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Retrato de uma desconhecida
Retrato de uma desconhecida
Retrato de uma desconhecida
E-book500 páginas7 horas

Retrato de uma desconhecida

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Sobre este e-book

«UMA VOZ INCONTORNÁVEL A NÍVEL MUNDIAL DO ROMANCE DE ESPIONAGEM.»
THE WASHINGTON POST
«Ler o último livro de Gabriel Allon é como visitar um velho amigo. Mais uma proeza do grande mestre.»
Bob Woodward
«Silva é um escritor exímio.»
James Patterson
«Uma evasão estival cheia de inteligência.»
Kirkus
«O argumento é prodigioso, mas o verdadeiro chamariz do livro é o seu olhar meticulosamente minucioso sobre a arte da falsificação.»
Booklist
«Poucas experiências de leitura me emocionam mais do que abrir o novo romance de Gabriel Allon a cada verão.»
CrimeReads
«Silva obsequia-nos sempre com uma obra-prima.»
Oklahoma City Friday
Na nova e deslumbrante obra-prima de Daniel Silva, autor número um do top de vendas do The New York Times, Gabriel Allon embrenha-se numa aventura trepidante para descobrir o maior falsificador de arte de todos os tempos.
Após o seu afastamento dos serviços secretos israelitas, o lendário espião e restaurador de arte Gabriel Allon instala-se discretamente em Veneza, o único lugar onde conseguiu ter paz. A sua bela esposa, Chiara, dirige a Restauro Tiepolo e os seus dois filhos de tenra idade frequentam uma scuola elementare do bairro. Enquanto isso, Gabriel dedica os dias a deambular pela ruas e pelos canais da cidade aquática, libertando-se dos demónios do seu passado trágico e violento.
Mas quando Julian Isherwood, o extravagante marchant de arte londrino, lhe pede para investigar as circunstâncias que rodeiam a redescoberta e lucrativa venda de um quadro centenário, Gabriel não demora a descobrir que a obra em questão, o retrato de uma mulher anónima atribuído a Anton van Dyck, é quase com toda a certeza uma falsificação feita com uma mestria diabólica. Para encontrar a misteriosa personagem que pintou o quadro — e desvendar uma fraude multimilionária na cúspide do mundo da arte —, Gabriel arquiteta um dos planos mais complexos da sua carreira. E para ser bem-sucedido, vai ter de se converter na imagem especular do homem que persegue: o maior falsificador de quadros da história.
Elegante, sofisticado e dotado de um argumento brilhante, o novo romance de Daniel Silva é uma viagem fascinante ao lado escuro do mundo da arte. Desde o elegante começo até às avassaladoras reviravoltas do seu clímax, Retrato de uma desconhecida é uma das melhores histórias de roubos jamais escritas. E mais uma prova de que, dentro do género da intriga e do suspense internacionais, Daniel Silva é inigualável.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mar. de 2023
ISBN9788491398080
Retrato de uma desconhecida
Autor

Daniel Silva

Daniel Silva is the award-winning, #1 New York Times bestselling author of The Unlikely Spy, The Mark of the Assassin, The Marching Season, The Kill Artist, The English Assassin, The Confessor, A Death in Vienna, Prince of Fire, The Messenger, The Secret Servant, Moscow Rules, The Defector, The Rembrandt Affair, Portrait of a Spy, The Fallen Angel, The English Girl, The Heist, The English Spy, The Black Widow, House of Spies, The Other Woman, The New Girl, The Order, and The Collector. He is best known for his long-running thriller series starring spy and art restorer Gabriel Allon. Silva’s books are critically acclaimed bestsellers around the world and have been translated into more than thirty languages. He lives with his wife, television journalist Jamie Gangel, and their twins, Lily and Nicholas.

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    Pré-visualização do livro

    Retrato de uma desconhecida - Daniel Silva

    Editado pela HarperCollins Ibérica, S. A.

    Avda. de Burgos, 8B

    28036 Madrid

    Retrato de uma desconhecida

    Título original: Portrait of an Unknown Woman

    © 2022, Daniel Silva

    © 2023, para esta edição da HarperCollins Ibérica, S.A.

    Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, USA

    © Tradutor: Filipa Velosa

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, USA

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho da capa: Darren Holt, HarperCollins Design Studio

    Imagens da capa: O rio Sena e a Pont au Change de Kryssia Campos/Getty Images; o resto das imagens são de Shutterstock

    ISBN: 9788491398080

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Créditos

    Dedicação

    Citação

    PRIMEIRA PARTE: Craquelê

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    SEGUNDA PARTE: Desenho subjacente

