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Deus Vult - Um Homem Entre Dois Reinos
Deus Vult - Um Homem Entre Dois Reinos
Deus Vult - Um Homem Entre Dois Reinos
E-book1.063 páginas14 horas

Deus Vult - Um Homem Entre Dois Reinos

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Sobre este e-book

Deus Vult – Um homem entre dois reinos, é um livro baseado em fatos ocorridos principalmente entre os anos de 1033-1109, onde os feudos desesperadamente lutavam pela sobrevivência, e para tanto procuravam produzir tudo aquilo que era consumido, pois as relações entre eles eram praticamente inexistentes desde a queda do império romano; outrossim a tentativa de uns dominarem os outros provocavam guerras e mais guerras. Por outro lado, existiam os povos vikings que saiam navegando pelos mares em busca de terras férteis e riquezas e se depararam com as fortunas acumuladas pela igreja católica tendo sido Lindsfarne a primeira vítima dos povos vikings. Em meio a tudo isso a Igreja católica dominava sobre tudo e sobre todos e com poderes infinitos, estando somente abaixo de Deus, porém há de se salientar e reconhecer o papel importante desta instituição milenar na formação moral do povo bem como na disseminação das escolas-catedrais as quais nasceram principalmente para disseminar não somente a palavra de Deus, porém para perpetuar o conhecimento e a dominação sobre os povos; entretanto após algum tempo resolve abrir seus portões para os filhos dos nobres e artesãos que acumulavam enorme riqueza e poderiam pagar poupudos valores pelo aprendizado de seus filhos. Em meio a tudo isso, nasce no Vale de Aosta-Itália, ANSELMO DA CANTUARIA, o qual passaria sua vida ensinando e doutrinando conduzindo homens não só para a própria igreja, porém também para o mundo laico; por fim Anselmo é alçado ao principal posto da Igreja católica britânica, passando a enfrentar os interesses entre a Igreja de Roma e os interesses do próprio reino inglês.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de set. de 2022
Deus Vult - Um Homem Entre Dois Reinos

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    Deus Vult - Um Homem Entre Dois Reinos - Milton R. Costa

    Copyright – Milton R. Costa -2022

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ( eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Autor.

    Contato: deusvult.milton@gmail.com

    ficha

    PRÓLOGO

    O presente romance histórico teve como inspiração basilar o mundo religioso e o mundo laico onde disputas sempre existiram e, ao longo do tempo um e outro foram se sobrepondo, não obstante um sempre apoiado no outro com o objetivo de dominação; neste livro é narrado fatos históricos principalmente ocorridos entre os anos de 1033 a 1109 onde disputas foram travadas em nome de Deus, entretanto tais eventos sempre existiram.

    O Império Romano foi quase que absoluto durante seus 500 anos de duração, compreendidos entre os anos 27 a.C. a 476 d.C., onde tudo e todos eram comandados e controlados por essa força dominante.

    Aos povos comandados ou escravizados lhes era dado o direito de apenas e tão-somente obedecer cegamente ao comando centralizado em Roma, sendo que poucos eram os direitos dos governados ou subjugados.

    Quem nunca ouviu dizer todos os caminhos levam a Roma e isso era a realidade do século primeiro, pois Roma havia construído algo como 80 mil quilômetros de estradas, as quais de forma direta ou indireta literalmente levavam ao centro do poder.

    Entretanto como diz o ditado português Não há bem que sempre dure, nem mal que nunca se acabe o império romano experimentou seu apogeu e também sua queda em 476 d.C.

    Imagine um mundo em que não havia administração local autônoma, ou seja, o povo não sabia se auto-organizar e muito menos se governar, e de repente se viu literalmente à deriva, entretanto para sua própria sobrevivência deveria encontrar uma forma própria de governo.

    Surgiram então, na Europa, os feudos autônomos onde seus habitantes deveriam produzir tudo aquilo que fosse necessário ser consumido no próprio local, pois a comunicação entre eles era praticamente inexistente uma vez que tudo havia sido desmantelado com a queda do Império Romano.

    Entretanto a Igreja, estrutura mais longeva e organizada que se conhece na face da terra, já havia dado seu passo fundamental em 325 d.C. no primeiro concilio de Niceia sob o comando do Imperador Romano Constantino, sendo que tal concilio deveria criar um consenso entre os religiosos, surgindo também nesse concilio o credo cristão.

    Já os povos nórdicos politeístas haviam se multiplicado, entretanto suas terras eram poucas e não muito férteis, razão pelas quais se viram forçados a navegar em busca de novas terras que pudessem sustentar sua civilização.

    Logicamente novos problemas foram surgindo, pois, as famílias vikings preferiam filhos do sexo masculino os quais com a força dos seus braços poderiam navegar os mares com esse objetivo, assim sendo começou também a falta de mulheres e a busca que era somente por terras férteis passou a ser igualmente por moças para o casamento, isso no final do século oitavo.

    Assim as culturas nórdica e europeia foram convivendo e se mesclando, com dominações, guerras, casamentos e toda sorte de acontecimentos que entrelaçavam povos tão diferentes em matéria de cultura e religião.

    Já por outro lado os senhores feudais europeus observaram que poderiam, de alguma forma, usar o imenso poder da Igreja em benefício próprio, pois ao apoiarem a Igreja a mesma também os apoiava e ajudaria assim a manter a paz e a ordem nos feudos.

    A Igreja aceitava tal organização, passando a ter seus próprios feudos, com o objetivo de produzir alimentos para a subsistência de sua organização e também para amparar os fiéis desesperançados, viajantes, doentes, ou seja, os necessitados.

    Os senhores feudais de início se submetiam ao poder central da igreja, porém observaram que poderiam comandar as igrejas locais indicando apadrinhados para ocupar cargos importantes na estrutura das igrejas sendo que de início Roma aceitou pois ela mesma enfrentava diversos problemas internos para se manter no topo da pirâmide.

    O poder centralizador da Igreja ruiu em 1054 pois os cristãos ortodoxos do oriente não aceitavam certas imposições de Roma e ainda certas premissas não implantadas na igreja ocidental tal como o pão ázimo na eucaristia, extremamente importante para os ortodoxos e ainda a tentativa de Roma introduzir a cláusula filioque no pai nosso alterando-se assim o credo promulgado no primeiro concilio de Niceia surgindo então uma grande discórdia sobre a processão do Espírito Santo.

    E no caso dos nobres, considerando todo esse entrelaçamento dos povos, as famílias dominantes casavam-se entre si, para sempre se manterem na governança, também logicamente surgiram problemas entre elas e foi exatamente ai que houve a tomada da Inglaterra na batalha de Hastings em 1066 pelo Duque normando com seu pequeno exército o qual tomou a coroa inglesa, selando definitivamente o destino dos britânicos, onde o Duque normando passou a ser o rei da Inglaterra porem continuando a ser vassalo do rei Frances.

    O poder da igreja era tão forte que havia uma enorme disputa para se eleger o papa e não era comum existir mais de um pretendente, ou seja, comandar a instituição mais poderosa da época, daí o surgimento de antipapas dentre os quais em sua maioria eram apoiados principalmente pelos imperadores romano-germânicos.

    Por outro lado, os senhores feudais, os quais se organizaram de tal forma a poder até mesmo se contrapor ao poder religioso central de Roma, onde os nobres passaram a indicar seus próprios homens para assumirem postos-chave na igreja tais como arcebispos, bispos e abades provocando a querela das investiduras.

