O Culto Do Lobo
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O Culto Do Lobo - Carlos Costa França
Lembranças de Urtra,
Na névoa densa, os lobos moviam-se em direção ao vale profundo, despertando
nossos sentidos humanos, ainda que insuficientes diante do dejúrio dos anjos.
Nossos corações selvagens atraiam os poderes do mundo, mas as potências da
Deusa velavam por nossos espíritos andarilhos, quando justamente clamávamos
por uma verdade que não fosse sobra, que não fosse a língua dejeta da
ignorância, repetindo breviários da hipocrisia; ou ações espúrias nos calabouços
da crença, ou pior, o fascínio que muitos têm pela mediocridade. No sono
intranqüilo da existência, o amor paira imenso e inoculável sobre vastidões
imperfeitas. Que ele caia não pelo verbo, não pela palavra, não pela letra, mas
coalhe em nossos olhares e se dissolva na têmpera da sublimidade, uma loucura:
o amor a tudo.
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PRÓLOGO
Aqui nesse recanto esquecido do mundo, fiquei conhecida
como Marie Christine Émilie Deffand, ou mais apropriadamente,
Madre Marie Deffand. Porém, de fato, o meu nome é Urtra, a
feiticeira do Vale dos Lobos, este verdadeiro nome de cuja pronúncia
vem sentindo saudades os meus ouvidos, que estiveram por muito
tempo cativos do silêncio sublime.
Vindo a compreender hoje, nesta noite sem lua, que a
verdade de meus sentimentos só é superada pela coragem — a coragem
de procurá-los incondicionalmente, mesmo sem o que parece ser a
permissão dos dias. Tendo isto conseqüências, é claro. Uma imediata
talvez, é o fato de me descobrir na vida desses dias mais recentes,
poeira em suspensão, similar ao que ocorre quando uma multidão
passa e surge no seu rastro uma nuvem disforme, como acontece
algumas vezes, um pó escuro bruscamente levantado pelo vento para só
depois cair nervosamente de volta ao solo. É como posso narrar a
fragmentação do meu ser.
Não me iludo mais com muitas coisas, mas confesso: dos
sonhos tenho tido saudades e, às vezes, quando incrédula de tudo, da
ingenuidade de menina. Feiticeira me fiz pelo coração e pela vontade
e de nada posso me arrepender por ter escolhido este caminho pagão e
solitário, vivendo à distância do mundo, dos homens e do seu Deus.
Mas, curiosamente, sempre estando presente quando da necessidade de
um deles.
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Quero abrir definitivamente neste dia, minha alma, meu
coração e minha mente para o mistério: limite e critério da minha vida,
pois não alcançarei mais minhas pegadas de ontem. E agora, sôfrega,
escrevo meus últimos rascunhos, meus últimos passos. Passos
essencialmente em forma de palavras e de sentimentos.
Carente de qualquer apreensão de tempos passados e sem o
calor da juventude primaveril, ardente em entusiasmo, tentarei nestas
linhas, forjadas na luta da pena contra o papel e no forno brando do
meu querer, ser fiel aos meus vários amanheceres, enternecidos apenas
no acreditar de uma existência em que todos poderiam ir à busca
interior, à procura diligente para um encontro consigo próprio, tendo,
quero apontar humildemente, sido alcançada esta convicção após essa
longa vida. E hoje, absolutamente convencida, se não do mais
importante mistério da existência humana, certamente do mais
verdadeiro.
Desta noite fria, não quero mais nada e nem alimentarei estas
páginas com o que acredito, preciosas palavras. O sono me seduz,
carregado que é da embriaguez dionisíaca. Lá fora no bosque, ouve-se
um grasnar que se fez alto dentro da casa pela proximidade e silêncio,
reverberando como sinos majestosos na nave central de uma igreja. Um
pássaro faminto acabara de anunciar seu despertar noturno.