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Capítulo 28

    Capítulo 29

    Capítulo 30

    Capítulo 31

    Capítulo 32

    Capítulo 33

    Capítulo 34

    Capítulo 35

    Capítulo 36

    Capítulo 37

    Capítulo 38

    Capítulo 39

    Capítulo 40

    Capítulo 41

    Capítulo 42

    Capítulo 43

    Capítulo 44

    Capítulo 45

    Capítulo 46

    TERCEIRA PARTE: Pentimento

    Capítulo 47

    Capítulo 48

    Capítulo 49

    Capítulo 50

    Capítulo 51

    Capítulo 52

    Capítulo 53

    Capítulo 54

    Capítulo 55

    Capítulo 56

    Capítulo 57

    Capítulo 58

    Capítulo 59

    Capítulo 60

    Capítulo 61

    Capítulo 62

    Capítulo 63

    Capítulo 64

    Capítulo 65

    Capítulo 66

    Capítulo 67

    Capítulo 68

    Capítulo 69

    Capítulo 70

    QUARTA PARTE: Revelação

    Capítulo 71

    Capítulo 72

    Capítulo 73

    Capítulo 74

    Capítulo 75

    Nota do autor

    Agradecimentos

    Endnotes

    Se gostou deste livro…

    Para Burt Bacharach

    E, como sempre, para a minha esposa, Jamie, e para os meus filhos, Lily e Nicholas

    Nem tudo o que luz é ouro.

    WILLIAM SHAKESPEARE,

    O Mercador de Veneza

    PRIMEIRA PARTE

    Craquelê

    1

    Mason’s Yard

    Em qualquer outro dia, Julian tê-la-ia atirado diretamente para o caixote do lixo. Ou, melhor ainda, tê-la-ia inserido no triturador de papel profissional de Sarah. Durante o longo e desolador inverno da pandemia, no qual tinham vendido um único quadro, ela usara a maquineta para reduzir impiedosamente os volumosos arquivos da galeria. Julian, que ficara traumatizado com o projeto, temera que, quando Sarah não tivesse mais registos de vendas e documentos de expedição inúteis para destruir, fosse a sua vez de ir parar à geringonça. Deixaria este mundo como um minúsculo paralelogramo de papel amarelecido, transportado para a reciclagem com os restantes resíduos da semana. Na vida seguinte, regressaria como uma chávena de café amiga do ambiente. Não sem alguma justificação, supunha que houvesse piores destinos.

    A carta chegara à galeria numa sexta-feira chuvosa do final de março, endereçada a MISTER JULIAN ISHERWOOD. Não obstante, Sarah abrira-a. Como antiga agente clandestina da CIA, não tinha quaisquer reservas em ler a correspondência alheia. Intrigada, colocara-a na secretária de Julian, juntamente com vários itens irrelevantes do correio dessa manhã, o único género de correspondência que, habitualmente, permitia que ele visse. Ele leu-a, pela primeira vez, ainda vestido com a sua gabardina a pingar e com os abundantes caracóis grisalhos desalinhados pelo vento. Eram onze e meia, o que, por si só, era digno de nota. Hoje em dia, Julian raramente punha um pé na galeria antes do meio-dia. Isso dava-lhe, precisamente, tempo suficiente para incomodar um pouco antes de embarcar no período de três horas que reservava diariamente para o seu almoço.

    A sua primeira impressão da carta foi que a autora, uma tal Madame Valerie Bérrangar, tinha a caligrafia mais requintada que vira em muito tempo. Ao que parecia, reparara no recente artigo do Le Monde sobre a venda multimilionária levada a cabo pela Isherwood Fine Arts de Retrato de uma desconhecida, óleo sobre tela, 115 por 92 centímetros, do pintor barroco flamengo Anthony van Dyck. Aparentemente, a Madame Bérrangar tinha preocupações quanto à transação, preocupações essas que desejava discutir com Julian pessoalmente, visto serem de natureza legal e ética. Estaria à sua espera no Café Ravel, em Bordéus, às quatro horas da tarde de segunda-feira. Desejava que Julian fosse sozinho.

    — O que é que achas? — perguntou Sarah.

    — É óbvio que está completamente louca. — Julian mostrou a carta manuscrita, como se isso provasse o seu argumento. — Como é que isto chegou aqui? Através de pombo-correio?

    — DHL.

    — A guia de transporte tinha a morada do remetente?

    — Ela usou a morada de uma DHL Express, em Saint-Macaire. Fica a cerca de cinquenta quilómetros…

    — Sei onde fica Saint-Macaire — disse Julian, arrependendo-se imediatamente do seu tom abrupto. — Porque é que tenho a terrível sensação de que estou a ser chantageado?

    — Não parece chantagista.

    — Aí é que estás enganada, minha flor. Todos os chantagistas e extorsionistas que alguma vez conheci tinham modos impecáveis.

    — Nesse caso, talvez devêssemos ligar à Polícia Metropolitana.

    — Envolver a polícia? Perdeste a cabeça?

    — Pelo menos, mostrá-la ao Ronnie.

    Ronald Sumner-Lloyd era o dispendioso advogado de Julian, em Berkeley Square.

