chapéu. Isso o desespera, ele anda para trás e tropeça na beirada da fonte, caindo nas águas geladas que, ali, eram regurgitadas por duas estátuas de aves reais.
A agaverdista, conclui sua ação e, para evitar um contra-ataque, chuta o rosto de Tarco, que estava a sua frente, imediatamente, repousando o oponente, inconsciente, no chão frio da praça.
Na queda, o Nirel Andes se lambuza, vergonhosamente, como uma criança atrapalhada, nas águas da fonte, o que o faz emitir um urro de dor. Afobado pelo choque de temperaturas, ele se ergue para fora das águas, mas fica temeroso de ser a próxima vítima daquela vândala. Arrasta-se, como se engatinhasse no raso, até alcançar a mureta da fonte.
Ele observou, cautelosamente, as mãos dela se esticarem, apenas para pegar de volta o símbolo de sua cultura, algo que representa mais seu passado e presente que as roupas ou nomes, o werimbo, que estava abaixo de Tarco, ainda desmaiado. Ela rola o corpo do homem para o lado, como um saco de batatas, sem se preocupar com seu despertar, sabia que o golpe o deixaria zonzo por um longo período.
Ela olha o Nirel com cara de assustado, molhado, dentro da fonte, evitando sair para não entrar em seu caminho e se aproxima um pouco dele. Não pretendia atacá-lo, mas manteve uma troca de olhares intimidadora com ele, afim de dar-lhe um aviso:
— Vocês não irão mais atormentar o meu povo, Nirel. Somos os Filho da Árvores, se me chamar de casca de novo, eu não terei misericórdia. Eu devia dar a vocês o mesmo castigo que deram a Mestre Zurba. — Disse, revelando uma voz doce e forte.
— Não fomos nós, eu juro! — Berrou, assustado. — Quem é você?
— Eu sou Flecha! Mestre Zurba, era meu irmão. Quando eu descobrir quem foi, eu vou fazer justiça!
O Nirel, fica intimidado, mas nada responde ou demonstra.
Flecha, sai do local, sem olhar para trás. O fogo que queimava no chão, já se apagara, deixando apenas um cheiro de queimado entre os domadores caídos e o Nirel, amedrontado, que saía da fonte, derrubando cachoeiras dos vãos das roupas. Ele observava, ainda chocado, a agaverdista se afastar e estava terrivelmente irritado por ter sido humilhado daquela forma. Para sua sorte, provavelmente, os domadores de cavalos não se lembrariam e ele poderia incrementar uma luta final, resultando na fuga dela. Sabia que eles não iam acreditar, visto sua fama de covarde, mas jamais diriam qualquer palavra que contrariasse as dele.
Ela carrega o werimbo, não estava lá para reaver todos os itens, escolheu o instrumento apenas como símbolo. Os meninos que o portavam, receberiam a mensagem, assim como aqueles homens também receberam.
Apesar de estar orgulhosa do feito, tinha tido coragem para agir mais ativamente e confrontá-los, ela não desarma o olhar frio e furioso do rosto, enquanto caminha pela rua de madrugada.
Ainda que soubesse se defender, era muito perigoso para ela topar com os perigos da noite. Mesmo não tendo nascido como uma serva, ela sabia, muito bem, como era vista pelas pessoas e não iria arriscar a vida, como acabara de fazer, em seu surto de adrenalina e indignação.
Ela caminhou, triunfante, a única testemunha daquele ato, o espírito que acompanhou sua escolhida desde o começo de sua jornada, estava no alto do telhado do Templo dos Livros, montado em seu cavalo com a certeza de que ele havia encontrado a Rara que procurava.
CAPÍTULO 2. O CEIFADOR
O suor frio, escorria por seu rosto quente, o ar saía mais rápido pela boca do que entrava pelo nariz, matando seu fôlego, aos poucos. A cada pisada descalça na terra quente e seca, ele sucumbia um pouco, já não aguentava mais tanto desespero.
Olhava, repetidamente, à sua volta, procurando um lugar para se esconder e descansar, mas a planície só tinha cactos secos e matos finos e transparentes.