    Roma jamais se deu por vencida e em meio a tantos problemas inclusive enfrentados pela sociedade da época e imaginando fundar uma Teocracia Universal não se furtou em chamar para si a responsabilidade de incitar os fiéis a marcharem para a terra santa, dando início às cruzadas sob a bandeira de Roma.

    Desta forma, disputas ocorriam normalmente entre a igreja e o poder secular e neste contexto nasce Anselmus Candiae de Ginevra, na pequena cidade Italiana do Vale de Aosta, o qual... bom é melhor não falar muito mais, outrossim convidar você como a pessoa interessada no tema a prosseguir com a leitura e entender um pouco mais através das páginas deste romance histórico ocorrido entre os anos de 1033 e 1109, intitulado

    DEUS VULT

    Um homem entre dois reinos.

    O livre arbítrio, leva alguns a acreditar que a vida se extingue com a morte, entretanto o espírito de Deus que habita na criatura humana, anseia pela vida eterna, ainda que de forma inconsciente, nos descrentes!

    O autor

    Capítulo I

    Osmond Drengot vivia tempos de certa tranquilidade na Normandia, ao norte da França¹, mais especificamente na cidade de Rouen, próximo ao Rio Sena. A família do nobre era numerosa e entre vários filhos havia uma belíssima jovem, possuidora de uma beleza sem igual. Era tão linda que sua beleza somente poderia ser comparada à formosura de um anjo louvando a Deus e, como tal, já havia sido pedida em casamento por diversos pretendentes, porém, até aquela data, quando ela já contava com treze anos de idade, nenhum nobre ainda havia sido escolhido para ser seu marido.

    A young lady of an illustrious family in Normandy, was for extremely handsome that she was spoken everywhere as miracle of beauty. She was the object of the wishes of the Young nobility of her time, who all earnestly solicited her marriage. Her reputation soon paid the tribute which is due from all fine women to calumny. William Repostel gave out that had obtained of her all that men could define of women, and which it is criminal in them to grant. This report gained credit, and those who before had been desirous of espousing her, now fought her as a mistress (2)

    Nem é preciso mencionar que por onde ela passava, sempre acompanhada, arrancava suspiros dos nobres, dos viajantes, dos comerciantes e dos camponeses – fossem eles jovens, idosos, solteiros ou casados. Por outro lado, era igualmente invejada pelas mulheres da corte, entretanto, sendo ela inatingível, passou então a ser objeto de ataques maldosos, que brotavam dos mais variados lábios.

    Dentre esses apaixonados, havia um jovem mal intencionado, conhecido como William Repostel, parente de Ricardo II o duque Normando, que não se conformava com aquela situação e desejava a moça a todo custo. Como também não conseguiu seus intentos, começou a caluniá-la, dizendo a todos que tudo o que um homem desejava de uma mulher ele havia conseguido daquela linda e maravilhosa jovem e que se sentia extremamente orgulhoso por ter dormido em seus braços.

    Osmond Drengot, ao tomar conhecimento das calúnias, se revoltou com aqueles comentários indecorosos e desrespeitosos, pois sabia que não eram verdadeiros, uma vez que sua filha não saía de perto da família. A partir de então, passou a aguardar uma oportunidade para resolver aquela insustentável situação, provocada por William Repostel, parente próximo e protegido do Conde normando Ricardo II, que passou a ser seu inimigo número um. Sua filha passou a não mais ser vista como uma jovem pura e merecedora de todo respeito e passou a ser encarada como uma simples meretriz.

    Em 1016, a maior parte das famílias da Normandia estava feliz , pois as colheitas haviam sido boas, o tempo estava quente e Ricardo II, juntamente com uma grande comitiva composta por diversos nobres de dentro e de fora da Normandia, inclusive Nickolaus², Drong Ofmond, Giacommo³ e William Repostel, resolveu aceitar o convite do Conde para juntos desfrutarem do bom tempo e participarem de uma caçada nas florestas de propriedade do duque.

    Nickolaus e Giacommo⁴, cavalgando juntos, fizeram uma boa amizade e, entre uma flechada e outra, falavam sobre diversos assuntos, dentre os quais sobre suas propriedades, os camponeses que viviam em suas terras, as dificuldades da agricultura, os equipamentos utilizados para arar a terra, as formas de armazenar os grãos, guerras e conflitos, além de tantos outros assuntos que surgiam de forma natural.

    Giacommo da Lombardia falava também sobre seu filho Gundulph⁵, que contava então com dez anos de idade. Era um menino esperto e já cavalgava na velocidade do vento sobre sua bela égua Flower, treinava lutas com espadas e lanças, praticava tiro ao alvo com flechas, ajudava a cuidar do feudo, dos camponeses, ajudava sua mãe buscando água no córrego, colhia para ela algumas verduras e plantava algumas ervas para serem utilizadas como medicamento, enfim, era um menino de fazer inveja.

    Nickolaus ouvia tudo atentamente e tecia comentários engrandecedores sobre o filho de seu mais novo amigo. Conversa vai, conversa vem, ele alegremente começou a falar sobre sua família e, sem demora, falou de sua filha Ermemberg de Ginevra⁶, que contava então com dois anos de idade. Disse que ela era uma menina muito esperta, que acompanhava a mãe o tempo todo, principalmente nas orações e que ela havia ficado doentinha, porém estava recuperada, pois fora tratada com muito cuidado por um barbeiro afamado que atendia a todos os nobres do Vale de Aosta, para tratar dos mais variados tipos de enfermidades.

    Esse barbeiro era muito competente e, na maioria das vezes, usava, como ninguém, o conhecido método da sangria e quando não, utilizava emplastros de folhas especiais amassadas com cocô de pombo, formando uma espécie de lama gosmenta, porém medicinal, que era aplicada sobre o ferimento provocado por espada, lança, faca, machado, espinhos ou quaisquer outros e, quase sempre, os resultados eram satisfatórios.

    E a caçada continuava com gargalhadas e muitos latidos dos cães, que sempre acompanhavam os seus donos nesses eventos, todavia muitos deles eram machucados gravemente durante as caçadas, pois eram vítimas dos porcos-espinho, de outras caças de maior porte, ou até mesmo eram mortos por algum animal acuado. Outras vezes, eram sacrificados pelos seus próprios donos em virtude de machucados que os fariam agonizar indefinidamente, caso não fosse colocado um fim em sua existência.

    Osmond Drengot era muito hábil com o arco e com a espada, e estava participando da caçada promovida pelo Conde Ricardo em suas terras. Drengot se desgarrou da comitiva de Ricardo II e seguiu por caminho distinto na floresta, acompanhado por alguns outros caçadores, foi quando em dado momento apareceu em sua frente aquele que havia desmerecido sua filha. Sim, era ele: Repostel cavalgando e rindo muito, se divertindo com seus amigos.

