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Matsumoto, O Guarda-Costas
Matsumoto, O Guarda-Costas
Matsumoto, O Guarda-Costas
E-book383 páginas4 horas

Matsumoto, O Guarda-Costas

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Sobre este e-book

"Matsumoto, O Guarda-Costas" é uma leitura livre do filme de Akira Kurosawa, Yojimbo ("guarda-costas", em japonês), de 1961, estrelado por Toshiro Mifune. Na película, um ronin (ou seja, um samurai solitário e sem senhor) chega a uma vilazinha dominada por duas gangues rivais, que mantêm os habitantes sob terror. Tomando sob sua proteção os indefesos moradores, o samurai dispõe-se a combater os bandidos. Para tanto, se oferece como guarda-costas a um dos bandos e, logo em seguida, ao outro, além de estimular as gangues a guerrearem entre si. E, assim, vai conseguindo eliminar os bandidos, saneando a vila e devolvendo a paz a seus habitantes.
"Matsumoto, O Guarda-Costas" segue em parte o enredo de Yojimbo, diferenciando-se do filme de Kurosawa em detalhes e situando a trama no Brasil da atualidade. Um investigador de polícia em São Paulo, de nome Sérgio Matsumoto, sofre uma emboscada, na qual perde um braço e um olho. Ajudado por um velho tio, especializado em cultura japonesa, de nome Ken, procura refazer a vida destruída pelos bandidos e pela mulher que o abandona. Sob instigação do tio, começa a praticar artes marciais e torna-se um exímio espadachim. Recuperado física e mentalmente, é contratado por um deputado corrupto para prestar serviço na Amazônia. Em Icatiara, pequena vila às margens do rio Içá, é incumbido de acabar com duas gangues rivais, uma do traficante de drogas colombiano Dom Alfonso, a outra do traficante de madeiras nobres, Severino. A limpeza da vila é imperiosa para que o deputado possa instalar ali um ambicioso projeto de exploração de cassiterita e soja.
Matsumoto, munido apenas de armas tradicionais, como uma espada-bengala e estiletes, usa da mesma artimanha do herói de Yojimbo, oferecendo-se como guarda-costas de uma das gangues e depois da outra. Pouco a pouco, livra Icatiara dos bandidos e reinstaura a paz no vilarejo. Parte então para sua última missão, que envolve o acerto de contas com o deputado corrupto em Brasília.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de set. de 2020
ISBN9781393531159
Matsumoto, O Guarda-Costas

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    Matsumoto, O Guarda-Costas - Álvaro Cardoso Gomes

    PREFÁCIO

    A atividade de detecção criminal como tarefa de uma força policial regular é uma invenção relativamente moderna, que consta ter começado em Londres, com um grupo de oficiais de justiça chamados Bow Street Runners, organizado em 1742 pelo escritor e jurista Henry Fielding, que exercia o cargo de Chief Magistrate, e cujo gabinete se encontrava na Bow Street. Em 1829 foi criada a Polícia Metropolitana daquela cidade como um corpo de patrulhamento ostensivo, cujo Departamento de Detetives data de 1842.

    [1]

    Não surpreende portanto que a narrativa detetivesca como gênero literário tenha-se desenvolvido na Grã-Bretanha – e posteriormente nos Estados Unidos – durante a segunda metade do século dezenove, época em que o crime era visto como uma ruptura aberrante de uma ordem social considerada essencialmente saudável. A ação do detetive restaurava a ordem mediante a identificação do criminoso, seguida do castigo, seja através do sistema judiciário, com menos frequência pela ação direta do detetive, que chegava a atuar à margem da lei, ocasionalmente através do suicídio do culpado, ou implícito no desfecho da narrativa. O importante é que os leitores ficassem assegurados de que, de alguma maneira, far-se-ia justiça, reforçando assim a piedosa crença em que a polícia e o judiciário cumpririam a sua função. Ou seja, um happy end para todos, exceto o culpado, ou mais raramente a culpada, já que os criminosos, numa literatura isenta de cotas, eram quase invariavelmente homens.