Estava em um vasto campo aberto que, apesar dos desníveis de rochas, tornava aquele homem perseguido, um alvo fácil para seu caçador.
Não aguentou mais correr e parou um pouco para tomar fôlego e olhou em volta para ver se podia ver seu algoz.
Não conseguiu nem mais ver suas posses, de tão longe que havia corrido. Tomou bastante ar, apoiou as mãos no joelho e olhou para frente; o suor escorreu até a sobrancelha e pingou em sua vista. Ele reconheceu que aquele local estava a poucos metros da estrada que descia para a cidade. Talvez fosse sua chance. Caminhou novamente, um pouco, tentou dar alguns impulsos, pequenos saltos, para tentar voltar a correr, mas as pernas bambeavam, estava cambaleando de cansaço.
Ouviu o barulho de um estouro distante.
Olhou para trás e nada viu, ficara aliviado de não ser um tiro. Enganou-se. Sentiu uma enorme dor na coxa, quando foi alvejado por uma bala. A bala, mais quente que o sol que brilhava sobre ele, furou sua pele dura, rasgando sua carne. Aquilo, foi o suficiente para desmoronar o sujeito sobre a terra seca das grandes planícies do Deserto de Ferro.
Tentou estancar o sangue, apertando o ferimento, mas a bala estava muito quente e fazia sua carne arder. Ele gritou de agonia e dor. Tinha esperanças de que alguém, que não fosse o atirador, o ouvisse.
— Socorro! Alguém me ajuda! Tem um demônio! — Sua voz, ecoou pelo campo, mas sem encontrar qualquer forma de vida.
Tentou arrastar-se, apoiando o antebraço no chão, mas a bala doía muito. Devido à exaustão, conformou-se em gastar forças apenas para suportar a dor.
Enfim, se rendeu. Deitou-se na poeira e olhou o sol forte, que já brilhava há meses e viu pássaros ao longe, planando sobre ele. Eram urubus.
Lamentou não ter aproveitado mais a vida, seus anos no bando dos Mortalhas Vermelhos, conseguiram tudo o que tinha materialmente, porém, faltou algo que faria toda a diferença naquele momento: o perdão de seus pecados.
Uma sombra, surgiu sobre ele. Os passos leves, denunciavam alguém de pouca estrutura física e calmo. Olhou, tentando identificar a face da silhueta que o sol escondia. Quando a visão desembaraçou, conseguiu ver, mas não o reconheceu. Entendeu que nunca havia visto aquele rosto horroroso:
— Pelo amor do Santo dos Sóis. Piedade!
Quem é tu? — Implorou, sabendo que não viveria. — Não me lembro de você dizer seu nome para suas vítimas. Mesmo quando elas pediam, não é verdade... Pedreira?
Aquele era seu nome de guerra no bando dos Mortalhas Vermelhas, mas, apesar de não ser um segredo, fazia um bom tempo que não era citado e não via mais seus ex-companheiros.
— Me faça um favor, diga para quem te contratou que eu... o Pedreira! Não se arrepende de nada. — Presumiu que fosse um inimigo, em busca de vingança. Realmente, sobre uma das coisas, ele tinha razão. Tudo se tratava de vingança.
O estranho sorriu e gargalhou de leve. Quanta ironia
, pensou.
O Mortalha, ajoelhou-se perto de sua vítima e a sombra revelou seu rosto cadavérico, por completo. Pedaços da bochecha e pálpebras, estavam faltando, a pele era cinza e os ossos amarelados estavam à mostra. A roupa e o chapéu escondiam bem que aquilo não era um ser vivo. Pedreira ficou chocado e cogitou que aquele ser, fosse a própria morte. De certa forma, era:
— Fique tranquilo, você mesmo vai dizer isso para ele daqui a pouco, pois, meu contratante, é o Inferior!
O estranho, sacou sua faca e a ergueu para um golpe.
Seus olhos arregalaram-se com a fala, estava com tanto medo, que ficou estático, em choque. Pedreira, conseguiu notar algo familiar no seu assassino: um anel, que foi roubado por ele mesmo, de um dono de cavalos da longínqua Terra Doce, e a faca que Jaguá havia dado ao seu braço direito no bando.