    Mal sabia Repostel que Drengot havia esperado por aquele momento mais do que nunca. Drengot se aproximou lentamente de Repostel e o chamou de filho de uma cadela fedorenta para que todos ouvissem. Acrescentou ainda que ele era um porco nojento e nascera em um prostíbulo de onde sua mãe jamais deveria ter saído. Muitos que não conheciam a história ficaram estarrecidos com aquelas palavras, mas Repostel sabia exatamente o que estava ouvindo e o que lhe esperava, porque conhecia muito bem a capacidade e a fama de como Drengot manuseava a espada. Com sangue nos olhos, fitando-o profundamente, ainda disse que Repostel havia espalhado comentários maldosos, caluniosos e injuriosos sobre sua filha e arrematou dizendo que se ele não sabia segurar sua língua dentro da boca, não deveria também segurar sua espada na bainha e deveria tentar se defender como homem, que ele certamente não era.

    E acrescentou...

    Você não passa de um rato podre, de um cachorro com bicheira e, sabendo que jamais seria homem suficiente para desposar minha filha preferiu tentar manchar sua imagem com mentiras deslavadas, porém essas mentiras serão agora totalmente apagadas da história com o seu sangue

    Repostel sentia o suor descer pelo rosto e suas mãos úmidas, tentava recuar, disfarçar com um sorrisinho amarelo, porém Drengot não estava brincando e se aproximou montando seu cavalo junto ao dele, desferindo-lhe um violento chute, derrubando-o da montaria na frente de todos. Se estatelando ao chão, gritava em alto e bom som: maldito covarde, puxe sua espada e se defenda.

    Drengot, com muita habilidade, pulou atleticamente de seu cavalo e, já com a espada em mãos, correu ao encontro de Repostel. Este, mais por instinto do que por bravura, sem alternativa, havia também puxado sua espada e, neste momento, o Conde Ricardo II, parente próximo de Repostel, se aproximou com sua comitiva e pensou até mesmo em intervir na disputa, no entanto não seria mais possível, pois Repostel já estava com a espada em mãos e todos gritavam:

    Ao duelo, ao duelo, cavalheiros

    William Repostel, vendo a fúria nos olhos de Drengot e sabendo que havia falado asneiras sobre sua jovem filha, suava ainda mais, porque sabia que não poderia evitar aquele embate. Olhou trêmulo para o duque Ricardo II, quase que implorando por sua interferência, entretanto, nesse momento, o Conde normando nada mais poderia fazer além de permanecer imóvel e esperar pelos acontecimentos. Era regra que a honra deveria ser lavada com sangue e conversas jamais poderiam substituir tal direito.

    Aqueles minutos que antecederam o início do duelo entre os dois cavalheiros duraram quase uma eternidade. Todos já estavam desmontados e atônitos pelo que estava acontecendo em um dia que era para ser descontraído, de alegria e comemorações, contudo agora estavam todos ali imóveis, apenas aguardando o início do duelo.

    Apesar de mais jovem, William não era o mais hábil nas armas, pois era acostumado a levar a vida gastando o dinheiro de sua família, em viagens, nas cervejarias, nos torneios e, principalmente, nos prostíbulos. Não ficava um dia sequer sem desfrutar da cama de uma prostituta e não lhe importava se era bonita, feia, baixa, gorda, alta, magra ou até mesmo fedorenta, como a maioria das meretrizes disponíveis. Para ele, bastava que fosse mulher.

    Repostel jamais conseguira se aproximar de uma dama de verdade, mesmo porque não lhe interessava, não tinha tempo para perder com galanteios e namoros infindáveis, outrossim o que lhe interessava era o sexo imediato e sem compromisso, fosse lá com quem fosse, com exceção de sua mãe. No caso das prostitutas, simplesmente pagava e, nos minutos seguintes, já estava sobre elas, desfrutando de seus prazeres, o tanto e como ele quisesse, sem qualquer reclamação.

    Este nobre sem limites era conhecido por espancar as prostitutas, bastava que estivesse bêbado, ou que elas deixassem de fazer algo que ele quisesse, ou que as mulheres fizessem algo de forma mecânica, lá iam pancadas nas pobres coitadas. Fazia isso porque sabia que não seria punido, por ser parente do Conde da Normandia e amigo pessoal do shire reeve local, além de sempre andar com alguns homens que lhe serviam de seguranças. Todos sabiam das maldades desse tal Repostel, mas nada podiam fazer.

    Bernard, o calvo⁷, ajudante da cavalaria de Ricardo II, com nenhum poder ou influência na corte e que, como auxiliar de serviços, também acompanhava os nobres naquela caçada, lembrava-se revoltado de um episódio contado por sua sobrinha de quinze anos, quando um dia pela manhã havia saído de seu humilde casebre para buscar alguns pães no casebre de uma família distante, não mais que cem jardas.

    A pequena Físia⁸, aos doze anos naquele dia fatídico, caminhava cantarolando alegre, como qualquer criança de sua idade, e seguia rumo ao seu destino, quando de repente foi abordada por dois homens, um vestindo roupas nobres e cabelos bem aparados e outro meio maltrapilho. Lembrava-se de que ambos cheiravam a cerveja e vinho, riam alto e arrotavam como porcos e, ao cruzarem com ela, falaram palavras que jamais ouvira antes.

    Aquele que parecia ser nobre agarrou-a pelo braço e com a outra mão tentou acariciar seus pequenos seios. A garota, no entanto, conseguiu se desvencilhar dele, pois estava muito bêbado e cambaleando. O barrigudo e mal vestido que o acompanhava disse alto:

    Repostel, não se preocupe, eu agarrarei essa vadia para você. E agarrou-a pelas costas, deixando-a imobilizada, enquanto o primeiro se aproximou e tentou beijá-la à força, porém ela mordeu-lhe os lábios. Ele, de pronto, deu-lhe um violento tapa no rosto e ela caiu quase desfalecida.

    Arrastaram a pobre inocente para uma estrebaria e Repostel, como um animal no cio, pulou sobre aquela menina magrinha e indefesa, gritando para o amigo segurá-la firme e, mesmo com ela se debatendo, rasgou seu vestido e ficou admirando seus pequenos e mal formados seios, porém tão lindos, como ele jamais houvera visto antes. Passou a acariciá-los e, como estava bêbado, apertou os mamilos com força. Ela gritou de dor, ao passo que o homem não parava e ficava cada vez mais excitado pelo seu sofrimento. Ela esperneava dizendo que era virgem e implorava pelo amor de Deus para que eles a deixassem em paz, porque ela não contaria nada para ninguém.

    No entanto, os gritos de desespero da menina não ecoavam nos ouvidos daqueles animais e como era muito cedo no local onde ocorria a cena de maldade, mesmo próximo ao prostíbulo da cidade, o ambiente estava ermo. Dessa forma, os criminosos se sentiam muito à vontade para continuar com aquele ato, sem se preocupar com ninguém. Apesar disso, Repostel estava com dificuldades para realizar a ação deplorável, em virtude da menina espernear muito, e acabou por aplicar-lhe um violento soco no rosto, provocando um enorme sangramento vindo da boca e do nariz, o que a fez desmaiar e ficar completamente à mercê de seus algozes e prazeres bestiais.

    A pobre inocente só percebeu que ainda estava viva quando algo extremamente rígido penetrou violentamente sua intimidade, sentiu como se estivesse sendo transpassada por ferro em brasa. Suas pernas estavam extremamente trêmulas e adormecidas e aquele homem, bêbado, sobre ela, subindo e descendo num ritmo acelerado e frenético, que aumentava cada vez mais, urrou como um porco na hora da morte, deixando todo o seu peso desfalecer sobre a pequena inocente, quase esmagando-a, chegando quase a sufocá-la.