    Seguindo de perto a realidade, a ficção inglesa criou o personagem do detetive, epitomizado pela invenção de Sherlock Holmes por Arthur Conan Doyle, ao que parece inspirado em três histórias de Edgar Alan Poe nas quais atua o investigador amador Auguste Dupin.[2] Sherlock Holmes apareceu pela primeira vez no romance A Study in Scarlet (1887) e veio a ser o paradigma de uma legião de detetives e investigadores. Também na segunda metade do século XIX surgiram nos Estados Unidos os romances baratos conhecidos como dime novels, (dime = 10 centavos de dólar), protagonizados por tipos durões como o detetive Nick Carter. A partir da década de 1920, autores como Carroll John Daly, Dashiel Hammett, Raymond Chandler, Ross Macdonald, Mickey Spillane e inúmeros seguidores desenvolveram um tipo de personagem plebeu, mais realista que os investigadores aristocráticos britânicos, como o mesmo Holmes ou Lord Peter Wimsey, de Dorothy Sayers. Tratava-se do detetive hardboiled, dotado de punhos rápidos e língua cortante, que resolvia crimes e mistérios, enfrentando não apenas criminosos como, com frequência, também a polícia.

    Segundo Sandra Reimão, em seu imprescindível livro Literatura policial brasileira (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005), a narrativa policial ou detetivesca no Brasil tem quase um século de existência. O primeiro romance do gênero, intitulado O Mistério, publicado em 1920, foi escrito por quatro autores de renome, que trabalharam sem nenhum plano estabelecido – bom exemplo da famosa tendência à improvisação – e escrevendo cada um deles um capítulo e passando o texto ao colega seguinte, que repetia o procedimento. O produto final deste método sui generis foi uma história divertida que se burlava não somente do detetive como personagem e da polícia como instituição, como também do gênero em si mesmo. Não surpreende que, numa sociedade em que vigorem a arbitrariedade e a venalidade das instituições governamentais, a noção do crime sistematicamente punido perca muito da sua razão de ser, nem que haja certa ambivalência com respeito à narrativa policial num entorno social em que a distinção entre policiais e criminosos nem sempre é clara, a confiança do cidadão na justiça é precária, e os leitores, atentos à realidade deplorável que os golpeia cada dia nos noticiários, quando não na própria carne, desconfiam de histórias com um final feliz. De fato, numa sociedade assolada pela desordem endêmica, onde a autoridade é com frequência conivente com a corrupção, é natural que mesmo Sherlock Holmes seja objeto de chacota, como na paródia de Jô Soares, O Xangô de Baker Street.

    Enquadra-se nesse contexto cultural a narrativa policial de Álvaro Cardoso Gomes, representada até a data pelos três romances protagonizados pelo detetive Douglas Medeiros, da Polícia Civil de São Paulo, A Boneca Platinada, O Comando Negro e As Jóias da Coroa, pelo livro de contos Guerra não Declarada e pelo presente romance, Matsumoto, o Guarda-Costas, onde Medeiros tem inclusive um cameo. Um detalhe essencial é a intenção de homenagear o grande diretor cinematográfico japonês Akira Kurosawa, adaptando à narrativa as linhas mestras do roteiro do filme Yojimbo, procedimento já empregado pelo diretor italiano Sergio Leone em A Fistful of Dollars (1964), um emblemático spaghetti western, e pelo diretor estadunidense Walter Hill no filme de gângsteres Last Man Standing (1996), situado na época da Lei Seca. Em Matsumoto, o Guarda-Costas, enfatiza a homenagem o fato de ser o protagonista um nipobrasileiro, exinvestigador de polícia, mutilado de um braço e cego de um olho, como o lendário samurai Tange Sazen. No mundo amoral em que se move, onde as forças da lei e da ordem são ineficazes ou ambíguas, o protagonista deve caminhar na penumbra de uma relação seja antagônica seja simbiótica do submundo, chegando a atuar como um justiceiro autônomo, o único tipo de paladino capaz de fazer justiça, embora pelas próprias mãos.