    — Tenho uma ideia melhor — disse ele.

    Foi nesse momento, às 11h36, com Sarah a observá-lo com ar reprovador, que Julian balançou a carta sobre o seu antigo caixote do lixo metálico, uma relíquia dos tempos gloriosos da galeria, quando esta ainda se situava na elegante New Bond Street (ou New Bondstrasse, como fora conhecida nalguns setores do ramo). Por mais que tentasse, parecia não conseguir deixar que aquela maldita coisa lhe escorregasse dos dedos. Ou talvez, pensou mais tarde, a carta da Madame Bérrangar se tivesse agarrado a ele.

    Colocou-a de lado, reviu a restante correspondência matinal, retribuiu alguns telefonemas e interrogou Sarah sobre os pormenores de uma venda pendente. Depois, não tendo mais nada para fazer, dirigiu-se ao Dorchester para almoçar. Fez-se acompanhar por alguém que trabalhava para uma venerável leiloeira londrina, obviamente do sexo feminino, recentemente divorciada, sem filhos, demasiado jovem para ele, mas não de uma forma inapropriada. Julian deslumbrou-a com o seu conhecimento sobre os pintores italianos e holandeses do Renascimento e entreteve-a com historietas da sua bravura aquisitiva. Era uma personagem que representava com modesto sucesso há mais tempo do que conseguia precisar. Era o incomparável Julian Isherwood, Julie para os amigos, Julie Malandro para os seus cúmplices no ocasional crime da bebida. Era absolutamente leal, excessivamente crédulo e inglês até à medula. Tão inglês como o chá das cinco e os dentes podres, como gostava de dizer. E, contudo, se não fosse a guerra, teria sido uma pessoa completamente diferente.

    De volta à galeria, descobriu que Sarah colara um post-it fúcsia à carta da Madame Bérrangar, aconselhando-o a reconsiderar. Leu-a uma segunda vez, lentamente. O seu tom era tão formal quanto o grosso papel semelhante a linho no qual estava escrita. Até mesmo Julian foi forçado a admitir que ela soava completamente razoável, e não, de todo, como uma extorsionista. Decerto, pensou, não perderia nada em, simplesmente, ouvir o que ela tinha para dizer. No mínimo, a viagem conceder-lhe-ia uma trégua muito necessária face à sua avassaladora carga de trabalho na galeria. Para além disso, a previsão meteorológica para Londres era de vários dias de frio e chuva praticamente ininterruptos. No entanto, no sudoeste de França, já era primavera.

    Uma das primeiras ações de Sarah, após ter começado a trabalhar na galeria, fora informar Ella, a deslumbrante, mas inútil, rececionista, de que os seus serviços já não eram necessários. Sarah nunca se dera ao trabalho de contratar um substituto. Era mais do que capaz, dissera, de atender o telefone, responder aos e-mails, gerir a agenda e abrir o trinco da porta perpetuamente trancada de Mason’s Yard, para que os visitantes subissem até ao andar superior.

    Porém, traçou o limite nos preparativos de viagem de Julian, embora tivesse consentido em espreitar sobre o seu ombro enquanto ele próprio realizava essa tarefa, pelo menos para garantir que ele não reservava, acidentalmente, um bilhete no Expresso do Oriente para Istambul, em vez de um bilhete no Eurostar para Paris. Dali, eram umas escassas duas horas e catorze minutos de TGV até Bordéus. Julian comprou, corretamente, um bilhete de primeira classe e, depois, reservou uma suíte júnior no InterContinental (para duas noites, por via das dúvidas).

    Concluída a tarefa, encaminhou-se para o bar do Wiltons para uma bebida com Oliver Dimbleby e Roddy Hutchinson, amplamente considerados os mais infames negociantes de arte de Londres. Uma coisa levou a outra, o que normalmente acontecia sempre que Oliver e Roddy estavam envolvidos, e já passava das duas da manhã quando, finalmente, Julian caiu na cama. Passou o sábado a tratar da ressaca e dedicou grande parte do domingo a fazer a mala. Em tempos, teria considerado normal entrar no Concorde apenas com uma pasta e uma rapariga bonita. No entanto, subitamente, os preparativos para uma viagem através do Canal da Mancha exigiam todos os seus poderes de concentração. Supunha que se tratasse de mais uma indesejada consequência do envelhecimento, tal como a sua alarmante distração, os estranhos sons que emitia ou a aparente incapacidade para atravessar uma divisão sem embater em qualquer coisa. Tinha a postos uma lista de desculpas autodepreciativas que explicavam a sua humilhante imperícia. Nunca fora do tipo atlético. A culpa fora do maldito candeeiro. Fora a mesa de apoio que o atacara a ele.

