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O Culto Do Lobo
O Culto Do Lobo
O Culto Do Lobo
E-book531 páginas5 horas

O Culto Do Lobo

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Sobre este e-book

Narra as vivências de uma irmandade misteriosa e fascinante de feiticeiras-lobas no sul da França. Mulheres de beleza extraordinária, fortes e orgulhosas de suas existências, dedicadas, ainda que naqueles tempos da inquisição, a uma magia antiga. Após serem traídas, elas tentam manter a tradição através da nova líder e matriarca, que tem o nome celta de Urtra, uma bruxa maior. Mas isso é apenas parte do seu mistério envolvente, pois muito mais é revelado nessa história que extrapola o comum e o ordinário, mesmo para os dias atuais. E um de seus segredos é a origem de uma parte da humanidade.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de jan. de 2017
O Culto Do Lobo

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    Pré-visualização do livro

    O Culto Do Lobo - Carlos Costa França

    Lembranças de Urtra,

    Na névoa densa, os lobos moviam-se em direção ao vale profundo, despertando

    nossos sentidos humanos, ainda que insuficientes diante do dejúrio dos anjos.

    Nossos corações selvagens atraiam os poderes do mundo, mas as potências da

    Deusa velavam por nossos espíritos andarilhos, quando justamente clamávamos

    por uma verdade que não fosse sobra, que não fosse a língua dejeta da

    ignorância, repetindo breviários da hipocrisia; ou ações espúrias nos calabouços

    da crença, ou pior, o fascínio que muitos têm pela mediocridade. No sono

    intranqüilo da existência, o amor paira imenso e inoculável sobre vastidões

    imperfeitas. Que ele caia não pelo verbo, não pela palavra, não pela letra, mas

    coalhe em nossos olhares e se dissolva na têmpera da sublimidade, uma loucura:

    o amor a tudo.

    5

    6

    PRÓLOGO

    Aqui nesse recanto esquecido do mundo, fiquei conhecida

    como Marie Christine Émilie Deffand, ou mais apropriadamente,

    Madre Marie Deffand. Porém, de fato, o meu nome é Urtra, a

    feiticeira do Vale dos Lobos, este verdadeiro nome de cuja pronúncia

    vem sentindo saudades os meus ouvidos, que estiveram por muito

    tempo cativos do silêncio sublime.

    Vindo a compreender hoje, nesta noite sem lua, que a

    verdade de meus sentimentos só é superada pela coragem — a coragem

    de procurá-los incondicionalmente, mesmo sem o que parece ser a

    permissão dos dias. Tendo isto conseqüências, é claro. Uma imediata

    talvez, é o fato de me descobrir na vida desses dias mais recentes,

    poeira em suspensão, similar ao que ocorre quando uma multidão

    passa e surge no seu rastro uma nuvem disforme, como acontece

    algumas vezes, um pó escuro bruscamente levantado pelo vento para só

    depois cair nervosamente de volta ao solo. É como posso narrar a

    fragmentação do meu ser.

    Não me iludo mais com muitas coisas, mas confesso: dos

    sonhos tenho tido saudades e, às vezes, quando incrédula de tudo, da

    ingenuidade de menina. Feiticeira me fiz pelo coração e pela vontade

    e de nada posso me arrepender por ter escolhido este caminho pagão e

    solitário, vivendo à distância do mundo, dos homens e do seu Deus.

    Mas, curiosamente, sempre estando presente quando da necessidade de

    um deles.

    7

    Quero abrir definitivamente neste dia, minha alma, meu

    coração e minha mente para o mistério: limite e critério da minha vida,

    pois não alcançarei mais minhas pegadas de ontem. E agora, sôfrega,

    escrevo meus últimos rascunhos, meus últimos passos. Passos

    essencialmente em forma de palavras e de sentimentos.