    O drama começa em São Paulo, transpõe-se à região amazônica, onde se desenrola a maior parte da ação, e tem o seu desfecho no covil do chefe da gangue, simbolicamente – ou talvez não tanto – situado em Brasília. Como num bom filme de samurais, alternam-se passagens relativamente lentas, carregadas de tensão, que se resolvem em rápidas cenas de intensa violência. Fazem um eficaz contraponto à linguagem padrão da voz narradora os diálogos em que a fala coloquial de alguns personagens e o dialeto vernáculo de outros contribuem a plasmar com precisão os personagens, enriquecendo-os com uma dimensão realista que de outra maneira se perderia. Tudo isso faz de Matsumoto, o Guarda-Costas um excitante page turner, capaz de proporcionar ao leitor conhecedor do gênero várias horas de emoção e prazer.

    Milton M. Azevedo

    Berkeley-on-the-Bay, Março 2018

    MATSUMOTO, O GUARDA-COSTAS

    – Como é o seu nome? – disse a mulher de Seibei.

    O ronin olhou pela janela e, ao ver um campo com amoreiras, deu um sorriso e respondeu:

    – Sanjuro (30 anos), Kawabatak (Campo de amoras).

    Akira Kurosawa, Yojimbo.

    Na arte militar aplicada à luta individual, deve-se conhecer, ao mesmo tempo, a escola do antagonista, sua personalidade, seus pontos fortes e fracos e surpreendê-lo com um ritmo inesperado e completamente diferente. Observar com o máximo de atenção a cadência do inimigo, seus altos e baixos, bem como o seu ritmo. Procure vencer sempre pela iniciativa.

    Miyamoto Musashi – Gorin no sho.

    I

    Água

    1

    O investigador Matsumoto

    O investigador Matsumoto estava sentado diante de uma mesa baixa, onde havia um bule de chá, uma xícara, um pires com restos de frutas, um par de hashi, uma folha de papel em branco e uma caneta. Usava um conjunto de kimono e hakama[3]. De olhos fechados, ele parecia refletir. Estava à procura de uma imagem que pudesse traduzir a sensação que teve, ao ver, pela manhã, duas andorinhas piando sobre um fio. Passou-lhe então pela cabeça escrever um haiku[4]. Chegando em casa, preparou o chá, cortou fatias de melão e mamão e sentou-se. Mas a inspiração não veio, embora as imagens ainda estivessem vivas dentro de si: as andorinhas pousadas sobre o fio, coladas uma na outra, como se estivessem trocando juras de amor.

     A quitinete tinha o chão, em parte, coberto por tatames. Nos fundos, junto a um vitrô, havia um sofá-cama futon, diante de uma estante com livros, CDs e DVDs, uma televisão de trinta e duas polegadas, um aparelho de som, outro, de vídeo e um laptop. Completando a mobília, havia também um guarda-roupa, a mesinha de centro, onde costumava comer e escrever, ao lado de um daisho,[5] com três espadas, uma, longa, a katana, a outra, curta, a wakizashi, e uma shikomizue, ou espada-bengala. Na frente, junto da porta de saída, ficava o banheiro, ao lado do qual, se situava a cozinha embutida, provida de fogão, pia, um armário de uma só porta, forno de microondas e geladeira. Três cartazes decoravam as paredes. Um deles, uma estampa do pintor japonês Hokusai, mestre da escola uikyo-e, do século XVIII, mostrava uma onda engolfando barcos num mar revolto. No outro, havia a inscrição, em japonês, da máxima de Tokugawa Ieyasu, a espada é a alma do samurai, e, no último, a imagem do samurai Miyamoto Musashi, em posição de combate, no estilo Niten ichi ryu, ou seja, duas espadas.

     Sérgio Isashi Matsumoto era magro, altura mediana, de constituição sólida, graças a constantes exercícios. Mas não tinha parte do braço esquerdo, cortado à altura do cotovelo. Usava uma venda, presa por uma tira, que ocultava um olho perdido. No lado esquerdo do rosto, tinha uma grande cicatriz, que lhe repuxava uma extremidade dos lábios a ponto de lhe dar um ar de involuntário escárnio, quando sorria. Trazia os cabelos presos num coque.