    Dormiu mal, como ocorria frequentemente na noite que antecedia uma viagem importante, e acordou com a incómoda sensação de que estava prestes a cometer mais um erro, numa longa sequência de erros pavorosos. Contudo, o seu humor melhorou, quando o Eurostar emergiu do Eurotúnel e atravessou velozmente os campos verde-acinzentados de Pas-de-Calais em direção a Paris. Apanhou o métro para ir da Gare du Nord até à Gare Montparnasse e desfrutou de um almoço razoável na carruagem-bar do TGV, enquanto a luz para lá da sua janela assumia, gradualmente, as propriedades de uma paisagem de Cézanne.

    Recordou, com uma clareza surpreendente, o instante em que vira, pela primeira vez, esta deslumbrante luz do sul. Na altura, tal como agora, encontrava-se a bordo de um comboio vindo de Paris. O seu pai, o judeu alemão e negociante de arte Samuel Isakowitz, estava sentado à sua frente, na carruagem. Lia um jornal do dia anterior, como se nada houvesse de invulgar. A mãe de Julian, com as mãos apertadas sobre os joelhos, fitava o ar de modo inexpressivo.

    Escondidas na bagagem sobre as suas cabeças e enroladas em folhas protetoras de papel de cera, havia várias pinturas. O pai de Julian deixara algumas obras de somenos importância para trás, na sua galeria da Rue la Boétie, no elegante oitavo arrondissement. A maior parte do restante inventário já estava escondida no château que ele alugara, a leste de Bordéus. Julian permaneceu ali até ao terrível verão de 1942, quando dois pastores bascos o ajudaram a atravessar os Pirenéus até à neutral Espanha. Em 1943, os seus pais foram presos e deportados para o campo de extermínio nazi, em Sobibor, onde, à chegada, foram assassinados na câmara de gás.

    A estação de Saint-Jean, em Bordéus, jazia rigidamente no final da Cours de la Marne, com o rio Garona ao fundo. O painel das partidas, na zona renovada das bilheteiras, era um aparelho moderno (o educado aplauso das atualizações desaparecera), mas o exterior de estilo Beaux-Arts, com os seus dois proeminentes relógios, era como Julian o recordava. Tal como os edifícios cor de mel, de estilo Luís XV, que ladeavam as avenidas que percorreu velozmente, na parte de trás de um táxi. Algumas fachadas eram tão claras que pareciam brilhar com uma luz interior. Outras estavam enegrecidas pela sujidade. Era a qualidade porosa da pedra local, explicara o seu pai. Absorvia a fuligem do ar como uma esponja e, tal como os quadros a óleo, exigia uma limpeza ocasional.

    Por obra e graça de algum milagre, o hotel não extraviara a sua reserva. Depois de depositar uma gorjeta excessivamente generosa na palma da mão do bagageiro imigrante, pendurou a roupa no armário e retirou-se para a casa de banho, numa tentativa de remediar o seu aspeto desmazelado. Já passava das três quando se rendeu. Trancou os objetos de valor no cofre do quarto e, por um momento, ponderou se deveria ou não levar a carta da Madame Bérrangar para o café. Uma voz interior (a do pai, presumiu) aconselhou-o a deixá-la para trás, escondida entre a bagagem.

    A mesma voz instruiu-o para que levasse consigo a pasta, já que esta lhe conferiria uma pátina de autoridade completamente injustificada. Carregou-a ao longo da Cours de l’Intendance, passando por uma fileira de lojas exclusivas. Não havia automóveis, apenas peões, ciclistas e lustrosos elétricos que deslizavam sobre os carris de aço, praticamente em silêncio. Julian prosseguiu num ritmo vagaroso, com a pasta na mão direita e a mão esquerda enfiada no bolso, juntamente com o cartão de acesso ao seu quarto de hotel.

    Seguiu um elétrico que dobrou uma esquina e continuou pela Rue Vital Carles. Precisamente à sua frente, erguiam-se os dois pináculos góticos da Catedral de Bordéus, rodeada pela calçada desgastada de uma praça desafogada. O Café Ravel ocupava o canto noroeste. Não era o tipo de local frequentado pela maioria dos bordaleses, mas tinha uma localização central e era fácil de encontrar. Julian presumia que fosse esse o motivo da escolha da Madame Bérrangar.

    A sombra projetada pelo Hôtel de Ville escurecia a maioria das mesas do café, mas a mais próxima da catedral estava ensolarada e livre. Julian sentou-se e, pousando a pasta aos seus pés, observou os restantes clientes. Com a possível exceção do homem sentado três mesas à sua direita, nenhum parecia ser francês. Os outros todos eram visitantes, essencialmente do género que viaja em pacotes turísticos. Julian era a pessoa que mais destoava no café: de calças de flanela e casaco desportivo cinzento, parecia uma personagem de um romance de E. M. Forster. Pelo menos, ela não teria qualquer dificuldade em identificá-lo.

