Verão De Outonos
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Verão De Outonos - Dolores Maggioni
Prefácio
EM ESTADO DE CHOQUE POÉTICO
Dolores Maggioni é dona de uma poesia com grande surpreendência. O que não surpreende, vindo dela.
Em seus vários livros, publicados ao longo de décadas, palavra alguma desce ao nível do óbvio, do banal.
E afirmo isso, seguro, por ser o honrado editor de todos os seus livros publicados. Jornada vitoriosa a sua.
Seus textos são sopros que nos provocam vendavais em cada um dos cinco sentidos. Causam-nos paralisia, como que nos travando a respiração. Até recuperarmos o equilíbrio e o fôlego pela beleza estética de cada poema.
E este Verão de Outonos nos entrega, em mãos, 71 comoventes inquietações. Todas de belezas ímpares. Ainda que sejam de permanente efervescência humana, trazendo à tona a desnudez de sua alma, que nunca lhe cabe no corpo ou no pensamento. Arrojos e confissões sempre além do que é humanamente possível escrever. E a poeta Dolores, sempre além.
São maravilhas dolorianas – doem sem doerem. E que a tudo colorem. Ah, mas que por vezes sangram, isso sim! Igualmente a autocura é imediata. Salvação pelo próprio poema, autocurativo:
"A madrugada é fria, longa e leviana,
dessas que desnudam e sobrepõem o sentimento à razão.
Trôpega, a mão aciona a corda
do pequeno baú de sonhos orquestrados.
Estranha necessidade de sentir as suas presenças!
Começa a rodopiar a saia cor-de-rosa da bailarina ansiosa.
A sapatilha exibe um laçarote rendado
e a sinfonia de Mozart explode a solidão da madrugada
e explode as lembranças que no peito,
o coração ‘esqueceu de esquecer’"
(A bailarina, p. 11)
A propósito. Este título já não é um despropósito de tão belo? Desafio? Enigma?
Verão de Outonos nos cobre de folhas amarelecidas os olhos, mostrando a nudez das árvores feito roupagem dos caminhos; e o calor dos corpos igualmente despindo-se das roupas e medos – doando-se aos prazeres dos dias e dos amores.
Encantos envolvem e enlaçam igualmente a primavera e o inverno, partes fundamentais do corpo e do ano. Universos que são filhos do mesmo Deus criador:
"Desaprendo o pó colado às sandálias,
velo as demoras,
monto barquinhos de papel e rumo ao teu encalço.
Pacientemente prescindo de abstratos cansaços
e permaneço terna à sombra do poema.
Desamarro as sandálias de todos os caminhos,
e o vento calmo conta às folhas,
que as demoras nos revelam mais humanos.
No meu peito, o amor perscruta
a plenitude meiga da terra após as chuvas."
Adágio para destinos desencontrados, p. 16)
Os poemas dançam sob a batuta da poeta-maestrina, que, hipnotizado com gestos e com as palavras do texto impresso, formam uma orquestra de versos – exímia pianista que já nasceu pianista:
"A tarde canta, musicada pelo riacho e seus desejos
/sem perguntas.
Desperta o plátano de seu sono necessário, sobre
/a dádiva dos ninhos.
O vento acena as crinas da relva; abre o ferrolho
/da porta do delírio,
enquanto as heras se abraçam à taipa obedecida.
A hora é rústico granito pesando sobre a teia
/de augúrios que o cão ladra.
A sombra da nuvem andarilha cobre o rosto de riacho
com um lençol de organza." (Cautelosamente, p. 36)
E não bastasse a magia iluminada deste Verão de Outonos, a autora recebe o bom gosto mágico de Marla, a artista plástica das artes visuais, a qual empresta ao livro uma beleza estética de ilustrações coloridas, que dialogam com o encanto de cada poema.
E note o leitor que seu grande poema começa, não com o poema de abertura, mas com o próprio Sumário do livro. Anote aí:
Adagieto para a imagem de uma espera – p. 14
Cantiga para uma desesperança – p. 32
Das equações marítimas – p. 47
Desmaia a flor sob este céu turquesa – p. 57
Elegia para a solidão de um domingo – p. 65
Galopam as horas, junto às flores do cristal – p. 71
Nostálgico andante para a orgia do vento – p. 94
Tristíssima balada para o voo das gaivotas – p. 132
Por fim, ou por início, naufrague e salve-se em cada verso deste livro da vida inteira, do ano inteiro que se chama, e é pura chama: Verão de Outonos.
Rossyr Berny, editor, escritor
Da Academia Rio-Grandense de Letras
A bailarina
Madrugada insone.
Ventos e cometas brincam no insondável.
Estendo a mão quase gelada e acendo a luz de cabeceira.
A tênue claridade ilumina a caixinha de música
com a delgada bailarina inerte, esperando pela dança.
A madrugada é fria, longa e leviana,
dessas que desnudam e sobrepõem o sentimento à razão.
Trôpega, a mão aciona a corda
do pequeno baú de sonhos orquestrados.
Estranha a necessidade de sentir as suas presenças!
Começa a rodopiar a saia cor de rosa da bailarina ansiosa.