    Tinha sido obrigado a se aposentar na polícia, aos trinta e dois anos, devido a um grave acidente, resultado de uma operação policial malsucedida. Isso aconteceu quando ainda era investigador no 113º DP, no Campo Grande. Recebendo uma denúncia anônima sobre uma oficina de desmanche de carros, no jardim do Éden, seu então superior, o delegado Ledesma lhe ordenou que fosse fazer uma investigação:

    – Precisamos pôr um cobro nisso. É uma vergonha um desmanche de carros bem debaixo do nosso nariz.

     Que mania a do delegado de sempre usar a primeira pessoa do plural, quando tratava dos casos do DP! – pensara com irritação o Matsumoto. Embora jamais tirasse a bunda da cadeira para nada. O negócio dele, conforme dizia com humor um colega, o investigador Medeiros, era ficar trancado na sala, fingindo que trabalhava e vendo as peladas da Playboy. Mas bastava receber alguém que adotava uma pose de estátua e fazia o discurso de sempre, em que o nós preponderava: a nossa equipe, as nossas ações, as nossas diligências.

    – Quem vai comigo, doutor? – perguntou.

    – O Morganti – respondeu o delegado.

     Matsumoto reprimiu um gesto de desagrado. O Morganti seria o último colega com quem gostaria de fazer uma diligência sobre desmanches. Não tinha confiança no sujeito, porque corriam rumores de que ele mantinha negócios escusos com vendedores de carros da Boca.

    – Não posso ir com mais gente? – perguntou, com a esperança de contar com alguém confiável a seu lado.

    – Não, não pode. O pessoal está todo ocupado. E, depois, não estou lhe enviando pra uma grande diligência. Você vai apenas investigar uma cabeça-de-porco vagabunda.

     Matsumoto refletiu que não era uma cabeça-de-porco qualquer. Sabia que a oficina pertencia ao Monstro, o terror de Parelheiros. Resolveu não discutir, porque era impossível argumentar com o doutor Ledesma, a quem detestava do fundo do coração. Um sujeito sem nenhum caráter, que tinha o maior desprezo pelos subordinados. Mas não tinha alternativa senão obedecer, além de que não gostaria nada, nada, que o delegado pensasse que estava com medo.

    E assim, teve que suportar a companhia do Morganti. Chegaram ao Jardim do Éden, um rascunho de bairro, com os barracos de alvenaria e de madeira e pedaços de papelão e plástico preto mal se equilibrando nuns morros pelados, cortado por ruelas cheias de lama, lixo e carrinhos de madeira com sucata. Haviam deixado a viatura na Estrada do Ó e seguiam a pé. Além de ser impossível escalar aqueles morros com um carro, não convinha que se exibissem por ali numa viatura policial.

     A bem da verdade, o investigador Morganti também não havia gostado da ideia de acompanhar Matsumoto naquela diligência. Ele costumava dizer:

    – Não dá pra confiar em preto ou em japonês. Mas o pior são os japas, a gente nunca sabe o que estão pensando... – e concluía a argumentação com uma tirada: – Não sei por que os americanos não terminaram o serviço na Segunda Guerra, atirando mais umas bombas atômicas no resto do país.

    Mas havia outro motivo pelo qual não queria a companhia do Matsumoto. É que odiava qualquer colega que fosse incorruptível. Era péssimo para os negócios. E o problema daquela diligência estava nisso. Sabia que quem mantinha aquele desmanche costumava fazer negócios com o Coruja, o dono de uma loja de carros usados na Boca, para quem, de vez em quando, prestava serviços de segurança. Era um cliente esquecendo-se de pagar, e ele se responsabilizava por botar o sujeito nos eixos. Era um concorrente vir com ameaças, e ele dava um susto no elemento. Portanto, não ficaria nada bem se soubessem que ia tomar parte naquela diligência para estourar o desmanche. Tinha deixado de sobreaviso o Monstro, por intermédio do amigo da Boca, alertando que, contra sua vontade, ia estar acompanhado do Matsumoto:

    – É um escroto de um japonês, Coruja. Com o cara, não tem conversa. Avisa o Monstro pra ele sumir do pedaço. Dou uma maneirada, levo em cana um laranja, e as coisas continuam como sempre, numa boa.