    Carente de qualquer apreensão de tempos passados e sem o

    calor da juventude primaveril, ardente em entusiasmo, tentarei nestas

    linhas, forjadas na luta da pena contra o papel e no forno brando do

    meu querer, ser fiel aos meus vários amanheceres, enternecidos apenas

    no acreditar de uma existência em que todos poderiam ir à busca

    interior, à procura diligente para um encontro consigo próprio, tendo,

    quero apontar humildemente, sido alcançada esta convicção após essa

    longa vida. E hoje, absolutamente convencida, se não do mais

    importante mistério da existência humana, certamente do mais

    verdadeiro.

    Desta noite fria, não quero mais nada e nem alimentarei estas

    páginas com o que acredito, preciosas palavras. O sono me seduz,

    carregado que é da embriaguez dionisíaca. Lá fora no bosque, ouve-se

    um grasnar que se fez alto dentro da casa pela proximidade e silêncio,

    reverberando como sinos majestosos na nave central de uma igreja. Um

    pássaro faminto acabara de anunciar seu despertar noturno.

    ***

    O dia, nesta sexta feira de meados de março do ano de 1531,

    amanheceu envolto em brumas solenes para depois clarear

    completamente. O frio já não é tão intenso como foram nas primeiras

    horas do alvorecer desta manhã, pois a primavera se abrirá daqui a

    alguns dias. Minhas tarefas costumeiras estão cumpridas em grande

    parte, graças a minha disposição matinal, quando, desde mais cedo,

    8

    levantei-me para o trabalho, podendo me dedicar à escrita pelo resto do

    dia, se assim desejar. E não perdendo mais tempo com outros afazeres

    domésticos que sempre existem, ainda mais se amiúde procuramos por

    eles. Questionava-me em voz alta:

    — Onde, por Hécate, eu deixei os escritos de ontem?

    Isto, enquanto remexia os papéis depositados sobre a mesa,

    muitos ainda desordenados.  Aqui está, ... do mais verdadeiro. Pois

    bem, dando continuidade aqui mesmo, como querem a pena e a minha

    vontade permanente.

    A morte... Aliás, a boa morte, esta já me espreita na sua

    paciência e persistência dos séculos incontáveis, sendo uma realidade

    que não me é dada dominar. Mas agora, talvez com mais clareza e

    humildade, ajudada por uma noite de sono tranqüilo e revigorante,

    principia um entendimento em mim bastante sensato. Este, em

    especial, aponta para a necessidade de agradecer a sua presença

    constante, não só no agora desses dias, mas durante o que foi toda a

    minha caminhada nesta longa vida, procurando, de alguma forma,

    alcançar um juízo superior em relação a esses assuntos enigmáticos do

    destino, muito mais do que tenho me dedicado. Isto para melhor

    reconhecer que, além da minha incansável pena, que ora trêmula e

    febril rabisca este carcomido pedaço de papel, ela, a morte, é a minha

    outra companheira que sempre esteve comigo e vem me amparando no

    ocaso da minha existência. Companheira esta, diga-se, com toda

    devoção, tenaz e fiel como nenhuma outra com quem tenha convivido.

    É quando, para minha surpresa, no mesmo instante,

    debruçando-me sobre a mesa velha e gordurosa, impregnada dos

    odores mais diversos pelo lidar das ervas no passar dos anos, vagando

    ainda na tentativa da busca de recordações mais antigas, e, uma vez

    mais, revendo estes últimos pensamentos escritos no envelhecido papel,

    é que, ao me voltar, girando quase súbita e involuntariamente meu

    9

    corpo para um lado do recinto, fixando agora o olhar na pequena

    janela, esta entreaberta para fora, pude escutar claramente um recado

    trazido pela cálida brisa dos espíritos aéreos e pelo vento leste:

    "— Prepara-te, grande senhora. Muito já se cumpriu na tua

    existência e pouco ou nada resta".

    Dou fé, porém...