Reparou, também, na cicatriz que o corpo pútrido tinha no queixo, tão funda, que riscava até a mandíbula ossuda abaixo da pele cinza. Reconheceu quem era aquele demônio, apesar de sua fisionomia estar completamente deformada.
— Anton Ceifeiro!
Foram suas últimas palavras, antes de receber duas facadas, direto na testa, com toda a força que os braços finos do defunto andante possuíam.
O assassino, sorri de satisfação, enquanto vê a morte daquele infeliz.
Após tirar a faca do segundo golpe, que ficara alojada no crânio, devido à pressão, pegou a mão direita do falecido e admirou os anéis que tinha no dedo. Lembrou-se de terem conseguido aquelas joias de um produtor de cachum que mataram juntos, mas ignorou-as, queria apenas o dedo indicador. Arrancou, em um só movimento, o dedo e o anel.
Levantou-se, depositou o dedo arrancado em uma tira de couro, com um pequeno espeto, para fixar aquele pedaço de carne e osso, e um laço, já pronto, afim de guardar seu macabro troféu ao lado de mais quatro dedos de tamanhos, idades e estado de putrefação diferentes.
Fechou o casaco e sorriu, com o pouco de carne podre que ainda tinha nas maçãs do rosto. Estava próximo de concluir seu acordo com seu empregador. Não faltava muito. Depois descansaria.
Nesse momento, ouviu um bater de cascos, nas duras pedras do chão, às suas costas. Olhou para trás, despreocupado, não havia algo que podia matá-lo, já estava morto, mas segurou firme, o fuzil que trazia preso ao ombro pela bandoleira.
Um cavalo branco, com crinas brilhantes, trotava em sua direção. Achou bastante improvável aquela aproximação, pois, apesar de suas orelhas estarem em decomposição, teria ouvido aquele cavalo de muito mais longe. De onde o animal teria vindo?
.
O cavalo se aproximou, era montado por alguém que segurava aquela crina sobrenatural com firmeza e postura confiante. Ele sacou a arma, já havia tido aborrecimentos demais e não estava naquela Terra para fazer aliados ou poupar vidas. Apesar de ter tempo de sobra para gastar com sua busca, queria concluir logo seu caminho. Portanto, fosse quem fosse, iria levar um tiro, a qualquer sinal de afrontamento.
Apontou o fuzil e gritou:
— Desalmado! Corre daqui! Te dou uma chance, pois não quero gastar minhas balas com você.
O cavalo, se coloca de lado, seguindo os desígnios de seu cavaleiro, que se revela ao assassino. Não foi identificado anteriormente, pois sua estatura era pequena e o enorme cavalo o escondia, de forma não proposital. Tratava-se de uma criança com a pele feita de cristal.
Segurando a crina branca com seus dedos pequenos, o menino estava sentado em um pano grosso, que simulava uma sela. Era muito jovem, mas tinha um olhar imponente. Percorreu os olhos sobre o mortalha, analisando-o.
Ceifeiro, notou que o garoto não tinha pupilas, seus olhos eram totalmente brancos, mas não era cego, aparentemente. O fato da pele do menino ser, completamente, cristalizada o fez cogitar ser um dos espíritos dos deuses antigos, mas, mesmo assim, não se intimidou, em momento algum. Aquilo, não o comoveu, nada o impediria de assustar o menino pela ousadia de se dirigir até ali, já era grande o suficiente para não meter o nariz onde não era chamado.
Mirou, novamente, seu rifle para a cabeça do garoto e percebeu que ele nem se abalou. Cogitou tomar-lhe o belo cavalo para seguir viagem, mas não queria deixar o menino no meio do nada, para ter uma morte dolorosa pelo sol, assim como ele quase havia tido:
— Você não pode me matar.
Disse a criança, balançando a cabeça para os lados e emitindo uma voz cavernosa, com tom tranquilo, como as águas de um rio.
— Não perca tempo. — Continuou o menino. — Sei o que está buscando, porém, posso lhe conceder algo que nem o Inferior te daria.