    Pediu um café crème, antes de cair em si e pedir, em vez disso, meia garrafa de um branco de Bordéus, estupidamente gelado, com dois copos. O empregado de mesa trouxe o pedido, enquanto os sinos da catedral dobravam as quatro horas. Instintivamente, Julian afagou a lapela do casaco, enquanto os seus olhos perscrutavam a praça. Porém, às quatro e meia, enquanto as sombras se alongavam, rastejando sobre a sua mesa, a Madame Valerie Bérrangar continuava sem aparecer.

    Quando Julian terminou o que restava do vinho, eram quase cinco horas. Pagou a conta em dinheiro e, agarrando a sua pasta, deslocou-se de mesa em mesa, como um pedinte, repetindo o nome da Madame Bérrangar e recebendo como resposta apenas olhares inexpressivos.

    O interior do café estava deserto, à exceção do homem atrás do antigo balcão de zinco. Não se lembrava de ninguém chamado Valerie Bérrangar, mas sugeriu que Julian deixasse o seu nome e número de telefone.

    — Isherwood — disse ele, quando o barman semicerrou os olhos, perante as linhas ininteligíveis, rabiscadas no verso de um guardanapo. — Julian Isherwood. Estou hospedado no InterContinental.

    No exterior, os sinos da catedral estavam mais uma vez a tocar. Julian seguiu uma pomba que atravessava a calçada da praça e, depois, virou para a Rue Vital Carles. Passado um momento, apercebeu-se de que estava a repreender-se por ter feito todo o caminho até Bordéus para nada (e por ter permitido que aquela mulher, aquela Madame Bérrangar, despertasse em si memórias indesejadas do passado).

    — Como é que ela se atreve? — gritou, sobressaltando um pobre transeunte. A sua recente propensão para proferir em voz alta os pensamentos íntimos que lhe passavam pela cabeça era outra novidade inquietante causada pelo avançar dos anos.

    Finalmente, os sinos emudeceram e o agradável murmúrio ténue da cidade antiga regressou. Um elétrico deslizou silenciosamente junto dele. Julian, cuja raiva começava a diminuir, deteve-se perante uma pequena galeria de arte e observou, com consternação profissional, os quadros de inspiração impressionista da montra. Apercebeu-se vagamente do som de uma mota que se aproximava. Não era uma scooter, pensou. Não com um ruído de motor assim. Era uma daquelas bestas baixas, conduzidas por homens que envergavam fatos especiais, resistentes ao vento.

    O proprietário da galeria veio à porta e convidou Julian para entrar e observar mais de perto o seu inventário. Recusando o convite, Julian prosseguiu ao longo da rua, rumo ao hotel, carregando a pasta na mão esquerda, como era habitual. O volume do motor da mota aumentara bruscamente e o seu registo estava meio tom mais alto. Subitamente, Julian reparou numa mulher mais velha (indubitavelmente, uma sósia da Madame Bérrangar) que apontava para ele e gritava algo em francês que não conseguiu perceber.

    Temendo ter proferido, mais uma vez, algo inapropriado, deu meia-volta e viu a mota a aproximar-se velozmente de si, com uma mão enluvada esticada na direção da pasta. Puxou-a para o peito e, com uma pirueta, desviou-se do caminho da mota, embatendo diretamente contra o metal frio de um objeto alto e imóvel. Enquanto jazia no passeio, com a cabeça a rodopiar, viu vários rostos a pairar sobre si, todos eles exibindo expressões de pena. Alguém sugeriu chamar uma ambulância, outra pessoa os gendarmes. Humilhado, Julian lançou mão a uma das suas desculpas sempre prontas a usar. Não fora culpa sua, explicou. O maldito candeeiro é que o atacara a ele.

    2

    Veneza

    Foi Francesco Tiepolo, junto do túmulo de Tintoretto, na igreja de Madonna dell’Orto, que vaticinou que, um dia, Gabriel haveria de regressar a Veneza. O comentário não foi uma vã especulação, tal como Gabriel veio a descobrir, algumas noites mais tarde, durante um jantar à luz das velas com a sua bela e jovem esposa, na ilha de Murano. Apresentou várias objeções ponderadas ao plano, sem convicção nem êxito, e, no rescaldo de um eletrizante conclave em Roma, fechou-se o acordo. Os termos equitativos deixaram todos felizes. Principalmente, Chiara. No que dizia respeito a Gabriel, mais nada importava.

    Admitia que tudo fazia muito sentido. Afinal, Gabriel fizera a sua formação prática em Veneza e restaurara, sob pseudónimo, muitas das suas maiores obras-primas. Ainda assim, o acordo não estava isento de potenciais armadilhas, incluindo o organograma da Restauro Tiepolo, a mais proeminente empresa do ramo na cidade. Segundo os termos do acordo, Francesco continuaria a ser o timoneiro até se reformar, momento em que Chiara, veneziana de nascimento, assumiria o controlo. Entretanto, ocuparia a posição de diretora-geral e Gabriel assumiria o cargo de diretor do departamento de pintura. Para todos os efeitos, isso significava que trabalharia para a sua esposa.