    Que os dias presentes se tornaram meses e foram passados

    numa rotina laboriosa, tornando-se a própria sorte da vida. Para só

    então, depois de um longo tempo, descortinar mais uma vez o caminho

    do entendimento razoável e imperecível. Contudo, não consegui sair

    ilesa desse período, por causa de uma das maiores aflições do ser

    humano — a desilusão com a vida — que, como todos sabemos, os dias

    rotineiros fazem questão de trazer maliciosamente com eles. Também

    ainda tenho que ser verdadeira até comigo mesma, um outro motivo se

    somou, este justamente, com relação a minha outra companheira, a

    morte, sobre quem tenho falado com atenção especial.

    ***

    Com o arrastar dos meses, e sem os sobressaltos costumeiros

    que o corpo acusava pela íntima aproximação da donzela da foice,

    fizera-me estranhamente e por inteira, não mais me habituar sem sua

    presença, sem seu hálito adocicado da liberdade desejada. A ponto de

    chamá-la quando não se deitava comigo ou se afastava sem aviso e, de

    livre vontade, cheguei a propor a comunhão eterna sem mais demora,

    sem mais atrasos. E ela, fingindo escutar atentamente o que

    considerava uma proposta justa, deixava-me até acreditar que estaria

    disposta naquela noite pontualmente ou no mais tardar, se esta

    sobrecarregada com sua prima, a Peste, em seus trabalhos, no

    10

    próximo alvorecer selaria os votos do sepulcro. Inclusive garantindo vir

    de forma resoluta, até porque estaria incentivada pela prima em definir

    nossa situação, fazendo-me sentir, na minha credulidade voluntária,

    bastante aliviada. Alimentando, como não poderia deixar de ser, a

    expectativa de uma solução breve. Todavia, insistentemente, não

    tomava este meu corpo. E assim, perseverantes herdeiros, passaram-se

    muitas noites em núpcias não concretizadas que, para mim, noiva

    inconformada, pareceram intermináveis. Por isso, veio acontecer o

    pior.

    Num impulso desmedido, estranho até para mim mesma,

    acostumada à serenidade das noites sem lua, à decência da idade e,

    principalmente, pela resignação alcançada, vim novamente

    inconsolada e empertigada, sob a tutela dos meus instintos, dirigir-lhe

    palavras proibidas e severas.

    — Ó senhora dos vermes imundos, o que espera? Por que a

    demora e as promessas não cumpridas, não tendes respeito pelo

    empenho de vossa palavra suja?

    Mas... Para minha surpresa e desespero, simplesmente ela se

    cala... Aparta-se com uma timidez desconcertante, beirando quase a um

    titubear pueril, mesmo em face de por trás daqueles vazados olhos

    intemporais se esconderem toda verdade do tempo implacável. E

    acontece isso, justamente no momento em que se estabelecera mútua

    confiança em nosso convívio. Quando mesmo confissões de suas

    dificuldades e limitações existenciais me eram confiadas sem restrições,

    ou ainda, de seus desejos de donzela. Que mortal poderia desconfiar

    que a morte tem seus anseios secretos e suas responsabilidades? Sei

    agora que exigi demais de sua boa vontade...

    Saibam todos, quantos puderem me ouvir! E falo especialmente

    para aqueles que ainda poderão levantar injustamente qualquer dúvida

    de sua idoneidade e respeito para com seu ofício ou em relação a atos

    11

    desonestos, numa relação fraterna, como a nossa que fora estabelecida

    por afinidade e solitude. Aprendi devotadamente, não fora de forma

    alguma descortesia de sua parte, ciosa que é sempre de suas obrigações

    e dos apelos dirigidos a ela, e sim, estariam aí, as coisas maiores do

    universo que estão acima de nós duas.