     Já no coração do bairro, subiram por uma ladeira. Uma chuva fina começou a cair, e eles patinavam na lama. E quando menos se esperava, o Morganti desandou a falar:

    – Não esquenta a cabeça, japa. Sei que você não vai com a minha cara, mas a gente dá conta do recado, fácil, fácil.

     Matsumoto continuou a andar, sempre fechado naquele mutismo, que parecia deixar o parceiro para lá de incomodado. O Morganti começou a rir e disse, acariciando a coronha da pistola Glock no coldre do ombro:

    – Você vai ver, japa, logo que mostrar meu peacemaker, os vagabundos vão fugir que nem galinhas assustadas...

     Matsumoto considerou que o Morganti era mesmo um bosta. Todo mundo no DP sabia que ele não passava de um covarde. Era muito conhecida a história entre os colegas da inépcia do imbecil. Na única vez em que tinha usado a Glock contra um intruso em sua própria casa, havia sido incapaz de lhe acertar um só tiro. Em contrapartida, o bandido, com um simples .32, lhe tinha acertado um dos braços. Portanto, não me vem encher o saco com essa conversa mole. E, outra coisa, japa é a puta que te pariu! – foi o que Matsumoto pensou naquela ocasião, mas não disse. Não valia a pena gastar saliva com o idiota.

     Diante da Oficina do Mané, onde havia alguns fuscas sem motor, uma kombi toda arrebentada, uma carcaça de uma Brasília, Matsumoto parou para pensar. Sabia que a oficina era só fachada. Segundo informações, nos fundos, havia uma porta que dava passagem para um galpão, onde se realizava o desmanche de carros. Era aí que morava o perigo, pois não tinha como saber quantos homens havia lá dentro. Talvez, por esse motivo – refletiu –, valesse a pena não entrar pela frente da oficina e, sim, dar a volta e surpreender os malandros por detrás.

    – Estou vendo só dois vagabundos arrumando um motor. Vai ser a maior moleza. Que nem roubar pirulito de criança. A gente chega, dá voz de prisão, aperta os caras, e eles logo entregam o serviço – disse o Morganti com desprezo.

    – Espera um pouco. Não acho que essa ideia...

     O Morganti, sem deixar o Matsumoto concluir a fala, sacou a pistola e correu em direção da oficina, berrando:

    – Polícia!

     Porra! Agindo daquele modo, o filho da puta tinha estragado tudo! Haviam perdido o fator surpresa, essencial naquele tipo de operação. Mas como a cagada já estava feita, não tinha outro remédio, senão dar cobertura para o imbecil – pensou o Matsumoto, pegando a beretta 9 mm na cintura e indo atrás do parceiro.

     Quando entrou na oficina, deparou o Morganti com um joelho apoiado nas costas de um dos mecânicos e a Glock encostada na cabeça dele.

    – Pega o outro, japa! – ordenou.

     Matsumoto saiu em perseguição de um loiro de cabelo rastafári, que correu em direção dos fundos da oficina. Antes que pudesse alcançá-lo, porém, o mecânico abriu uma portinhola de zinco, por onde sumiu. Quando Matsumoto ia puxar o arame que prendia a portinhola, um negro enorme apareceu detrás da kombi, armado com uma .12. Ouviu-se um estrondo. Instintivamente, Matsumoto desviou o corpo, ficando quase de perfil. Foi o que lhe salvou a vida. Em compensação, um balote lhe arrancou um olho e parte dos músculos da cara, outros lhe destroçaram o braço esquerdo, logo abaixo do cotovelo. Atirado com violência para trás, Matsumoto caiu de costas no chão sujo de óleo e começou a se debater, enquanto o sangue espirrava dos ferimentos. O negro foi em direção do Morganti que, atirando longe a pistola, ergueu os braços e disse, amedrontado:

    – Monstro, não foi isso o que a gente combinou.

    – Não foi, mas quis mandar um recado pra esses gambés de porra – rebateu o Monstro.

    – Vai feder, cara, vai feder.