***
O dia, nesta sexta feira de meados de março do ano de 1531,
amanheceu envolto em brumas solenes para depois clarear
completamente. O frio já não é tão intenso como foram nas primeiras
horas do alvorecer desta manhã, pois a primavera se abrirá daqui a
alguns dias. Minhas tarefas costumeiras estão cumpridas em grande
parte, graças a minha disposição matinal, quando, desde mais cedo,
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levantei-me para o trabalho, podendo me dedicar à escrita pelo resto do
dia, se assim desejar. E não perdendo mais tempo com outros afazeres
domésticos que sempre existem, ainda mais se amiúde procuramos por
eles. Questionava-me em voz alta:
— Onde, por Hécate, eu deixei os escritos de ontem?
Isto, enquanto remexia os papéis depositados sobre a mesa,
muitos ainda desordenados. Aqui está, ... do mais verdadeiro
. Pois
bem, dando continuidade aqui mesmo, como querem a pena e a minha
vontade permanente.
A morte... Aliás, a boa morte, esta já me espreita na sua
paciência e persistência dos séculos incontáveis, sendo uma realidade
que não me é dada dominar. Mas agora, talvez com mais clareza e
humildade, ajudada por uma noite de sono tranqüilo e revigorante,
principia um entendimento em mim bastante sensato. Este, em
especial, aponta para a necessidade de agradecer a sua presença
constante, não só no agora desses dias, mas durante o que foi toda a
minha caminhada nesta longa vida, procurando, de alguma forma,
alcançar um juízo superior em relação a esses assuntos enigmáticos do
destino, muito mais do que tenho me dedicado. Isto para melhor
reconhecer que, além da minha incansável pena, que ora trêmula e
febril rabisca este carcomido pedaço de papel, ela, a morte, é a minha
outra companheira que sempre esteve comigo e vem me amparando no
ocaso da minha existência. Companheira esta, diga-se, com toda
devoção, tenaz e fiel como nenhuma outra com quem tenha convivido.
É quando, para minha surpresa, no mesmo instante,
debruçando-me sobre a mesa velha e gordurosa, impregnada dos
odores mais diversos pelo lidar das ervas no passar dos anos, vagando
ainda na tentativa da busca de recordações mais antigas, e, uma vez
mais, revendo estes últimos pensamentos escritos no envelhecido papel,
é que, ao me voltar, girando quase súbita e involuntariamente meu
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corpo para um lado do recinto, fixando agora o olhar na pequena
janela, esta entreaberta para fora, pude escutar claramente um recado
trazido pela cálida brisa dos espíritos aéreos e pelo vento leste:
"— Prepara-te, grande senhora. Muito já se cumpriu na tua
existência e pouco ou nada resta".
Dou fé, porém...
Que os dias presentes se tornaram meses e foram passados
numa rotina laboriosa, tornando-se a própria sorte da vida. Para só
então, depois de um longo tempo, descortinar mais uma vez o caminho
do entendimento razoável e imperecível. Contudo, não consegui sair
ilesa desse período, por causa de uma das maiores aflições do ser
humano — a desilusão com a vida — que, como todos sabemos, os dias
rotineiros fazem questão de trazer maliciosamente com eles. Também
ainda tenho que ser verdadeira até comigo mesma, um outro motivo se
somou, este justamente, com relação a minha outra companheira, a
morte, sobre quem tenho falado com atenção especial.
***
Com o arrastar dos meses, e sem os sobressaltos costumeiros
que o corpo acusava pela íntima aproximação da donzela da foice,
fizera-me estranhamente e por inteira, não mais me habituar sem sua
presença, sem seu hálito adocicado da liberdade desejada. A ponto de
chamá-la quando não se deitava comigo ou se afastava sem aviso e, de
livre vontade, cheguei a propor a comunhão eterna sem mais demora,
sem mais atrasos. E ela, fingindo escutar atentamente o que
considerava uma proposta justa, deixava-me até acreditar que estaria
disposta naquela noite pontualmente ou no mais tardar, se esta
sobrecarregada com sua prima, a Peste
, em seus trabalhos, no
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próximo alvorecer selaria os votos do sepulcro. Inclusive garantindo vir
de forma resoluta, até porque estaria incentivada pela prima em definir
nossa situação, fazendo-me sentir, na minha credulidade voluntária,
bastante aliviada. Alimentando, como não poderia deixar de ser, a
expectativa de uma solução breve. Todavia, insistentemente, não
tomava este meu corpo. E assim, perseverantes herdeiros, passaram-se
muitas noites em núpcias não concretizadas que, para mim, noiva
inconformada, pareceram intermináveis. Por isso, veio acontecer o
pior.