Ceifeiro, abaixou seu rifle, instigado. Já havia visto coisas surpreendes neste e no mundo dos mortos, mas agora, realmente, estava surpreso. Aquela voz não era compatível com aquele corpo.
— Quem é tu? — O indagou.
O menino, sorriu, satisfeito pela reação, sabia que tinha conseguido o interesse do mortalha. Apenas respondeu:
— Eu estava à sua procura, homem sem alma. O mundo precisa da ajuda de um ser Raro, como você. E posso lhe dar algo que o Inferior não pode... o calor da pele dela...
O mortalha, arregala os olhos mortos. Joga a capa para trás e arruma a corrente na cintura. Interessou-se nos dizeres do menino, mas ainda possuía algumas dúvidas:
— Que tipo de ajuda você diz... criança?
Apesar de confuso com aquele encontro, ele teve uma certeza: aquele menino não era daquele mundo.
CAPÍTULO 3. O CORPO
Flecha, caminhou, até sair do grande centro da cidade. Não gostava de andar por ali pois, além dos olhares que menosprezavam sua atitude desafiadora, tinha que aguentar uma série de infortúnios dos comerciantes.
A noite estava quente. As belíssimas ruas da cidade de Palma, a capital da terra de Arabutã, reconhecida como o centro do mundo, pois, ali que os cinco rios principais se encontram, em um grande lago, em forma de mão, que os comerciantes, de todos os cantos do mundo, se aglomeram e as pessoas, de todas as terras, buscam oportunidade de trabalho e vida. Como não houve nenhuma apresentação no Teatro dos Espetáculos, as tavernas já tinham fechado suas portas e a calmaria estabeleceu-se, atipicamente, na formosa cidade sobre o breu. Não havia a circulação das carruagens dos nobres retornando às suas casas e nem a circulação dos boêmios embriagados; estes, também tinham diminuído suas costumeiras reuniões e jantares na longa noite, visto as tensões entre o exército da capital e o Monarca regente, O Rei Luno Baetá Quarto, terem se intensificado naquele período.
Os boêmios, pareciam ter combinado um dia para se recolherem, pois, mesmo com as adegas e tavernas fechadas, seus passeios eram uma tradição noturna. Apenas o porto mantinha-se em constante atividade, mas era uma área longe do grande centro.
Os lampiões dos postes iluminavam as ruas de paralelepípedo das grandes avenidas, a praia estava morta e, somente nos bairros periféricos, havia pessoas circulando pelas ruas a pé, voltando dos encontros nos terreiros e nos templos.
Apesar de se aventurar à noite, Flecha, sempre mantinha um olhar cuidadoso. Mesmo com a independência dos Filhos das Árvores, através de leis criadas pelo Rei, há alguns meses, existia muito ódio nos corações dos cidadãos vizinhos, então, não era prudente sair de suas casas e barracos à noite, desacompanhados.
A cada passo dado, uma olhada por cima do ombro era lançada para o caminho deixado para trás, assim, garantia a impossibilidade de surpresas. Apertava o werimbo na mão, para saber que, caso ocorresse algo, teria valido a pena.
Sentia-se mais segura e confortável quando adentrava os bairros periféricos da cidade, conhecidos como Raízes, a comunidade em que era conhecida e respeitada. Por mais cansada que estivesse, seu destino a seguir, não era o conforto de sua pequena casa, mas sim, o cemitério da comunidade. Ela havia saído de lá, em meio a cerimônia, para resolver o desrespeito feito aos meninos, donos do werimbo. Em outras situações, ela aguardaria um tempo para agir, mas, diante de tantas emoções, aquilo havia sido intolerável.
Antes de entrar pelos portões, respirou fundo, absorvendo todo o fôlego que escapava, endireitou a postura e olhou para cima.
No cemitério, havia uma pequena comitiva de pessoas, carregando um caixão para um dos túmulos aberto.
Apenas uma senhora chorava à beira do falecido, os outros, expressavam seu descontentamento no semblante. A preocupação com os meninos, que ali chegaram desesperados, havia ocupado os corações que sofriam com a perda, entre choros e respiradas ofegantes. Os dois jovens, praticantes da luta Agaverde, característica de seus antepassados, chegaram