    Com isso, e diante de certas evidências, surgiu em mim uma

    inquietação — aquele mínimo de desconfiança que precede uma

    certeza — Estava claro que havia um motivo muito importante para que

    eu permanecesse viva. Talvez algo que tenha deixado de cumprir. O

    que me fez lembrar, e muito oportunamente, a matriarca Bithias que,

    uma certa feita, dissera:

    "Urtra, saiba! Ninguém é inocente de nada."

    Por conta disso, como se um raio tivesse caído sobre minha

    cabeça, abrindo-a ao meio, compreendi toda a minha situação atual.

     Sim, sua tonta! Sua loba decadente! Sua desajeitada! Como

    deixei escapar de minhas lembranças? — lastima para o vento.

    Resta uma última e importante coisa a fazer neste mundo de

    brumas que só é uma. Tenho certeza agora, está relacionada com o livro

    que conta as façanhas e as dificuldades da minha antiga ordem,

    conhecida como a Irmandade da Loba. O escrito revela os últimos

    acontecimentos vividos na tradição do fogo e da Grande Mãe Terra.

    Narrando entre outras coisas: os grandes mistérios dessa Irmandade, o

    desaparecimento precoce, nossa vida em grupo, nossas lutas e nossas

    esperanças. Por essa tradição, orgulhosamente, tornei-me a sacerdotisa

    maior e matriarca perpétua, talvez, a única sobrevivente daqueles anos

    desaparecidos para sempre.

    Sem dúvida, minha pena fiel! E por favor, desculpai-me mais

    uma vez irmã morte. Pois ainda, como percebeis, tenho os vícios da

    carne e as minhas virtudes são por demais atrasadas diante de vossa

    grandeza e sabedoria. Definitivamente então, todo esse tempo não se

    12

    constituiu só de desejos frívolos ou uma birra filosófica com a morte.

    Como não consegui enxergar isso antes? Tantas vicissitudes e loucuras

    eu tenho passado desnecessariamente...

    Ou não, velha loba Urtra?

    ***

    O tal escrito foi por mim redigido a partir de minhas

    impressões e lembranças dos fatos acontecidos naquele serviço das

    mulheres-lobas. A tarefa me foi passada pela minha matriarca e

    sacerdotisa maior, antes de mim. Tendo como condição essencial o

    mais fidedigno relato daqueles últimos dias e, posteriormente, quando

    do seu término definitivo à entrega dessas letras reservadas para alguém

    que apareceria para buscá-las e só a ela, especificamente, deveria ser

    entregue.

    Quando abandonei as vestes da igreja e fui para o campo, tive

    que enfrentar toda a sorte de vizinhos inescrupulosos e invejosos que

    estavam ali sempre dispostos de alguma forma a incriminar o seu

    próximo. Para assim, usurpar as posses da vítima ou como vingança por

    alguma contenda anterior. Seria uma condição indefensável, e

    particularmente fatídica para alguém como eu, possuir algum livro. Por

    isso, algumas vezes tive vontade de queimá-lo.

    Tantas mulheres já tinham ido para fogueira ou para forca, por

    tolices inconfessáveis, mesmo sendo totalmente inocentes das

    acusações. Por isso tudo, como ainda se escuta dizer por aí, entre os de

    boa vontade: "qualquer acontecimento suspeito e incomum recai, em

    primeiro lugar, em mulheres idosas de vida solitária". Hoje sei, de fato,

    por alguma fórmula maravilhosa da Grande Geradora do mundo que

    13

    nunca consegui me desvencilhar realmente dele, por ser ele um

    verdadeiro amuleto e protetor de todos os meus trabalhos.

    O livro envolto em pano negro do mais puro linho estava

    dentro de um pequeno baú que fora enterrado, ou melhor, guardado

    num falso assoalho no chão da cozinha, próximo ao forno de uma

    antiga cabana destruída num temporal há vários anos. Conservado lá,

    tornava a afirmar para mim mesma, por medida de precaução e

    segurança. Não obstante, nesse momento, o coração se acelera me

    dizendo de uma certa negligência pessoal. Trago então para minha

    nova morada a fim de uma pesquisa mais acurada.