    Os olhos de Físia estavam paralisados pelo o que estava acontecendo, foi quando o outro homem com nariz enorme, bigodes, gordo, barrigudo e fedorento empurrou Repostel de cima dela. A garota ficou mais aliviada, já que agora podia respirar, entretanto não por muito tempo, pois aquele saco de banha pulou sobre ela e sua enorme barriga fazia muita pressão. Ela apenas ficou imóvel, quase morta de dor devido ao peso daquele segundo homem, que estava tão bêbado a ponto de parecer às vezes desfalecer sobre ela, com aquela coisa nojenta cravada, espetando-lhe. Ela, sentindo a dor da morte, sem forças até mesmo para gritar, permanecia imóvel sob ele, que por vezes parecia acordar fungando como um animal, a continuar com as estocadas violentas e profundas. A violência parecia não ter fim, ela pensava estar sendo rasgada ao meio por uma espada afiada e sentia suas lágrimas brotarem abundantemente e correrem pelo seu rosto angelical. Aquela pobre e indefesa menina tudo o que podia fazer era ficar quieta sendo esmagada pelo saco de banha fedorento e nojento, que fazia movimentos repetidos de subida e descida com uma coisa que parecia um porrete, penetrando-lhe as entranhas.

    Físia relatou que foram momentos aterrorizantes que passara nas mãos daqueles homens maus. Ela era uma menina meiga, frágil e com pouca saúde, mas reuniu suas últimas forças e conseguiu empurrar o porco que estava sobre ela, desfalecido com seu enorme peso, depois de gemer muito alto. Por fim, respirou mais aliviada.

    Com o vestidinho todo rasgado e ensanguentado, ela andava cambaleando após ter conseguido se ver livre daqueles animais, sentindo dores profundas e intermináveis. Andava com muita dificuldade, se escorando nas madeiras das choupanas vizinhas, até se aproximar de uma portinhola. De lá saíram duas prostitutas que vieram ao seu encontro para socorrê-la, suas pernas não obedeciam e ela insistia em cair, sentindo ainda aquela gosma nojenta misturada ao seu próprio sangue escorrendo pelas coxas.

    Seu cunhado, pai da Físia, até tentou vingar a honra de sua filha, mas como William Repostel era um nobre influente e andava sempre acompanhado por vários guerreiros, amigo do shire reeve da região e, ainda, parente do próprio duque normando Ricardo II, não pôde ir muito longe com suas tentativas de matar aqueles que haviam estuprado violentamente sua menina. Até aquela data somente ansiava por vingança, desejando a morte dos covardes.

    O momento demorado em que os protagonistas se entreolharam na presença de todos os presentes, inclusive o tio de Físia, finalmente teve fim, pois William Repostel, percebendo que não teria como ser protegido por Ricardo II e tampouco teria como fugir do chamado de duelo convocado por Drengot em desagravo à honra da filha, se afastou um pouco para reunir a coragem que ainda lhe restava. Em um ato repentino, tentando demonstrar um fio de coragem, sacou sua espada e ficou pronto para o duelo, enquanto todos aplaudiam impulsionando a briga.

    As espadas se cruzaram no ar por diversas vezes e quando um atacava, o outro recuava e se defendia. Logo em seguida os papéis se invertiam, porque os dois nobres eram muito hábeis com as espadas e o resultado final seria praticamente impossível de ser previsto.

    Ninguém ousava tentar adivinhar qual seria o resultado do duelo, pois sabia-se muito bem que Repostel era protegido de Ricardo II, que mandava em toda Normandia e se reportava somente ao Rei da França – Roberto, o Piedoso –, por ser seu vassalo. Entretanto, Ricardo II já externava aos mais próximos que pretendia fazer da Normandia uma terra livre da França. Lembrava-se constantemente que aquelas terras haviam sido conquistadas pelo seu tataravô – Rollo, o andarilho –, através do Tratado de Saint-Clair-sur-Epte, em 911, que concedera-lhe as terras na costa Françesa, em torno da cidade de Rouen, denominada mais tarde de Normandia, terras dos homens do norte.

    Repostel avançou retinindo sua espada na espada de Drengot e os dois se aproximaram até os cabos das espadas se encontrarem. Repostel empurrou o adversário violentamente, que se afastou, colocando-se novamente em posição, levantou sua espada e partiu para cima de Repostel. Este se desequilibrou, mas manteve-se alerta para repelir a espada de Drengot.

    Sob profundo silêncio, o embate prosseguia feroz e os dois estavam dispostos a se digladiarem até a morte de um deles. Ambos já estavam cansados e muito suados, porém não arredavam o pé e a luta continuou. Repostel avançou novamente e atingiu o braço esquerdo de Drengot, que se afastou subitamente. O sangue começou a escorrer, manchando sua camisa de vermelho carmesim, a partir desse momento era possível ver sangue não somente no braço esquerdo de Drengot, mas na sede de vingança que faiscava em seus olhos, refletindo um ódio indescritível e mortal.

    Drengot, hábil guerreiro, não iria se deixar abater por um simples ferimento no braço esquerdo, já que seu braço principal ainda estava em perfeitas condições. Pronto para dar a passagem para o inferno à Repostel, avançou ferozmente brandindo sua espada na lâmina da espada dele, até que, em um descuido, Repostel foi atingido profundamente em sua perna direita e igualmente o sangue começou a fluir abundantemente. Seus movimentos ficavam cada vez mais lentos em virtude do corte produzido pelo fio da espada do seu oponente.

    Repostel mancava e tentava se manter de pé e ereto, porém quase não estava suportando aquela dor terrível na perna. Drengot começou a gritar que em breve ele estaria indo para o inferno por ter desrespeitado e caluniado sua filha, que nada tinha além de uma pureza sem igual, e, por conseguinte, desrespeitado também sua família. Repostel nada falava, só gemia, respirando com sofreguidão, e todos os que assistiam ao duelo perceberam o medo da morte revelada pelos olhos de Repostel, que agora mancava como um coxo, mais se defendendo do que atacando.

    O braço esquerdo de Drengot estava encharcado de sangue causado pelo ferimento e, por outro lado, a perna de Repostel não estava em melhores condições. Ele mancava, se arrastando, quase não podendo se manter em pé, até que nesse momento Drengot avançava mais e mais em direção a Repostel, cansado e ferido, não mais estava suportando o peso da espada em sua mão.

    Drengot, percebendo as enormes dificuldades de seu adversário, continuou a avançar e não perdoou, atingindo-o mortalmente na barriga com tal violência que a lâmina de sua espada o transfixou. Para não deixar o serviço pela metade, torceu a espada dentro do bucho de Repostel por várias vezes, cortando-lhe as tripas e abrindo um enorme buraco em seu ventre.

    O moribundo, com a espada de seu oponente cravada em sua barriga e com o sangue jorrando abundantemente, com as duas mãos segurava no cabo da espada de seu adversário, estava com os olhos arregalados e vidrados, olhava atônito para seu carrasco, mas via somente o infinito, talvez a própria morte. A espada de Drengot, ainda cravada em seu oponente, mantinha-o de pé, foi quando todos ouviram o vencedor dizer bem alto e próximo ao ouvido do moribundo:

    Maldito, morra! Seu rato! Vá para o inferno, pois lá que é o seu lugar!