    Gabriel aprovou a compra de um luxuoso piano nobile com quatro quartos e vista para o Grande Canal, em San Polo, mas, à exceção disso, deixou o planeamento e execução da iminente mudança nas mãos extremamente capazes de Chiara. Ela supervisionou a renovação e decoração do apartamento à distância, a partir de Jerusalém, enquanto Gabriel cumpria o que restava do seu mandato na Avenida Rei Saul. Os meses finais passaram rapidamente (parecia haver sempre mais uma reunião na qual participar ou mais uma crise para evitar) e, no final do outono, embarcou no que um célebre colunista do Haaretz descreveu como «a longa despedida». Os eventos abrangeram desde cocktails e jantares carregados de elogios até uma festa de arromba no Hotel King David que contou com a presença de burocratas da espionagem do mundo inteiro, incluindo o poderoso chefe da Mukhabarat jordana e os seus homólogos do Egito e dos Emirados Árabes Unidos. A sua presença era a prova viva de que Gabriel, que cultivara parcerias de segurança por todo o mundo árabe, deixara uma marca indelével numa região dilacerada por décadas de guerra. Apesar de todos os seus problemas, o Médio Oriente mudara para melhor, durante o seu mandato.

    Solitário por natureza e desconfortável em ambientes apinhados de gente, Gabriel considerou insuportável tanto alvoroço. Na verdade, preferiu as noites pacatas que passou com os membros da sua equipa, homens e mulheres com quem executara algumas das mais célebres operações da história de um serviço célebre. Pediu perdão a Uzi Navot. Deu conselhos profissionais e matrimoniais a Mikhail Abramov e Natalie Mizrahi. Chorou a rir enquanto contava histórias hilariantes sobre os três anos em que vivera infiltrado, na Europa Ocidental, com o hipocondríaco Eli Lavon. Dina Sarid, arquivista do terrorismo palestiniano e islâmico, implorou a Gabriel para que lhe concedesse uma série de entrevistas de despedida, a fim de registar as suas façanhas numa história oficial não-confidencial. Sem surpresa, ele recusou. Não desejava pensar no passado, disse-lhe. Apenas no futuro.

    Dois agentes da sua equipa, Yossi Gavish, da divisão de Investigação, e Yaakov Rossman, da divisão de Operações Especiais, eram vistos como os seus mais prováveis sucessores. No entanto, ambos ficaram exultantes por saber que, em vez de um deles, Gabriel escolhera Rimona Stern, chefe da divisão de Recolha de Informação. Numa tempestuosa tarde de sexta-feira, em meados de dezembro, tornou-se a primeira diretora-geral da história do Departamento. E Gabriel, após pespegar a sua assinatura numa pilha de documentos relativos à sua modesta pensão e às terríveis consequências que sofreria, se alguma vez divulgasse algum dos segredos armazenados na sua cabeça, tornou-se, oficialmente, o espião reformado mais famoso do mundo. Terminado o seu despojo ritual, percorreu a Avenida Rei Saul, de cima a baixo, apertando mãos e secando pómulos marejados de lágrimas. Assegurou às suas desoladas tropas que não seria a última vez que o veriam, que tencionava continuar envolvido no ofício. Ninguém acreditou nele.

    Nessa noite participou numa última reunião, desta vez na costa do Mar da Galileia. Ao contrário dos que o antecederam, o encontro foi por vezes litigioso, embora no final se tenha estabelecido uma espécie de paz. Na manhã seguinte, fez uma peregrinação à campa do filho, no Monte das Oliveiras, bem como ao hospital psiquiátrico, próximo da antiga povoação árabe de Deir Yassin, onde a mãe da criança residia, numa prisão da memória e num corpo devastado pelo fogo. Com a bênção de Rimona, a família Allon voou para Veneza no Gulfstream do Departamento e, às três horas dessa tarde, depois de uma travessia ventosa da laguna, a bordo de um resplandecente táxi aquático, chegou à sua nova casa.

    Gabriel dirigiu-se diretamente à grande e luminosa sala que reclamara como seu estúdio e, nela, encontrou um cavalete italiano antigo, dois candeeiros de trabalho de halogéneo e um carrinho de alumínio repleto de pincéis de zibelina Winsor & Newton, pigmento, aglutinante e dissolvente. Ausente, estava o seu velho leitor de CD portátil pintalgado de tinta. No seu lugar, havia um sistema de som fabricado na Grã-Bretanha e um par de colunas de chão. A sua extensa coleção de música estava organizada por género, compositor e artista.

    — O que é que achas? — perguntou Chiara, à entrada da porta.

    — Os concertos para violino de Bach estão na secção de Brahms. Fora isso, está absolutamente…

    — Fantástico, acho eu.

    — Como é que conseguiste fazer isto tudo estando em Jerusalém?

    Ela fez um gesto desdenhoso com a mão.