    No baú, encontravam-se outros pequenos objetos pertencentes

    à Irmandade ou à Grã-mestra. Particularmente o mais valioso era uma

    jóia, o anel da grande sacerdotisa antes de mim. Peça feita em prata e

    ouro marcada com grafia estranha a corrente ou ao latim dos eruditos.

    Conforme meus conhecimentos, seria a antiga escrita egípcia dos

    deuses, sobressaindo em relevo a serpente que engolia o próprio rabo, o

    Uróboro e um pentagrama com um olho de esmeralda ao centro. Ao

    admirá-lo, senti um impulso de colocá-lo em definitivo ao redor do

    dedo indicador. Como se, desse dia em diante, já alcançasse o estado

    de maestria que, antes, eu mesma acredito prudentemente, não me

    atribuía.

    O que mais me surpreendeu fora ainda o perceptível cheiro do

    jasmim mais doce, misturado àquele pano negro na época do último

    acondicionamento. Suas capas curtidas da antiga pele de uma loba

    ressaíam pela sua tonalidade acinzentada, atenuando ligeiramente

    como numa pintura de mestres em vários matizes até o branco gelo. Ao

    abri-lo, vejo ainda com admiração a estrela prateada, bordada com fios

    delicados da melhor prata, realizada pelas mãos habilidosas da saudosa

    Cailantra. Não me escapa, mesmo já tendo visto tantas vezes, uma

    emoção forte, quase mesmo incontida, ao me lembrar de suas faces

    14

    rosadas e joviais, como dos seus risos mais vibrantes nas horas

    descontraídas. E é difícil, constatei, mesmo durante todo esse tempo,

    entender que fiquei na continuidade perturbadora do tempo.

    Enquanto todas minhas irmãs se esvaíram pelas cicatrizes do destino.

    Porém, tudo parece continuar de alguma forma nas lembranças, nas

    ações e na minha única e verdadeira herança material, este livro

    nomeado há muito pela matriarca Bithias como: "Da Claridade e Das

    Sombras".

    A pena deslizando suave entre meus dedos concorda sem

    vacilar. Ela me trata bem, e me ajuda a falar sobre as coisas mais

    diversas e tem sido fiel nestes quase três decênios, principalmente nos

    tratados herbóreos e de cura que tenho escrito e passado para os

    chamados iniciados do norte, os druidas. Todavia, faz muito tempo,

    recordando-me com saudade de que nem eles aparecem e sei que

    provavelmente não aparecerão mais. Pois muitos pereceram e outros

    tentam manter a obra viva se escondendo dos olhos gananciosos e

    corruptores.

    Minha missão foi cumprida no que pude fazer de melhor, disso

    podia até me orgulhar. Mas essa herança da Irmandade da Loba ainda

    não encontrara seu destino. Teria que ser entregue a uma pessoa em

    particular, como me fora determinado antes. E agora, com o que pensei

    ser a velhice e o fim da vida, há um desejo sincero de encontrar forças a

    todo custo para realizar esta vontade superior. Quando de um outro

    lado, também me vejo arrebatada pela possibilidade de não vê

    cumprida a intransferível tarefa, por uma total escuridão do caminho a

    seguir e que pouco posso definir pela minha própria vontade e

    consciência.

    Passa, então, meus sentimentos a se confundirem na

    confluência do passado e do que vivo agora. Por quê? Pergunto-me

    embaraçada nesta outra angústia de sentir minha própria impotência.

    15

    A pessoa nunca aparecera quando fora prometida a mim que

    apareceria algum dia. E isso agora começou a me atormentar mais

    terrivelmente do que pretendia eu mesma há poucos instantes. Será

    que cheguei até aqui apenas para alcançar esta terrível conclusão? Não

    podia acreditar nisso. Também não era o que parecia dizer minha voz

    interior. Devia confiar nessa voz, era o que de mais valor possuía.