    – Te manda, seu merda! – tornou o negro, para depois completar, dizendo com desprezo: – Se tu não fosse amigo do Coruja...

     O Morganti catou a pistola e saiu em disparada. Monstro, filho da puta! Era só pra dar um susto no japonês. Caralho, porra! O que podia fazer agora? – pensou ele. Quando já estava longe da oficina, parou um pouco para refletir. Resolveu esperar até que o Monstro tivesse tempo de se livrar dos carros do desmanche e de desovar o presunto. Deu de ombros: infelizmente, o japa já era. Desceu o morro e, sempre maldizendo a chuva, o barro, que haviam sujado seus sapatos de cromo alemão, foi até a viatura. Quase uma hora depois, fez um pedido de socorro, alegando tiroteio entre policiais e marginais e investigador ferido com gravidade. E enquanto esperava, construiu uma história bem plausível: enquanto ele tinha ido investigar as traseiras do desmanche, o Matsumoto, contrariando suas orientações, resolveu invadir o mocó dos bandidos pela frente. Ouviu então o disparo da .12 e, correndo até a oficina, deu com o companheiro esvaindo-se em sangue. Acuado pelos bandidos, tinha sido obrigado a bater em retirada. Pronto! – sorriu, satisfeito. Matava dois coelhos de uma só cajadada: livrava-se do japa e limpava a barra do Monstro. E com certeza, ia ganhar uma bonificação do Coruja que, nessas coisas, o cara não era de regatear. Só lamentava a cagada feita pelo negrão. Se o japa tivesse ido dessa para a melhor, e com certeza tinha ido – um disparo de uma .12, à queima-roupa, não era brincadeira –, o pessoal do DP não ia deixar barato. Mas o Monstro que se fodesse: trato era trato, e ele tinha furado o trato, ao preparar a emboscada.

     Matsumoto foi encontrado numa barroca entre a vida e a morte. Para sorte dele, quem o deixou por lá, talvez acreditasse, pela gravidade dos ferimentos, que estivesse morto. Levado para a UTI, operaram-no com urgência, mas não puderam recuperar a parte do braço destroçada, e sua cara recebeu remendos e implantes de osso e pele. Por milagre, sobreviveu, apesar de todo o sangue perdido e da demora do resgate. Permaneceu entubado nos Hospital dos Servidores por bastante tempo, teve um ameaço de pneumonia, seguido de uma infecção hospitalar. Graças à constituição robusta e à vida regrada que costumava levar, depois de quatro meses de tratamento e sessões de fisioterapia, conseguiu se recuperar, ainda que com sequelas.

    Enquanto esteve internado, recebeu algumas visitas. Uma delas a de um jornalista que, depois de uma apressada entrevista, lhe dedicou cinco ou seis linhas no jornal Agora e a de um tio, Ken Matsumoto, a quem não via há muitos anos. O velho senhor permaneceu alguns minutos a seu lado, mas sem falar quase nada. Só à saída, disse que se precisasse de algo podia telefonar e se foi tão silencioso como havia entrado. Alguns dos colegas do seu DP – o Medeiros, o Bellochio, o Neto – foram também vê-lo, levando jornais, revistas, frutas e se oferecendo para ajudá-lo no que fosse possível. Impressionados com o aspecto do colega, deixaram o hospital, compungidos, porque o Matsumoto era mesmo querido.

    – Olha, parceiro – disse o Medeiros com amargura. – Dizem que Deus escreve direito por linhas tortas... Mas nesse caso, fez uma cagada...

    – É mesmo. Se Deus fosse justo, devia é ter poupado o Serginho e fodido o Morganti – rosnou o Bellochio.

    Quanto ao Morganti, não foi ver o parceiro no hospital. Talvez porque estivesse envergonhado de sua participação no episódio – pensou Matsumoto. Afinal, o acidente todo se devia à sua ação intempestiva. Mas era melhor assim: como não gostava dele, preferia não vê-lo. Também recebeu uma visita do doutor Ledesma, que não deixou de fazer o discurso de sempre – esses meliantes terão uma resposta à altura. Vamos promover uma diligência, etc., etc.. E, por fim, uma visita da esposa.