    Após ter dito essas palavras, de súbito arrancou a espada que ainda estava cravada em Repostel, fazendo seu sangue jorrar fartamente, vindo este a cair em decúbito ventral na presença de todos, até, em poucos minutos, partir deste mundo. Drengot calmamente limpou a sua espada nas roupas de Repostel, dizendo que o sangue daquele maldito não poderia sujar a lâmina da sua espada.

    Depois da tragédia ocorrida durante a caçada, tanto Ricardo II quanto os demais nobres, inclusive Drengot, o vencedor, voltaram para o castelo, sob forte tensão em virtude do duelo. Alguns servos se encarregaram de transportar de volta o corpo de Repostel, completamente banhado pelo seu próprio sangue, entre eles o tio de Físia, que, como muitos, cuspiu no rosto do cadáver, desejando-lhe uma maldita viagem para o inferno, sentindo uma enorme alegria pela morte do canalha.

    O ocorrido se espalhou rapidamente por toda Normandia e todos sabiam que o duelo entre os dois nobres fora justo, porque ocorrera publicamente, de modo que nada se podia alegar contra Drengot. No entanto, o duque não deixaria passar tal ocorrência sem punição, mesmo que fosse pela defesa da honra de uma fedelha a qual não valia a morte de um nobre e parente seu, ainda mais debaixo de seu nariz. Alguma punição deveria ocorrer a título de exemplo, pois, afinal, ele mandava em toda Normandia.

    Na concepção de Ricardo, a punição também deveria ser a morte de Drengot, entretanto, aquela pena seria muito pesada para um homem que estava defendendo a honra de sua família. Após muito pensar e discutir com as autoridades eclesiásticas, principalmente com Roberto II, Arcebispo de Rouen e poderoso Conde de Evreux, resolveu então determinar que Drengot deixasse a Normandia para nunca mais voltar, caso contrário seria sumariamente condenado à morte.

    Como não poderia ser diferente, o sentenciado ficou revoltado com a decisão do Conde normando. Ele não poderia sair daquela terra e deixar para trás sua família, então começou a se preparar para o desterro, levando consigo todos que viviam ao seu lado, inclusive seus irmãos Ascletin, Gilbert, Ralph e Rainulf, e suas mulheres e filhos. Chamou e preparou também para seguir juntamente com ele todos os seus guerreiros, que antes estavam a serviço do duque Ricardo II, eram aproximadamente duzentos e cinquenta valentes, agora prontos para morrer por Drengot em terras distantes. É bem verdade que dentre eles havia muitos criminosos e fugitivos, assim como fora da lei, mas naquele momento isso não importava.

    Drengot ainda não sabia muito bem para onde ir e começou a perguntar para várias pessoas como estava o mundo fora da Normandia. Um viajante informou que estava vindo do sul da Itália, mas que aquela região se encontrava em uma enorme confusão e havia guerras para todos os lados, envolvendo os Bizantinos, que enfrentavam os Lombardos, Sarracenos e Papalistas. Havia ainda guerras contra o Sacro Império Romano.

    Dessa forma, perceberam os retirantes que a Itália poderia ser um verdadeiro paraíso para guerreiros com espadas de aluguel e que não seria tão difícil se instalar naquela região, uma vez que chegariam ao destino com um bom contingente de guerreiros e poderiam lutar para qualquer um dos lados envolvidos nos conflitos, a depender de quem pagasse mais. Eles eram descendentes dos vikings e, portanto, verdadeiros guerreiros mercenários... Assim, partiram da Normandia para nunca mais voltar.

    Chegando em solo Italiano/Mezzogiorno no sul, se dirigiram para uma peregrinação religiosa a Monte Gargano, especificamente ao Monte Ângelo Sul Gargano, indo ao encontro das bênçãos do Santo protetor de todos os guerreiros, o Arcanjo São Miguel.

    Depois dos procedimentos religiosos, foram para a cidade de Bari, também localizada ao sul da Itália, que havia se rebelado contra os gregos/bizantinos. Os revoltosos escolheram para sua liderança um guerreiro chamado Arduino e Mello di Bari, que havia tido toda a sua família sequestrada, presa e enviada para a cidade de Constantinopla.

    Lutaram ainda ao lado do Duque de Benevento, que os havia contratado para guerrear contra os sarracenos que haviam pilhado as costas do sul da Itália. Esses guerreiros normandos lutaram tão bravamente que o duque os deixou responsáveis por diversas propriedades do ducado.

    Em seguida, os irmãos Drengot e seus seguidores decidiram se juntar àqueles que lutavam para repelir as pretensões bizantinas na Itália e perceberam que poderiam tirar vantagens de ambos os lados, pois sendo eles os povos normandos, originários dos vikings, senhores dos mares e das guerras, não perderam tempo em alugar mercenariamente suas armas a quem melhor os pagasse. Ora lutavam ao lado dos lombardos, ora lutavam ao lado dos bizantinos.

    Nickolaus da Burgundia⁹ e Domenico da Lombardia¹⁰ se conheciam desde 1016, quando participaram da trágica caçada nas terras de Ricardo II, onde ocorreu o duelo que ocasionou a morte de Repostel e o exílio da família de Drengot, que foi acompanhada, no desterro, por mais de duas centenas de valentes guerreiros mercenários.

    A partir daquela data, os dois amigos se encontravam sempre que possível e lembravam que haviam se reunido novamente na ocorrência do duplo casamento, de Emma da Normandia com Cnut, o Grande, e Papia de Envermeu com o Conde Ricardo II¹¹. Emma tornou-se rainha consorte da Inglaterra e foi afortunada com uma série de propriedades no país. O seu casamento pretendia principalmente a diminuição da tensão entre os vikings e a Inglaterra, que sempre era assolada pela invasão dos guerreiros.

    Em conversa, os dois amigos recordavam ainda que, em 1020, os dois nobres participaram do exército encarregado pelo resgate de Reinaldo I da Borgonha, marido de Alice da Normandia, filha de Ricardo II da Normandia, com a qual havia se casado¹². Ele estava então sob o poder do nobre Hugo I de Chalon, Conde de Autun e Chalon, Bispo de Auxerre, que o haviam capturado.

    Lembravam também do encontro que tiveram, quando Ricardo III, aos vinte e cinco anos¹³, filho mais velho de Ricardo II, o qual se tornou o 5º Conde da Normandia, pelo falecimento de seu pai. Todos perceberam que Roberto, seu irmão mais novo, não aceitava tal transição de poder, mesmo após ter sido agraciado com propriedades em Hyemês, na fronteira da Normandia, o que absolutamente não o satisfazia, pois pretendia alçar vôos bem mais altos. Nickolas e Giacomo diziam, um para o outro, que essa situação não iria terminar bem entre eles.

    Roberto, o Diabo, irmão mais novo de Ricardo III, foi casado com Adela de França a Condessa de Flandres por um ano¹⁴, e de qualquer forma seu irmão não aceitava o fato dele ter se tornado o Duque da Normandia, mesmo por direito de sucessão, e preparou então um exército para marchar contra Ricardo III vindo a tomar o castelo e a cidade de Falaise.

    Em uma manhã ensolarada de domingo, após a conquista do castelo, Roberto caminhava sobre o muro de segurança do mesmo e, olhando para baixo, observou algumas jovens fazendo o trabalho do dia a dia, pisando couro para lhe conferir cor. Nesse momento, uma moça em especial lhe chamou a atenção, a linda Herleve de Falaise, que com seu olhar trigueiro arrancou suspiros profundos do aspirante ao ducado da Normandia. Ele, imediatamente, se desesperou com a vontade de estar com aquela princesa dos couros.