    Buscando a serenidade das flores que se abrem na primavera e

    a quietude da madrugada. Olho novamente com intimidade para

    aquela pequena janela que, tempos atrás, conduziu o vento da

    sabedoria dos séculos, a partir do portal leste. Durante a maior parte

    do ano, pela sua disposição particular, no avançar incansável do dia,

    projeta luz e sombras com diferentes profundidades por todo o

    ambiente. Variando grandemente a quantidade de claridade e os tons

    sombreados que a luz faz conceder de si própria quando assim

    confinada em lugares fechados, ou ainda mais ali, quando incidido

    sobre e entre anteparos de todas as formas, tamanhos e disposições. E

    não é por acaso que por essa mesma janela, novamente, vem uma

    brisa cálida penetrar com a suavidade dos perfumes das distantes

    montanhas, trazendo uma fragrância raríssima, sobretudo, acredito,

    pela importância da mensagem.

    "— O pássaro prateado voa para longe de casa em busca do

    alimento da mente e do espírito... Não tardará. Pois sua causa é nobre e

    o momento propício. Apascenta de vez tuas dúvidas, minha cara dama

    dos ventos da tarde e do frescor da primavera, nós te bem dizemos e te

    servimos e fomos servidos. Porém só as ordens angélicas te darão o éter

    universal de que poderá participar em breve. Entretanto, isso não te

    levará à sepultura, pois teu corpo foi ungido por uma graça que está

    muito além da ciência dos homens. Nós seguiremos nossas obrigações

    eternas diante da criação e voaremos por toda a Terra, como arautos

    divinos, a anunciar as verdades de agora e as de ontem. Para que todas

    16

    as criaturas, de todos os mundos, visíveis e invisíveis, não deixem de

    receber as sagradas mensagens da Deusa. Tu és também atmosfera

    dama dos ventos... E nós te abençoaremos no topo do céu. E lá

    construiremos séculos sem fim, em tua lembrança, o altar de todos os

    ventos".

    Senti-me, então, possuída por um alento maravilhoso nas asas

    de uma paz profunda. Mas esvoaçante de vitalidade por favorecer a

    expansão da consciência em diversas esferas dos mundos invisíveis.

    Gozando, tinha certeza, uma plenitude por muito tempo não

    experimentada.

    Apesar de logo em seguida, sentir-me como que desperta

    abruptamente de um transe. Tendo ocorrido, eu acredito, por

    naufragar em correntes de pensamentos contraditórios e inoportunos.

    Porém, ainda percebi que, de maneira sutil, continuava sendo

    enlaçada, agora, por um novo alento. Este bem diferente, mas como o

    outro, indescritível. Muito, é preciso esclarecer, pela exclusiva

    dificuldade de descrevê-lo aqui e neste momento. No que também

    constitui a ordinária e insuperável limitação das palavras, ainda que

    estas solícitas se ofereçam para a realização do augusto trabalho. Este,

    reafirmo, que é precisamente de desvelar em boa medida os

    sentimentos superiores para outrem. Quando quase já nem se consegue

    mais escrever, tomada que se é pelo próprio movimento dos princípios

    elevados.

    Insisto, porém...

    Procuro assim, simplesmente recostar-me com suavidade na

    cadeira acolchoada com penas de gansos (esta cadeira foi uma

    lembrança do convento a qual conservei sob a minha guarda. Qualquer

    dia desses, se me sobrar tempo, ainda me dedicarei a contar essa

    historia), localizada bem atrás, afastada da mesa de trabalho. Dirigia-me

    até ela e para aqueles lados do cômodo, ainda envolvida por certa

    17

    embriaguez do espírito, tentando atinar para essa nova revelação dos

    espíritos do ar, ao mesmo passo que buscando manter a sensação de

    quietude e elevação que passei a sentir instantes depois.