    Havia conhecido Matilde num salão de cabeleireiro na Liberdade, onde era manicure. Tinha se apaixonado por seus cabelos loiros, por seu corpo bem feito. Estavam casados há três anos, mas o casamento não ia nada bem. E um sinal disso era aquela visita tardia. Matilde vivia se queixando do dinheiro escasso, da vida apertada e sem sal que levavam:

    – Sempre pensei que policial ganhava bem. Tem um, amigo do meu pai, que anda sempre com carro importado. E a gente com esse Corsinha...

     Adiantava explicar a ela que o Janine era um dos investigadores mais corruptos da polícia? Que vivia achacando putas, cafetões, traficantes de drogas? Não, não adiantava explicar, que ela ia achar que era despeito dele. Voltando a casa, depois do expediente, sempre a encontrava comendo chocolates, diante da tevê. Quando lhe perguntava se não havia janta, dizia, se espreguiçando como uma gata:

    – Ah, benhê, tava cansada, pega o resto do almoço na geladeira.

     No começo, costumava reclamar, depois, se habituou com isso. Nem mais perguntava pela janta. Antes de subir para o apartamento, ia comer no boteco da esquina. Não bastasse essa falta de cuidados com a casa, ela o vinha rejeitando na cama, com a desculpa de menstruações, palpitações, indisposições. Quando insistia em que deviam ter um filho, Matilde rebatia, dizendo que não estava preparada e que, ainda por cima, não tinham condições nem mesmo para sustentar a eles próprios. Quanto mais para pensar num filho! Ora, só faltava essa – reclamava ela, com indignação. E vinham outras reprimendas, queixas, tornando a vida do investigador, insuportável. E o pior é que gostava dos seus cabelos loiros, dos fartos seios, da bundinha empinada.

    Quando, afinal, foi visitá-lo no hospital, a Matilde não conseguiu reprimir a repulsa pelo aspecto do marido. Matsumoto estava quase só pele e osso, com bandagens no rosto e no cotovelo.

    – Então, você perdeu um olho e um pedaço do braço...

    Ele ficou em silêncio.

    – Quer dizer também que lhe aposentaram...?

    Enquanto permanecia ao lado do marido, pensamentos desencontrados corriam a cabeça de Matilde. Está certo, o Matsumoto fazia todas suas vontades, mas era fechado como um cofre, de pouco conversa e de poucos sorrisos. Não tinham nada em comum: ele, ao contrário dela, detestava novelas, música sertaneja, pagode, sambão. E quando começou a fazer Direito à noite, para prestar concurso para Delegado, aí é que não saíam de casa para nada. Que vida mais chata, meu Deus! Se soubesse disso, nunca que tinha casado. Era tão bom trabalhar no salão de cabeleireiro, ouvindo as fofocas, paquerando os clientes. Agora que ele estava aleijado, as coisas deviam piorar ainda mais. Um marido caolho e maneta! Não bastasse a vergonha por que ia passar, ainda teria que lhe servir de enfermeira. Ajudá-lo a se lavar, a comer, a se levantar... Sem contar que sabia que, aposentado por invalidez, ele ganharia menos, não haveria mais promoções. Imaginava a vida de privações que teriam pela frente. Eu, hein! Um imprestável em casa – pensou, vincando o rosto. Ela, que ainda era jovem, na força da idade. Quantas e quantas cantadas não recebia na rua... O Jorginho, que trabalhava como corretor na Imobiliária Interlagos, vivia dando em cima dela. Pelas histórias que contava, logo, logo, estaria rico, graças aos negócios que vinha projetando, um deles, uma pousada em Ilhéus. Separado, sem filhos, dizia que estava à procura de uma mulher que quisesse compartilhar uma vida de realizações com ele.

    – E quer saber de uma coisa, Matilde, você se encaixa nesse perfil... – disse-lhe um dia, quando tomavam um chope.

    – Você não me conhece... E depois, sou casada.

    – E daí? Não vai me dizer que gosta do japonês?

    – Gostar até que gosto, mas, pra ser sincera, não tenho aquela paixão...

    E o Jorginho continuava a lhe soprar

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