    Determinou, então, que a trouxesse até sua presença, pois desde que a viu seu coração não parou mais de palpitar intensamente. Quando foi trazida à presença do aspirante ao ducado, este começou a conversar com ela para deixá-la mais à vontade e pediu para que a jovem contasse um pouco sobre a sua vida.

    Com toda singeleza de uma mulher que sabe como conquistar um homem, começou a narração de sua história de vida, dizendo ser filha do curtidor de couros, Fulbert de Falaise, e Doda de Falaise, e que vivia de forma muito simples e tranquila, ajudando seu pai no curtimento de couros e cuidando de seu pequeno filho, Richard fitz-Gilbert, de um ano.

    — Qual a sua idade? Perguntou Roberto.

    — Herleve respondeu: — Dezesseis anos.

    — E seu marido, morreu?

    — Não, eu não tenho marido.

    — Então você é uma mulher que presta favores aos homens?

    — Não, meu senhor, vivo do meu trabalho e de forma honesta.

    — Mas então de onde veio esse Richard?

    — É uma longa história, mas tentarei contá-la da maneira mais curta possível.

    — Roberto, talvez você conheça o poderoso Conde Gilbert Crispino. Por aqui todos o conhecem não só por ser poderoso, mas também por ser mulherengo. Ele, ao me ver ajudando o meu pai curtindo couros, não teve dúvidas em exigir a minha presença em sua intimidade, apesar de meu pai dizer de todas as formas que ele não deveria fazer aquilo com sua filha, que era apenas uma menina. Porém, o Conde Gilbert, mesmo sob os protestos de meu pai e contra a minha vontade, se apoderou de mim e eu tive que me submeter às suas mais diversas e insaciáveis vontades sexuais, foram tantas as vezes que perdi as contas. Minha presença passou a ser o seu vício de todas as noites e também durante o dia, bastava ele se lembrar de mim e estar com desejo. Ele mandava me buscar e eu nada podia fazer a não ser acompanhar seus guerreiros, que me conduziam até os seus aposentos. Todos sabiam que ele era homem de muitas mulheres e isso, por si só, me enojava, porque ele era cliente de quase todas as prostitutas da cidade. Quando ele me conheceu, eu passei a ser mais uma com quem ele se deitava, apesar de ser a sua preferida. Eu me sentia apenas um objeto em suas mãos e até mesmo tive vontade de matá-lo. Oportunidades não faltaram, pois logo após se satisfazer, ele rolava para o lado e permanecia quase desmaiado sobre a cama, dormindo como um animal. Eu poderia facilmente ter cortado seu pescoço, mas não o fiz. Eu não queria jamais que minha alma padecesse eternamente no fogo do inferno. Toda essa tortura aconteceu até o dia em que eu percebi que algo estranho estava acontecendo com o meu corpo, algo estava mudando, sentia vômitos e tantas outras coisas que não eram muito normais. Foi então que me dei conta de que estava grávida de um filho dele. Quando fui chamada novamente para mais uma cena de tortura sexual, eu lhe disse com todas as palavras que estava grávida e não mais poderia praticar aqueles atos com ele, porque a igreja proibia. Disse que se ele insistisse eu deveria me dirigir ao clero e denunciá-lo, então ele decidiu se afastar de mim.

    Roberto respondeu:

    — Sim, conheço esse que você chama de Gilbert Crispino. Na verdade, seu verdadeiro nome é Gilbert de Brionne e temos o mesmo avô em comum, o Conde Ricardo I.

    Herleve se mostrou um tanto quanto espantada e assustada, pois já havia sido subjugada sexualmente por Gilbert, que, na verdade, era primo de segundo grau daquele que agora estava prestes a possuí-la, mas agora por sua livre e espontânea vontade, dado que ela sentia algo diferente por aquele rapaz respeitoso que estava ao seu lado.

    — Vou te explicar melhor. Meu avô, Ricardo I, o destemido, foi casado¹⁵ pela primeira vez com Ema de Paris filha de Hugo o grande Conde de Paris, porém ela veio a falecer¹⁶ sem ter tido filhos; em seguida meu avô se casou a senhora Gunora de Crépon, uma dinamarquesa e com ela teve 6 filhos filhos legítimos, porém ela legitimou diversos outros filhos que meu avô havia tido com diversas outras amantes; porém os filhos legítimos foram Ricardo II , Roberto de Evreux, Mauger, Emma, Avoise e Matilde.

    Ricardo II, o bom, casou com Judith da Bretanha filha de Conan I da Bretanha e com ela teve 6 filhos, Ricardo III, Alice, eu Roberto I, Guilherme, Leonor e Matilda; Ricardo II assumiu o ducado da Normandia¹⁷ vindo então a falecer¹⁸ e logo em seguida meu irmão Ricardo III que era casado com Adela de França, Condessa de Flandres assumiu o Ducado com que jamais concordei e não aceito e luto pelo ducado da Normandia. Se eu conseguir, Gilbert será com certeza meu fiel vassalo. Continuando a história, meu avô teve também uma concubina, dizem que era muito linda, com a qual teve um filho chamado Geoffrey de Brionne, o Conde D`Eu, pai de Gilbert, este que você afirma ser o pai do seu filho Richard Fitz-Gilbert.

    Após essa conversa, os dois já estavam juntinhos, se acariciando, e se amaram intensamente, não só por uma, mas por várias vezes e durante vários dias, pois Herleve obteve autorização de seu pai para continuar a se encontrar com Roberto. A partir desse encontro, os dois se tornaram amantes e esse amor teve como fruto¹⁹, uma linda criança que foi batizada com o nome de William.

    É bem verdade que Roberto havia, sim, sido derrotado pelo seu irmão e fora ainda obrigado a lhe jurar fidelidade eterna. Entretanto, dizia aos seus amigos mais próximos que aquela situação não permaneceria daquela forma e que em breve seria resolvida a seu favor, pois ele se considerava o verdadeiro herdeiro do ducado da Normandia e não seu irmão mais velho, Ricardo III.

    Roberto, apesar de jovem, exercia certa influência entre os serviçais de seu irmão e após prometer presentes e riquezas a uma determinada mulher do convívio do Conde, arquitetou um plano para pôr fim definitivamente àquela situação constrangedora, porque além de não ter herdado o ducado da Normandia, fora derrotado e teve que jurar fidelidade a seu irmão. Ele se sentia deveras humilhado.

    Roberto, sendo um rapaz alto, forte e muito bem aparentado, não teve muita dificuldade em convencer uma apaixonada jovem a lhe ajudar no propósito. Para tanto, prometeu a ela e a seu pai diversos bens, se assumisse o ducado. Na época, as moças, para realçar a beleza do rosto, costumavam esfregar a folha de uma planta chamada Atropa belladonna, que deixava as bochechas do rosto bem coradas, o que chamava muito a atenção dos homens.