    Como isso continuava de alguma forma a aflorar dentro da

    singularidade e do poder que me envolvia, fui instantaneamente

    arrebatada para uma maior compreensão de mim mesma, compreensão

    esta, destituída de qualquer reflexão ou pensamento bem sucedido, este

    que digo, quando trabalhados a contento nos ditames da razão.

    Foi nessa condição inesperada que novamente folheei a

    primeira página do livro — Da Claridade e Das Sombras— e não foi

    por excesso, o susto manifestado nessa hora. De maneira incomum,

    logo nas suas primeiras palavras escritas, as realidades mais próximas

    pareciam emergir, flutuando como penas no ar para depois, no

    segundo instante, irem e virem de todos os cantos. Por vezes,

    misturando-se numa recriação espontânea e incompreensível de

    caminhos nunca experimentados. Em parte, isso ocorria em função da

    grande magia irradiada dessa minha história passada; sendo outra

    parte, intuía, de uma não revelada até este dia de graça; e ainda de uma

    terceira e última, mais misteriosa, quase de existência duvidosa, pelo

    impressionante sentido e origem da minha essência, os anjos caídos.

    Tudo isso estava acontecendo, quando era subitamente conduzida para

    um mundo distante e imaginário e, incrivelmente, até para mim

    mesma, testemunha daqueles acontecimentos, no próprio instante,

    desconhecidos. "Nesses dias...

    18

    PRIMEIRA PARTE

    AS TREVAS

    19

    20

    Capítulo 1 - A Fuga

    Nesses dias, no altar da loucura humana, já não restava tanto

    tempo para descanso ou confraternizações como antes ocorriam nos

    freqüentes acampamentos, ao redor, muitos deles, das sagradas

    fogueiras. Tínhamos agora, vivas saudades dos tempos mais simples em

    que nossos corações se entregavam aos mistérios sem as preocupações

    dos dias presentes. E onde tudo se passava com a vontade firme da

    liberdade, da magia revelada e naquilo que acreditávamos firmemente

    como nosso destino de sacerdotisas da Grande Loba ou da Grande

    Mãe do mundo, o que dava no mesmo.

    Nossas almas dilaceradas e, ainda mais, atraídas para a

    destruição, ia nos conduzindo sem certezas ou convicções para um

    futuro irreconciliável. Tardiamente nos demos conta do nosso

    embaraço nas intrincadas malhas do destino e como seria difícil

    reverter nossa terrível situação. Nada, aparentemente, como

    julgávamos, explicava os acontecimentos de que fomos vítimas nessa

    ocasião ou por que fomos miseravelmente tragadas pelo destino, da

    forma mais inesperada e vil, que só é esta: autorizada por uma traição.

    Quem haveria nos traído, revelando nosso local de encontro próximo

    àquela vila? Seria alguém do pequeno círculo da Irmandade ou um de

    nossos conhecidos na vila, ou até quem atendíamos com nossa magia?

    Não conseguíamos arrancar de nossos corações e mentes esta dolorosa

    questão. Até porque, poderia ser, traiçoeiramente, uma de nós. Era

    certo, houve um tempo em que dificilmente isso teria ocorrido em

    21

    nossas vidas, pois mantínhamos princípios mais vigilantes e rigorosos

    em nossa disciplina de feiticeiras, assim como, de nossa convivência

    com as pessoas estranhas à Irmandade.

    Os devas do outono aliado aos devas do inverno, nesses mais

    de mil e quatrocentos e noventa anos do salvador dos homens,

    manifestavam-se por suas garras afiadas, aguçadas eternamente nos altos

    píncaros nevados. O vento gelado fazia questão de tocar nossas faces,

    desde antes, escarnecidas nos espinhos do mundo, oferecendo-nos

    agora uma cortesia ultrajante e por demais pretensiosa, pois vinha

    suplicante de atenção íntima e duradoura, quando nenhuma

    intimidade conquistara anteriormente. Atingia os corpos, ressecando e

    querendo congelar impiedosamente a pele nas partes que se tornavam

    expostas nos atropelos de uma caminhada vigorosa.