Num impulso desmedido, estranho até para mim mesma,
acostumada à serenidade das noites sem lua, à decência da idade e,
principalmente, pela resignação alcançada, vim novamente
inconsolada e empertigada, sob a tutela dos meus instintos, dirigir-lhe
palavras proibidas e severas.
— Ó senhora dos vermes imundos, o que espera? Por que a
demora e as promessas não cumpridas, não tendes respeito pelo
empenho de vossa palavra suja?
Mas... Para minha surpresa e desespero, simplesmente ela se
cala... Aparta-se com uma timidez desconcertante, beirando quase a um
titubear pueril, mesmo em face de por trás daqueles vazados olhos
intemporais se esconderem toda verdade do tempo implacável. E
acontece isso, justamente no momento em que se estabelecera mútua
confiança em nosso convívio. Quando mesmo confissões de suas
dificuldades e limitações existenciais me eram confiadas sem restrições,
ou ainda, de seus desejos de donzela. Que mortal poderia desconfiar
que a morte tem seus anseios secretos e suas responsabilidades? Sei
agora que exigi demais de sua boa vontade...
Saibam todos, quantos puderem me ouvir! E falo especialmente
para aqueles que ainda poderão levantar injustamente qualquer dúvida
de sua idoneidade e respeito para com seu ofício ou em relação a atos
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desonestos, numa relação fraterna, como a nossa que fora estabelecida
por afinidade e solitude. Aprendi devotadamente, não fora de forma
alguma descortesia de sua parte, ciosa que é sempre de suas obrigações
e dos apelos dirigidos a ela, e sim, estariam aí, as coisas maiores do
universo que estão acima de nós duas.
Com isso, e diante de certas evidências, surgiu em mim uma
inquietação — aquele mínimo de desconfiança que precede uma
certeza — Estava claro que havia um motivo muito importante para que
eu permanecesse viva. Talvez algo que tenha deixado de cumprir. O
que me fez lembrar, e muito oportunamente, a matriarca Bithias que,
uma certa feita, dissera:
" Urtra, saiba! Ninguém é inocente de nada."
Por conta disso, como se um raio tivesse caído sobre minha
cabeça, abrindo-a ao meio, compreendi toda a minha situação atual.
Sim, sua tonta! Sua loba decadente! Sua desajeitada! Como
deixei escapar de minhas lembranças? — lastima para o vento.
Resta uma última e importante coisa a fazer neste mundo de
brumas que só é uma. Tenho certeza agora, está relacionada com o livro
que conta as façanhas e as dificuldades da minha antiga ordem,
conhecida como a Irmandade da Loba. O escrito revela os últimos
acontecimentos vividos na tradição do fogo e da Grande Mãe Terra.
Narrando entre outras coisas: os grandes mistérios dessa Irmandade, o
desaparecimento precoce, nossa vida em grupo, nossas lutas e nossas
esperanças. Por essa tradição, orgulhosamente, tornei-me a sacerdotisa
maior e matriarca perpétua, talvez, a única sobrevivente daqueles anos
desaparecidos para sempre.
Sem dúvida, minha pena fiel! E por favor, desculpai-me mais
uma vez irmã morte. Pois ainda, como percebeis, tenho os vícios da
carne e as minhas virtudes são por demais atrasadas diante de vossa
grandeza e sabedoria. Definitivamente então, todo esse tempo não se
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constituiu só de desejos frívolos ou uma birra filosófica com a morte.
Como não consegui enxergar isso antes? Tantas vicissitudes e loucuras
eu tenho passado desnecessariamente...
Ou não, velha loba Urtra?
***
O tal escrito foi por mim redigido a partir de minhas
impressões e lembranças dos fatos acontecidos naquele serviço das
mulheres-lobas. A tarefa me foi passada pela minha matriarca e
sacerdotisa maior, antes de mim. Tendo como condição essencial o
mais fidedigno relato daqueles últimos dias e, posteriormente, quando
do seu término definitivo à entrega dessas letras reservadas para alguém
que apareceria para buscá-las e só a ela, especificamente, deveria ser
entregue.