    Como na vida nem tudo são flores, essa planta também produzia uma frutinha de cor roxa que, se fosse devidamente esmagada e coada em um pano, poderia se extrair dela um líquido extremamente venenoso. Como o Conde Ricardo III adorava geleia de framboesa, se ela conseguisse introduzir aquele sumo quando estivesse sendo preparada a geleia para o Conde, tudo estaria resolvido e de forma imperceptível, pois a frutinha era doce e não levantaria qualquer suspeita. Várias foram as tentativas, até que²⁰ o êxito chegou, pois o pobre infeliz, ao deliciar-se com sua sobremesa preferida, estava também recebendo seu passaporte para o céu, não deixando herdeiros.

    Roberto, que já estava na expectativa dos acontecimentos, quando o fato se consumou de forma considerada misteriosa, visto que ninguém jamais conseguiu provar absolutamente nada, imediatamente tomou a frente de tudo e, com a ajuda de vários amigos influentes, se tornou o sexto Conde da Normandia. Para a festa de sua posse, Roberto I, conhecido como o Diabo, convidou muitos nobres, dentre eles Nickolaus e Giacommo.

    Roberto, jovem e agora duque da Normandia, não sendo muito bom em política, preferia usar muito mais a força do que a palavra. Por esse motivo²¹, se desentendeu com o seu tio, o poderoso Roberto o duque de Évreux e Arcebispo de Rouen, uma vez que este não lhe apoiava e no fundo sabia ou desconfiava que Roberto havia se tornado Conde da Normandia usando como degrau a sepultura de seu irmão. Esse desentendimento ocasionou o exílio do Arcebispo na França, de onde excomungou seu sobrinho Roberto I e interditou a Normandia.

    Nickolaus havia retornado de uma viagem à Burgúndia e estava em casa desfrutando da companhia de sua esposa, Anelise, e de seus filhos Ermemberg, Lambert e Folcerad. Nickolaus falava animadamente de como havia sido sua viagem, relatava sobre as dificuldades enfrentadas para encontrar abadias para dormir e sobre a alimentação muito escassa, sendo na maioria das vezes apenas uma sopa rala com alguns pedacinhos de legumes e pão escuro. A água era quase impossível de ser bebida, pois cheirava mal e era substituída por cerveja rala, na maior parte das vezes.

    Carinhosamente perguntava à Anelise como os três anjinhos haviam se comportado em sua ausência e se haviam dado muito trabalho a ela. Um rapidamente começava a acusar o outro sobre as travessuras, Lambert dizia que Folcerad havia atirado uma pedra em um gatinho e este saíra miando de dor; Folcerad, por sua vez, acusava Lambert de ter dado um chute em Palmer, o cachorro da família.

    — Ora, ora, – dizia Nickolaus – vocês devem parar de fazer arte enquanto não estou em casa, afinal de contas vocês são os homens da casa e em minha ausência confio tudo a vocês, mas desse jeito vejo que não posso mais viajar...

    E rapidamente eles diziam: não se preocupe Papai, vamos nos comportar da próxima vez que o senhor for viajar.

    Agora, ele perguntava à Anelise²² como Ermemberg havia se comportado durante sua ausência, enquanto Lambert e Folcerad permaneciam quietos e, a esposa lhe respondia calmamente que ela havia permanecido ao seu lado o tempo todo, ajudando-a a cuidar das coisas de casa e rezando com ela, pedindo a Deus para que sua viagem corresse bem e que ele voltasse são e salvo para casa o mais rápido possível.

    Nickolaus, dirigindo seu olhar para Ermemberg, lhe perguntava: — É isso mesmo?

    — Sim, Papai, pois não sei o que seria de mim sem você!

    Nickolaus ficou cheio de si, tomou a menina em seu colo e a abraçou ternamente. Em seguida, abraçou também Folcerad e Lambert, dizendo que ele amava muito sua família e aqueles filhos maravilhosos que Deus e Anelise haviam concedido a ele.

    Nickolaus dizia à sua esposa que era notório que Humberto, Mão Branca, serviu a Conrad II, o imperador do Sagrado Império Romano, e que havia sido recompensado com terras estratégicas, as quais lhe permitiam controlar a passagem pelos alpes entre a Itália e a França, tornando-se o Conde de Savoy. Ele ficou responsável por proteger toda aquela região, que vivia em guerras constantes, e isso muito lhe preocupava em relação à segurança da família.

    Nickolaus aproveitou a conversa descontraída e informou que em alguns dias iria receber um amigo da Lombardia e o seu nome era Giacommo, que vinha com sua comitiva, pois tinham assuntos a tratar e, se retirou para o descanso. Anelise aproveitou e levou as crianças para o lado de fora do palácio onde sempre corriam, pulavam e brincavam alegremente, para que, dessa forma, Nickolaus pudesse descansar em paz após a longa viagem.

    Ermemberg brincava alegremente e corria atrás das lindas e coloridas borboletas, tentava ainda pegar os pássaros que caçavam algum bichinho para sua refeição, entretanto, sempre que a garotinha chegava próximo a eles, se frustrava, pois logo alçavam vôo e ela permanecia imóvel, olhando para o céu, vendo-os voar cada vez mais alto para longe de suas mãozinhas.

    Permanecia pensativa, olhando para o nada, observando o céu dos pássaros coloridos, admirava a criação de Deus, os raios do sol atravessando as nuvens, as suas formas que se assemelhavam a cavalos, pássaros e cachorros, a anjos voando com suas asas abertas, que eram as mãos de Deus a abençoar a terra. Tudo isso Ermemberg conseguia imaginar, com sua jovem e prodigiosa mente, através de seus mais singelos pensamentos.

    Como as asas dos pássaros os levavam para muito longe, ou como as plumas voavam impulsionadas pelos ventos de verão, assim também eram os pensamentos de Ermemberg, que flutuavam pelo tempo e pelo espaço e ela, nesse passeio sem rumo, até mesmo podia ouvir hinos maravilhosos entoados pelos anjos que habitam a morada de Deus. E assim, o seu coração se enchia de alegria e paz.

    A caminho da Igreja ou de volta para casa, Ermemberg e sua mãe conversavam muito a respeito das pregações do Prior, dos desígnios da vontade de Deus e sobre os pecados que os homens cometiam a todo instante. Ela ficava às vezes desesperada, com medo de sua alma padecer por toda eternidade no fogo do inferno, pois diziam os Prelados que todos somos pecadores, visto que já nascemos em pecado e, assim, não merecemos a salvação de Deus.

    Ermemberg não sabia o que fazer para ganhar a salvação, rezava várias vezes todos os dias em prol de sua alma, de seus irmãos, de sua mãe e de seu pai, pois desejava que a sua família desfrutasse do paraíso de Deus.

    O pior de tudo é que todos diziam que o mundo iria acabar em 1033, mil anos após a morte de Cristo. Já que o mundo não acabou no ano 1000, do ano 1033 não passaria. Ermemberg, apesar da tenra idade, se desesperava com a proximidade do fim do mundo, como a maioria dos cristãos que conhecia.

    Por outro lado, se alegrava ao lembrar-se das lindas passagens bíblicas que sua mãe lhe contava todas as noites antes de dormir e sorrindo, cheia de alegria, lhe vinha à mente principalmente o que Jesus dizia em Mateus 19:14:

    Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas.

    Dessa forma, em seus sonhos mais singelos, dizia a si mesma sou criança, portanto o Reino dos céus me pertence e sonhava com o Deus altíssimo, em todo o seu esplendor, que lhe conduziria a esse reino tão maravilhoso pelas mãos. Tais pensamentos a enchiam de tanta alegria que seu peito até parecia que iria explodir!