    Certamente seria possível prever um inverno bastante rigoroso,

    como aliás, ocorrera nos últimos anos por toda aquela região. E a

    noite, particularmente, veio lembrar esses tempos. No outro inverno,

    nevara tanto que quase por toda a estação não se conseguia sair de casa.

    E quando dentro de casa, de perto da lareira.

    A abóbada celeste mostrava uma trilha única, rica e leitosa,

    descrevendo um arco fantástico de milhares de pontos luminosos.

    Talvez a confirmar o que os mais antigos diziam de uma majestosa

    estrada pavimentada pelos imortais. Um caminho maravilhoso de

    milhares de estrelas a cintilarem na soberba indiferença de toda

    condição humana, indicado naquele momento, no seu gigantesco, mas

    ilusório encontro com o horizonte sem fim. Como agora podiam se

    esconder sob um véu negro e sem vida de nuvens, prontas a

    descarregarem toda confusão caótica de tempestades furiosas?

    O que tínhamos nos tornado no presente, impossibilitava-nos

    grandemente. Pois um pequeno séqüito de feiticeiras-lobas, então, sete

    mulheres, mesmo que orgulhosas andarilhas da escuridão e do fogo,

    22

    pouco poderíamos fazer contra uma multidão enlouquecida e ignorante

    das gentes cristãs, atormentadas por seus próprios demônios.

    O silêncio era uma constante no pequeno grupo por todo o

    caminho de volta para o lugar que reconhecíamos como nosso lar.

    Mesmo aquelas mais joviais permaneciam caladas a maior parte do

    tempo, diante do que seria tenebroso lembrar e comentar em relação às

    outras companheiras, capturadas e feridas, ou mortas sob tortura. No

    entanto, esporadicamente acontecia de uma de nós verbalizar nossas

    incertezas, inquietudes e anseios, a fim, talvez, de afastar aquilo de

    nossos corações e encontrar no corpo grupal a força necessária para si

    mesma. Mas como, de fato, a virtude da inocência esperançosa não

    possuíamos mais, todas sabíamos, de um jeito ou de outro, quão grande

    infortúnio nos acercava. E como seria difícil retornar a um passado, se

    não totalmente glorioso, pelo menos vigoroso e com a tranqüilidade

    necessária para praticar e servir a grande magia do fogo salamândrico.

    A impossibilidade de ter nossa vida em grupo renovada no

    futuro vinha como uma certeza inquestionável, mesmo em face do que

    nós éramos, do que tínhamos vivenciado como experiência guerreira e

    na conquista de um poder próprio emanado da Mãe Terra e da Mãe-

    Deusa. E não menos ainda pelo que conseguimos realizar com a força

    de nossa vocação e disciplina. Que, aliás, fora essencial na fuga da cafua

    inimiga, fazendo-nos suportar, em várias ocasiões, as mais duras provas

    que o animal humano pode inventar contra a sua própria espécie.

    No episódio infernal, onde houvera os confrontos com os

    aldeões, podíamos perceber quanto ódio estes nos dispensava, quanta

    ignorância acercava-se da dita religião do amor cristão. Não

    conhecemos ali qualquer palavra ou gesto de afabilidade, caridade ou

    compaixão. Somente a necessidade brutal do sangue que corria em

    nossas carnes, fosse pelo calor sensual das uniões carnais que, em

    parte, podia ser tirado à força por estes dignos servos do Deus

    23

    cristão; fosse pelas vísceras arrancadas até o ventre, desfigurando os

    corpos já violados.

    A caminhada seguia com mais suavidade, a medida em que nos

    distanciávamos do lugar onde, na noite do dia anterior, a emboscada

    fora deflagrada. Nós procurávamos avançar para o interior da floresta,

    numa trajetória de subida contínua do pequeno monte que se

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