Quando abandonei as vestes da igreja e fui para o campo, tive
que enfrentar toda a sorte de vizinhos inescrupulosos e invejosos que
estavam ali sempre dispostos de alguma forma a incriminar o seu
próximo. Para assim, usurpar as posses da vítima ou como vingança por
alguma contenda anterior. Seria uma condição indefensável, e
particularmente fatídica para alguém como eu, possuir algum livro. Por
isso, algumas vezes tive vontade de queimá-lo.
Tantas mulheres já tinham ido para fogueira ou para forca, por
tolices inconfessáveis, mesmo sendo totalmente inocentes das
acusações. Por isso tudo, como ainda se escuta dizer por aí, entre os de
boa vontade: "qualquer acontecimento suspeito e incomum recai, em
primeiro lugar, em mulheres idosas de vida solitária". Hoje sei, de fato,
por alguma fórmula maravilhosa da Grande Geradora do mundo que
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nunca consegui me desvencilhar realmente dele, por ser ele um
verdadeiro amuleto e protetor de todos os meus trabalhos.
O livro envolto em pano negro do mais puro linho estava
dentro de um pequeno baú que fora enterrado, ou melhor, guardado
num falso assoalho no chão da cozinha, próximo ao forno de uma
antiga cabana destruída num temporal há vários anos. Conservado lá,
tornava a afirmar para mim mesma, por medida de precaução e
segurança. Não obstante, nesse momento, o coração se acelera me
dizendo de uma certa negligência pessoal. Trago então para minha
nova morada a fim de uma pesquisa mais acurada.
No baú, encontravam-se outros pequenos objetos pertencentes
à Irmandade ou à Grã-mestra. Particularmente o mais valioso era uma
jóia, o anel da grande sacerdotisa antes de mim. Peça feita em prata e
ouro marcada com grafia estranha a corrente ou ao latim dos eruditos.
Conforme meus conhecimentos, seria a antiga escrita egípcia dos
deuses, sobressaindo em relevo a serpente que engolia o próprio rabo, o
Uróboro
e um pentagrama com um olho de esmeralda ao centro. Ao
admirá-lo, senti um impulso de colocá-lo em definitivo ao redor do
dedo indicador. Como se, desse dia em diante, já alcançasse o estado
de maestria que, antes, eu mesma acredito prudentemente, não me
atribuía.
O que mais me surpreendeu fora ainda o perceptível cheiro do
jasmim mais doce, misturado àquele pano negro na época do último
acondicionamento. Suas capas curtidas da antiga pele de uma loba
ressaíam pela sua tonalidade acinzentada, atenuando ligeiramente
como numa pintura de mestres em vários matizes até o branco gelo. Ao
abri-lo, vejo ainda com admiração a estrela prateada, bordada com fios
delicados da melhor prata, realizada pelas mãos habilidosas da saudosa
Cailantra. Não me escapa, mesmo já tendo visto tantas vezes, uma
emoção forte, quase mesmo incontida, ao me lembrar de suas faces
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rosadas e joviais, como dos seus risos mais vibrantes nas horas
descontraídas. E é difícil, constatei, mesmo durante todo esse tempo,
entender que fiquei na continuidade perturbadora do tempo.
Enquanto todas minhas irmãs se esvaíram pelas cicatrizes do destino.
Porém, tudo parece continuar de alguma forma nas lembranças, nas
ações e na minha única e verdadeira herança material, este livro
nomeado há muito pela matriarca Bithias como: "Da Claridade e Das
Sombras".
A pena deslizando suave entre meus dedos concorda sem
vacilar. Ela me trata bem, e me ajuda a falar sobre as coisas mais
diversas e tem sido fiel nestes quase três decênios, principalmente nos
tratados herbóreos e de cura que tenho escrito e passado para os
chamados iniciados do norte
, os druidas. Todavia, faz muito tempo,
recordando-me com saudade de que nem eles aparecem e sei que
provavelmente não aparecerão mais. Pois muitos pereceram e outros
tentam manter a obra viva se escondendo dos olhos gananciosos e
corruptores.