    — Sobrou algum dinheiro?

    — Não muito.

    — Vou arranjar algumas encomendas particulares, depois de nos instalarmos.

    — Receio que isso esteja fora de questão.

    — Porquê?

    — Porque não vais fazer nenhum trabalho, seja ele qual for, até teres a oportunidade de descansar e recuperar devidamente. — Entregou-lhe uma folha de papel. — Podes começar com isto.

    — Uma lista de compras?

    — Não há comida em casa.

    — Pensava que era suposto estar a descansar.

    — E estás. — Sorriu. — Demora o tempo que te apetecer, querido. Desfruta de fazer algo normal, para variar.

    O supermercado mais próximo era o Carrefour, próximo da igreja de Frari. O nível de stress de Gabriel pareceu reduzir-se um pouco, com cada item colocado no cesto verde-lima. Ao regressar a casa, viu, apenas com interesse passageiro, as últimas notícias do Médio Oriente, enquanto, na luxuosa cozinha do apartamento, Chiara preparava o jantar, cantarolando suavemente para si própria. Terminaram o que restava do Barbaresco na açoteia, aninhados num estreito abraço, para combater o ar frio de dezembro. Por baixo deles, as gôndolas balouçavam nos ancoradouros. Ao longo da curva suave do Grande Canal, a Ponte de Rialto resplandecia, banhada pela luz dos holofotes.

    — E se eu pintasse algo original? — perguntou Gabriel. — Seria considerado trabalho?

    — O que é que tens em mente?

    — Uma cena do canal. Ou talvez uma natureza-morta.

    — Uma natureza-morta? Que aborrecido…

    — Nesse caso, que tal uma série de nus?

    Chiara ergueu uma sobrancelha.

    — Calculo que vás precisar de uma modelo.

    — Sim — disse Gabriel, puxando-lhe o fecho do casaco. — Calculo que vá.

    Chiara esperou até janeiro, antes de assumir o seu novo cargo na Restauro Tiepolo. O armazém da empresa ficava no continente, mas os escritórios corporativos situavam-se na elegante Calle Larga XXII Marzo, em San Marco, uma viagem de dez minutos de vaporetto. Francesco apresentou-a à elite artística da cidade, soltando insinuações crípticas sobre o plano de sucessão acionado. Alguém filtrou a notícia ao Il Gazzettino e, no final de fevereiro, foi publicado um breve artigo, na secção de Cultura do jornal. Referia-se a Chiara pelo nome de solteira e salientava que o seu pai era o rabino-chefe da cada vez mais reduzida comunidade judia de Veneza. À exceção de alguns comentários maldosos de leitores, maioritariamente da extrema-direita populista, a reação foi favorável.

    O artigo não continha qualquer referência a um cônjuge ou companheiro doméstico, mencionando apenas dois filhos, aparentemente gémeos, de idade e género indeterminados. Por insistência de Chiara, Irene e Raphael foram matriculados na scuola elementare do bairro, e não numa das muitas escolas internacionais privadas de Veneza. Talvez apropriadamente, a deles tinha o nome de Bernardo Canal, o pai de Canaletto. Todas as manhãs, às oito horas, Gabriel deixava-os na entrada, regressando às três e meia para os ir buscar. As suas responsabilidades domésticas reduziam-se a isso e a uma visita diária ao Mercado de Rialto, onde comprava os ingredientes para o jantar da família.

    Proibido de trabalhar por Chiara, ou de sequer pôr um pé nos escritórios da Restauro Tiepolo, criou formas de preencher o seu vasto reservatório de tempo livre. Dedicava-se a ler livros densos. Ouvia a sua coleção de música, no seu novo sistema de som. Pintava os seus nus, recorrendo à memória, evidentemente, pois a sua modelo já não se encontrava disponível. Ocasionalmente, Chiara vinha ao apartamento «almoçar», que era como ambos denominavam as sessões vorazes em que faziam amor, a meio do dia, no glorioso quarto com vista para o Grande Canal.

    Sobretudo caminhava. Não as castigadoras caminhadas pelos penhascos do seu exílio na Cornualha, mas deambulações venezianas sem rumo, realizadas ao estilo vagaroso de um flâneur. Se tivesse vontade, visitava algum quadro que outrora restaurara, pelo menos para ver como o seu trabalho resistira à passagem do tempo. Depois, talvez entrasse num bar para tomar café e, quando estava frio, um pequeno copo de algo mais forte para aquecer os ossos. Frequentemente, um dos outros fregueses tentava meter conversa com ele sobre o tempo ou as notícias do dia. Se, em tempos, teria rejeitado essas abordagens, agora respondia-lhes com o seu próprio gracejo ou observação perspicaz, num italiano perfeito, embora com um ligeiro sotaque.