A sapatilha exibe um laçarote rendado
e a Sinfonia de Mozart explode a solidão da madrugada
e explode as lembranças que no peito,
o coração esqueceu de esquecer
A melodia toca-me de forma sutil,
fazendo deslizar tão ternos sentimentos
que eu julgava adormecidos.
No apelo da madrugada, o chamado da vida.
Uma vida capaz de atentar para o riso de uma criança,
o latido de um cão, o voo de um pássaro, o badalar de um sino,
a leveza de um anjo, a estranha beleza de um duende.
A velocidade do porcelânico pezinho recria o verde,
o arco íris, a geada, a ventania.
Com ela o cheiro de ervas.
Com ela o cheiro de orvalho.
Com ela o teu cheiro.
Aspiro Mozart.
No aconchego silencioso da madrugada ultrapasso
a incógnita geografia dos sentimentos.
Dá-me a impressão de que tudo possuo.
Dá-me a sensação de que nada sou.
Observo a bailarina.
Ela gira igual ao mundo.
O mundo é redondo; minha saudade, circulante.
Nenhuma geometria pode impedir o reencontro.
Os acordes invadem a meia luz do quarto
e eu experimento deliciosa sensação,
despida da racionalidade que me oprime
e da objetividade que me sufoca.
Palavras ditas com os olhos descarregam centelhas elétricas
por sobre a bailarina
indiferente a tudo que não seja a dança.
Lá fora chove forte.
Por baixo do latido da borrasca crio um horizonte crivado de mistérios.
E os sonhos se assustam com os raios dos fonemas
que escapam pelo olhar.
A sinfonia celebra a vida... a mesma vida que retorço
por entre as palavras contidas pelos lábios
e expressas no verde das retinas sonolentas.
E a bailarina dança.
Ciranda incansável, sem cansaços ou presságios,
sem pensar que a madrugada se desdobra em um turbilhão de perdas.
É que as lembranças não se desmancham como barro em temporal.
Então, enquanto a bailarina rodopia, o coração asfixia
na estranha tempestade que rugem as palavras só ditas pelo olhar.
E nelas eu me perco
na angústia daquilo que revelam,
entre as ruínas de um incêndio nunca extinto.
Na aura concebida pelo incansável biscuit de porcelana,
deixo estrugir a coesão das coisas mais íntimas.
E, nem mesmo Mozart, nem mesmo a melodia
são capazes de burlar as lembranças
de criar a amnésia para as coisas todas que eu perdi.
A bailarina dança e eu a observo, enquanto vislumbro,
num espasmo de vida, espécie de longo sono superficial,
um momento de vigília, para me afogar e diluir,
sem sobressaltos, as imagens enquadrinhadas neste lapso sutil.
Recostada na amurada desta sinfonia,
deixo que a bailarina crie um cais imaginário,
por onde eu te imagino ver chegando.
A corda acaba.
A dança cessa.
Cala-se Mozart nesta madrugada insone, leviana e fria.
Não restou nem melodia nem dança.
Talvez, poesia.
Adagieto para a imagem de uma espera
Uma solidão sem préstimo cai sobre a tarde que não te tem
e abre em mim, tantas gavetas cheias de memórias.
Minh´alma é hoje como as águas do regato;
vai brotando silenciosa, sem lendas de reis e de castelos.
Esse novo jeito de vida
amadurece de verão meus segredos bordados de receios.
Nos olhos, sonolentos e transcendentes,
já suavizam as tortuosas distâncias
e a ingenuidade deste amor inundado de cantigas.
Um mosaico de cheiros confere um formato de ar puro
nos caminhos de te buscar
e no silêncio que não existia antes da transcendência do teu nome.
Repito-o
e entendo que fazes parte do mistério que subitamente me ilumina.
Por isso este Janeiro está grávido de intenções e outras complacências.
E, porque tu existes,
as horas têm vontade de sair, cantando entre si a mansidão
que o teu olhar acordou na vertigem presente do meu estar e do meu sentir.
Minha emoção voa igual a uma borboleta branca
sobre pêssegos colhidos rescendendo seus aromas.
Tem minha emoção, a alma das memórias e o cheiro das cirandas.
Brinca este meu coração, assim tão cheio de ti,
neste espanto inaudito que brota no encanto das saudades
e voa bem além das circunstâncias.
Adágio para destinos desencontrados
Agora é hora de inverter o tempo e perder a noção da pressa.
Torno audível o silêncio e multiplico o chão
para o rastro dos ruídos dos nossos momentos.
Desaprendo o pó colado às sandálias,
velo as demoras,
monto barquinhos de papel e rumo ao teu encalço.
Pacientemente prescindo de abstratos cansaços
e permaneço terna à sombra do poema.
Desamarro as sandálias de todos os caminhos,
e o vento calmo conta às folhas,
que as demoras nos revelam mais humanos.
No meu peito, o amor perscruta
a plenitude meiga da terra após as chuvas.
Foste.
E as lembranças não foram contigo.
Ontem passou.
E tu não passaste.
O que restou se entrega ao verso amargurado,
companheiro deste tempo de ficar.
Agora sei que dentro de mim disponho
de um acervo de poemas tingidos de vinho e de carinho,
feitos da paixão que vem de ti.
Dou-te meu coração.
Apanha-o.
Nina-o,
para que possas decifrar meus sonhos e meus desígnios.