Minha missão foi cumprida no que pude fazer de melhor, disso
podia até me orgulhar. Mas essa herança da Irmandade da Loba ainda
não encontrara seu destino. Teria que ser entregue a uma pessoa em
particular, como me fora determinado antes. E agora, com o que pensei
ser a velhice e o fim da vida, há um desejo sincero de encontrar forças a
todo custo para realizar esta vontade superior. Quando de um outro
lado, também me vejo arrebatada pela possibilidade de não vê
cumprida a intransferível tarefa, por uma total escuridão do caminho a
seguir e que pouco posso definir pela minha própria vontade e
consciência.
Passa, então, meus sentimentos a se confundirem na
confluência do passado e do que vivo agora. Por quê? Pergunto-me
embaraçada nesta outra angústia de sentir minha própria impotência.
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A pessoa nunca aparecera quando fora prometida a mim que
apareceria algum dia. E isso agora começou a me atormentar mais
terrivelmente do que pretendia eu mesma há poucos instantes. Será
que cheguei até aqui apenas para alcançar esta terrível conclusão? Não
podia acreditar nisso. Também não era o que parecia dizer minha voz
interior. Devia confiar nessa voz, era o que de mais valor possuía.
Buscando a serenidade das flores que se abrem na primavera e
a quietude da madrugada. Olho novamente com intimidade para
aquela pequena janela que, tempos atrás, conduziu o vento da
sabedoria dos séculos, a partir do portal leste. Durante a maior parte
do ano, pela sua disposição particular, no avançar incansável do dia,
projeta luz e sombras com diferentes profundidades por todo o
ambiente. Variando grandemente a quantidade de claridade e os tons
sombreados que a luz faz conceder de si própria quando assim
confinada em lugares fechados, ou ainda mais ali, quando incidido
sobre e entre anteparos de todas as formas, tamanhos e disposições. E
não é por acaso que por essa mesma janela, novamente, vem uma
brisa cálida penetrar com a suavidade dos perfumes das distantes
montanhas, trazendo uma fragrância raríssima, sobretudo, acredito,
pela importância da mensagem.
"— O pássaro prateado voa para longe de casa em busca do
alimento da mente e do espírito... Não tardará. Pois sua causa é nobre e
o momento propício. Apascenta de vez tuas dúvidas, minha cara dama
dos ventos da tarde e do frescor da primavera, nós te bem dizemos e te
servimos e fomos servidos. Porém só as ordens angélicas te darão o éter
universal de que poderá participar em breve. Entretanto, isso não te
levará à sepultura, pois teu corpo foi ungido por uma graça que está
muito além da ciência dos homens. Nós seguiremos nossas obrigações
eternas diante da criação e voaremos por toda a Terra, como arautos
divinos, a anunciar as verdades de agora e as de ontem. Para que todas
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as criaturas, de todos os mundos, visíveis e invisíveis, não deixem de
receber as sagradas mensagens da Deusa. Tu és também atmosfera
dama dos ventos... E nós te abençoaremos no topo do céu. E lá
construiremos séculos sem fim, em tua lembrança, o altar de todos os
ventos".
Senti-me, então, possuída por um alento maravilhoso nas asas
de uma paz profunda. Mas esvoaçante de vitalidade por favorecer a
expansão da consciência em diversas esferas dos mundos invisíveis.
Gozando, tinha certeza, uma plenitude por muito tempo não
experimentada.
Apesar de logo em seguida, sentir-me como que desperta
abruptamente de um transe. Tendo ocorrido, eu acredito, por
naufragar em correntes de pensamentos contraditórios e inoportunos.
Porém, ainda percebi que, de maneira sutil, continuava sendo
enlaçada, agora, por um novo alento. Este bem diferente, mas como o
outro, indescritível. Muito, é preciso esclarecer, pela exclusiva
dificuldade de descrevê-lo aqui e neste momento. No que também
constitui a ordinária e insuperável limitação das palavras, ainda que
estas solícitas se ofereçam para a realização do augusto trabalho. Este,
reafirmo, que é precisamente de desvelar em boa medida os
sentimentos superiores para outrem. Quando quase já nem se consegue
mais escrever, tomada que se é pelo próprio movimento dos princípios
elevados.