    Um a um, os seus demónios foram levantando voo e a violência do seu passado, as noites de sangue e fogo, desvaneceram-se dos seus pensamentos e sonhos. Ria-se mais facilmente. Deixou crescer o cabelo. Adquiriu um novo guarda-roupa de calças feitas à mão e casacos de caxemira condizentes com um homem da sua posição. Passado pouco tempo, mal reconhecia a figura que vislumbrava, todas as manhãs, no espelho do seu quarto de vestir. A transformação, pensou, estava quase completa. Já não era o anjo vingador de Israel. Era o diretor do departamento de pintura da Restauro Tiepolo. Chiara e Francesco tinham-lhe dado uma segunda oportunidade de vida. Desta vez, jurou que não cometeria os mesmos erros.

    No início de março, durante um período de chuvas torrenciais, pediu permissão a Chiara para começar a trabalhar. E, quando ela voltou a recusar o pedido, encomendou um iate Bavaria C42 de doze metros e passou as duas semanas seguintes a preparar o itinerário detalhado de uma viagem estival pelo Adriático e Mediterrâneo. Apresentou-o a Chiara durante um almoço particularmente satisfatório, no quarto do apartamento.

    — Devo dizer — murmurou ela, de forma aprovadora — que este foi um dos teus melhores desempenhos.

    — Deve ser de todo o descanso que estou a ter.

    — Estás?

    — Estou tão descansado que estou prestes a ficar entediado.

    — Nesse caso, talvez haja algo que possamos fazer para tornar a tua tarde um pouco mais interessante.

    — Não tenho a certeza se isso será possível.

    — Que tal uma bebida com um velho amigo?

    — Depende do amigo.

    — O Julian ligou-me para o escritório, quando eu estava a sair. Disse que estava em Veneza e queria saber se tinhas um minuto ou dois para lhe dispensar.

    — O que é que lhe disseste?

    — Que tomarias um copo com ele, depois de fazeres o que quisesses comigo.

    — Com certeza que não mencionaste essa última parte.

    — Sim, acho que sim.

    — A que horas é que ele está à minha espera?

    — Às três da tarde.

    — E as crianças?

    — Não te preocupes. Eu vou buscá-las. — Olhou de relance para o relógio de pulso. — A questão é: o que é que vamos fazer até lá?

    — Já que estás sem roupa…

    — Sim?

    — Porque é que não vens ao meu estúdio e posas para mim?

    — Tenho uma ideia melhor.

    — O quê?

    Chiara sorriu.

    — Sobremesa.

    3

    Harry’s Bar

    Sob uma cascata de água escaldante, satisfeito já o desejo, Gabriel enxaguou os últimos vestígios de Chiara da pele. As roupas jaziam espalhadas aos pés da cama desfeita, amarrotadas, com um botão da camisa arrancado. Escolheu uma indumentária limpa do quarto de vestir, vestiu-se rapidamente e desceu as escadas até ao exterior. Felizmente, havia um Número 2 encostado ao cais, na paragem de San Tomà. Foi a bordo dele até San Marco e, às três em ponto, entrou nos confins íntimos do Harry’s Bar.

    Julian Isherwood estava a fitar o telemóvel, numa mesa de canto, com um bellini meio bebido a pairar sob os lábios. Quando Gabriel se aproximou, ergueu o olhar e franziu o sobrolho, como se estivesse irritado por uma intrusão indesejada. Finalmente, as suas feições exibiram uma expressão de reconhecimento, seguida de profunda aprovação.

    — Deduzo que a Chiara não estivesse a brincar quanto à forma como vocês os dois passam a hora do almoço.

    — Isto é Itália, Julian. Demoramos, pelo menos, duas horas a almoçar.

    — Pareces trinta anos mais novo. Qual é o teu segredo?

    — Almoços de duas horas com a Chiara.

    Julian semicerrou os olhos.

    — Mas é mais do que isso, não é? Parece que foste… — A sua voz esmoreceu.

    — O quê, Julian?

    — Restaurado — respondeu, passado um momento. — Removeste o verniz sujo e reparaste os danos. É quase como se nada daquilo tivesse acontecido.

    — Não aconteceu.

    — Isso é engraçado, porque tens uma vaga semelhança com um rapaz de aspeto taciturno que entrou na minha galeria, há uns cem anos atrás. Ou terão sido duzentos?

    — Isso também nunca aconteceu. Pelo menos, não oficialmente — acrescentou Gabriel. — A caminho da saída da Avenida Rei Saul, enterrei o teu volumoso dossiê nas mais remotas profundezas do registo. Os teus laços com o Departamento estão, agora, oficialmente cortados.

    — Mas não contigo, espero.

    — Receio que tenhas de me aguentar. — O empregado de mesa levou mais dois bellinis à mesa. Gabriel ergueu o copo em jeito de saudação. — Então, o que te traz a Veneza?

    — Estas azeitonas. — Julian retirou uma azeitona da tigela no centro da mesa e, com um floreado, enfiou-a na boca. — São perigosamente

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