Insisto, porém...
Procuro assim, simplesmente recostar-me com suavidade na
cadeira acolchoada com penas de gansos (esta cadeira foi uma
lembrança do convento a qual conservei sob a minha guarda. Qualquer
dia desses, se me sobrar tempo, ainda me dedicarei a contar essa
historia), localizada bem atrás, afastada da mesa de trabalho. Dirigia-me
até ela e para aqueles lados do cômodo, ainda envolvida por certa
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embriaguez do espírito, tentando atinar para essa nova revelação dos
espíritos do ar, ao mesmo passo que buscando manter a sensação de
quietude e elevação que passei a sentir instantes depois.
Como isso continuava de alguma forma a aflorar dentro da
singularidade e do poder que me envolvia, fui instantaneamente
arrebatada para uma maior compreensão de mim mesma, compreensão
esta, destituída de qualquer reflexão ou pensamento bem sucedido, este
que digo, quando trabalhados a contento nos ditames da razão.
Foi nessa condição inesperada que novamente folheei a
primeira página do livro — Da Claridade e Das Sombras
— e não foi
por excesso, o susto manifestado nessa hora. De maneira incomum,
logo nas suas primeiras palavras escritas, as realidades mais próximas
pareciam emergir, flutuando como penas no ar para depois, no
segundo instante, irem e virem de todos os cantos. Por vezes,
misturando-se numa recriação espontânea e incompreensível de
caminhos nunca experimentados. Em parte, isso ocorria em função da
grande magia irradiada dessa minha história passada; sendo outra
parte, intuía, de uma não revelada até este dia de graça; e ainda de uma
terceira e última, mais misteriosa, quase de existência duvidosa, pelo
impressionante sentido e origem da minha essência, os anjos caídos.
Tudo isso estava acontecendo, quando era subitamente conduzida para
um mundo distante e imaginário e, incrivelmente, até para mim
mesma, testemunha daqueles acontecimentos, no próprio instante,
desconhecidos. "Nesses dias...
18
PRIMEIRA PARTE
AS TREVAS
19
20
Capítulo 1 - A Fuga
Nesses dias, no altar da loucura humana, já não restava tanto
tempo para descanso ou confraternizações como antes ocorriam nos
freqüentes acampamentos, ao redor, muitos deles, das sagradas
fogueiras. Tínhamos agora, vivas saudades dos tempos mais simples em
que nossos corações se entregavam aos mistérios sem as preocupações
dos dias presentes. E onde tudo se passava com a vontade firme da
liberdade, da magia revelada e naquilo que acreditávamos firmemente
como nosso destino de sacerdotisas da Grande Loba ou da Grande
Mãe do mundo, o que dava no mesmo.
Nossas almas dilaceradas e, ainda mais, atraídas para a
destruição, ia nos conduzindo sem certezas ou convicções para um
futuro irreconciliável. Tardiamente nos demos conta do nosso
embaraço nas intrincadas malhas do destino e como seria difícil
reverter nossa terrível situação. Nada, aparentemente, como
julgávamos, explicava os acontecimentos de que fomos vítimas nessa
ocasião ou por que fomos miseravelmente tragadas pelo destino, da
forma mais inesperada e vil, que só é esta: autorizada por uma traição.
Quem haveria nos traído, revelando nosso local de encontro próximo
àquela vila? Seria alguém do pequeno círculo da Irmandade ou um de
nossos conhecidos na vila, ou até quem atendíamos com nossa magia?
Não conseguíamos arrancar de nossos corações e mentes esta dolorosa
questão. Até porque, poderia ser, traiçoeiramente, uma de nós. Era
certo, houve um tempo em que dificilmente isso teria ocorrido em
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nossas vidas, pois mantínhamos princípios mais vigilantes e rigorosos
em nossa disciplina de feiticeiras, assim como, de nossa convivência
com as pessoas estranhas à Irmandade.
Os devas do outono aliado aos devas do inverno, nesses mais
de mil e quatrocentos e noventa anos do salvador dos homens,
manifestavam-se por suas garras afiadas, aguçadas eternamente nos altos
píncaros nevados. O vento gelado fazia questão de tocar nossas faces,
desde antes, escarnecidas nos espinhos do mundo, oferecendo-nos
agora uma cortesia ultrajante e por demais pretensiosa, pois vinha
suplicante de atenção íntima e duradoura, quando nenhuma
intimidade conquistara anteriormente. Atingia os corpos, ressecando e
querendo congelar impiedosamente a pele nas partes que se tornavam
expostas nos atropelos de uma caminhada vigorosa.
Certamente seria possível prever um inverno bastante rigoroso,
como aliás, ocorrera nos últimos anos por toda aquela região. E a
noite, particularmente, veio lembrar esses tempos. No outro inverno,
nevara tanto que quase por toda a estação não se conseguia sair de casa.
E quando dentro de casa, de perto da lareira.
A abóbada celeste mostrava uma trilha única, rica e leitosa,
descrevendo um arco fantástico de milhares de pontos luminosos.
Talvez a confirmar o que os mais antigos diziam de uma majestosa
estrada pavimentada pelos imortais. Um caminho maravilhoso de
milhares de estrelas a cintilarem na soberba indiferença de toda
condição humana, indicado naquele momento, no seu gigantesco, mas
ilusório encontro com o horizonte sem fim. Como agora podiam se
esconder sob um véu negro e sem vida de nuvens, prontas a
descarregarem toda confusão caótica de tempestades furiosas?
O que tínhamos nos tornado no presente, impossibilitava-nos
grandemente. Pois um pequeno séqüito de feiticeiras-lobas, então, sete
mulheres, mesmo que orgulhosas andarilhas da escuridão e do fogo,
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pouco poderíamos fazer contra uma multidão enlouquecida e ignorante
das gentes cristãs, atormentadas por seus próprios demônios.
O silêncio era uma constante no pequeno grupo por todo o
caminho de volta para o lugar que reconhecíamos como nosso lar.
Mesmo aquelas mais joviais permaneciam caladas a maior parte do
tempo, diante do que seria tenebroso lembrar e comentar em relação às
outras companheiras, capturadas e feridas, ou mortas sob tortura. No
entanto, esporadicamente acontecia de uma de nós verbalizar nossas
incertezas, inquietudes e anseios, a fim, talvez, de afastar aquilo de
nossos corações e encontrar no corpo grupal a força necessária para si
mesma. Mas como, de fato, a virtude da inocência esperançosa não
possuíamos mais, todas sabíamos, de um jeito ou de outro, quão grande
infortúnio nos acercava. E como seria difícil retornar a um passado, se
não totalmente glorioso, pelo menos vigoroso e com a tranqüilidade
necessária para praticar e servir a grande magia do fogo salamândrico.
A impossibilidade de ter nossa vida em grupo renovada no
futuro vinha como uma certeza inquestionável, mesmo em face do que
nós éramos, do que tínhamos vivenciado como experiência guerreira e
na conquista de um poder próprio emanado da Mãe Terra e da Mãe-
Deusa. E não menos ainda pelo que conseguimos realizar com a força
de nossa vocação e disciplina. Que, aliás, fora essencial na fuga da cafua
inimiga, fazendo-nos suportar, em várias ocasiões, as mais duras provas
que o animal humano pode inventar contra a sua própria espécie.
No episódio infernal, onde houvera os confrontos com os
aldeões, podíamos perceber quanto ódio estes nos dispensava, quanta
ignorância acercava-se da dita religião do amor cristão. Não
conhecemos ali qualquer palavra ou gesto de afabilidade, caridade ou
compaixão. Somente a necessidade brutal do sangue que corria em
nossas carnes, fosse pelo calor sensual das uniões carnais que, em
parte, podia ser tirado à força por estes dignos servos do Deus
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cristão; fosse pelas vísceras arrancadas até o ventre, desfigurando os
corpos já violados.
A caminhada seguia com mais suavidade, a medida em que nos
distanciávamos do lugar onde, na noite do dia anterior, a emboscada
fora deflagrada. Nós procurávamos avançar para o interior da floresta,
numa trajetória de subida contínua do pequeno monte que se