    A pequena Ermemberg, ainda muito jovenzinha, não conseguia entender como uma criança como ela, que não fazia mal nem sequer para uma formiguinha, poderia padecer no fogo do inferno para sempre. Cada vez que se lembrava das pregações do Prior, um calafrio lhe subia através da espinha e a menina chegava até mesmo a suar frio de tanta paura.

    No quintal da mansão, havia um maravilhoso jardim repleto de vários tipos de flores, incluindo rosas de diversas cores, pois Nickolaus sabia muito bem que Ermemberg e sua mulher Anelise adoravam flores. Esse era o local preferido das duas, que passavam horas e horas do dia apreciando as lindas flores, acariciando-as e se deliciando com os mais variados perfumes que exalavam. Ermemberg balançava os braços, dançava naquele jardim, pois agora estava sozinha, uma vez que sua mãe havia ido para dentro da mansão conversar com seu pai e seus dois irmãos brincavam correndo atrás dos gatos, que eram responsáveis por afugentar os ratos que insistiam em viver com a família.

    Eis que enfim todos daquela família observaram, lá no horizonte, se aproximando, uma comitiva composta por vários homens, porque na época era muito arriscado e perigoso viajar sozinho, especialmente à noite, quando as florestas estavam infestadas de foras da lei, que, por um pequeno pedaço de pão seco, não titubeavam em sacrificar seu possuidor, fosse ele homem, mulher ou até mesmo uma criança indefesa. Essa era a lei do desespero pela sobrevivência.

    Caso o viajante carregasse um animal qualquer, tal como um porquinho, uma galinha, um esquilo ou pombas em gaiolas, a morte era quase certa, pois a maioria dos foras da lei se armavam com porretes, facas, espadas, pedaços de pau e pedras. Normalmente, o alvo era a cabeça do infeliz viajante que, ao ser atingido, era espoliado e perdia suas roupas, seu alimento e, por vezes, agonizava até a morte.

    Ao chegar, Giacommo foi muito bem recebido por Nickolaus e os dois sempre falavam em francês. Os seus acompanhantes comeram algo rapidamente e foram se refrescar no Rio Dora Baltea, aproveitando para dar água aos animais, pois a viagem fora longa e exaustiva. Na relva, os animais também podiam se deliciar nos verdejantes pastos do Vale de Aosta.

    Nickolaus conduziu Giacommo para dentro do palácio, que estava bem fresquinho e agradável, pois era mês de abril, com todo o esplendor da primavera. Os camponeses alegremente gradavam a terra próximo à Grestain para posterior semeadura.

    Nessa época florida do ano, Ermemberg se sentia extasiada e estonteada pela beleza dos jardins, pelas cores das flores, pelo perfume exalado que enchia o ar e, sempre que possível, colhia uma rosa para agradar sua querida mãe. Porém, nesse dia foi um pouco diferente, pois, ao se inclinar para apanhar uma rosa, sentiu uma picada em seu dedinho, percebendo que uma abelha voou da flor que tentara colher.

    Ficou chorando e se recriminava dizendo a si mesma que aquilo que intentara era pecado, por isso a abelha lhe picara. Sim, era pecado, pois Deus havia feito todas aquelas flores para serem apreciadas no jardim e não para serem colhidas e morrerem em poucas horas. A dor era aumentada pelo sentimento de remorso e, entre soluços e choro, pensava aquela doce e meiga menina que até mesmo iria morrer. Desesperada, procurou pela mãe, que era seu porto seguro.

    Quando Anelise ouviu o choro de desespero da pequena Ermemberg, não pensou duas vezes e imediatamente foi ao seu encontro, passando pelo salão onde seu marido conversava de forma muito empolgada com seu visitante. Eles estavam próximos ao centro do salão, o local onde a família costumava acender o fogo para manter o ambiente aquecido nos rigorosos dias de inverno. A mãe seguiu ao encontro de sua filha, que mostrava seu dedinho, sem querer sequer olhar para ele, com medo de ver alguma coisa terrível.

    Sua mãe pediu para olhar sua mãozinha e, trazendo-a para fora do ambiente, à luz do dia, percebeu que realmente se tratava de uma picada de abelha, cujo ferrão ainda estava no local. Ermemberg apertava o dedinho para amenizar a dor.

    Anelise, pacientemente, lhe explicou que tudo iria ficar bem e pediu para que ela ficasse tranquila enquanto cuidadosamente retirava o pequeno ferrão da abelha, cravado em seu dedo. Em seguida, as duas se dirigiram à cozinha para limpar o ferimento com água morna e, logo após a limpeza, Anelise conduziu sua filha ao local onde cultivavam ervas medicinais e verduras para o dia a dia. Apanhou um pouco de salsa, triturou-a entre os dedos até formar um suco, que aplicou sobre o ferimento, fazendo movimentos rotatórios. Depois, pegou um pouco de terra e misturou com urina, para colocar sobre o machucado e prender com um paninho.

    Sua mãe lhe perguntou como aquela abelha havia picado o seu dedinho e ela lhe respondeu que foi colher uma rosa vermelha para lhe dar de presente, quando a abelha, que estava escondidinha, lhe picou e voou em seguida. Dizia Ermemberg que aquilo só poderia ter sido castigo de Deus pelos seus pecados.

    No mês de abril, os dias eram mais longos do que as noites e a temperatura era mais amena e agradável, razão pela qual não se fazia necessário acender o fogo para aquecer o ambiente onde a família se reunia na maior parte do tempo. Era solstício de verão.

    A família vivia ao norte da Itália, no Vale de Aosta aos pés dos Alpes, e seu palácio era construído de pedras, com um enorme salão para o encontro dos nobres e da família e uma pequena cozinha com forno a lenha do lado de fora, para evitar acidentes, como incêndios. Lá, não somente era onde se cozinhava, mas onde se fazia pão a partir do trigo moído no próprio feudo.

    Havia ainda um dormitório, onde a família toda repousava e nas épocas mais frias um aquecia o outro. A porta da entrada da casa era baixa, de modo que era preciso se curvar para entrar e, o vento frio pouco entrava por ela. Havia quatro pequenas janelas no cômodo maior, por onde quase não entrava claridade, mas eram favorecidas pela saída da fumaça quando se acendia a fogueira para o aquecimento do ambiente nos dias frios, além do buraco no telhado para a mesma finalidade.

    No ambiente onde todos dormiam, havia uma passagem, por onde se alcançava um enorme galpão que abrigava os animais, tais como as galinhas, os patos, as ovelhas, as vacas, os porcos e os cavalos. Esses animais, principalmente os de porte grande, eram mantidos presos à noite, para evitar que fossem roubados, fugissem ou que fossem presas de algum outro animal selvagem que vivia na floresta. Os animais, abrigados próximos ao quarto da família, também serviam para fornecer calor ao ambiente durante os invernos rigorosos que assolavam toda região.

    O sonho do pai de Ermemberg era colocar placas transparentes nas janelas, pois ele ouvira dizer que havia uma técnica que possibilitava a entrada da claridade nos ambientes e, ao mesmo tempo, bloqueava a entrada de vento, de frio e de chuva. A produção desse material consistia em trabalhar uma pequena esfera soprada e, através de um movimento de rotação em fornos, similares àqueles usados por ferreiros que faziam espadas para as batalhas, se conseguia uma espécie de tábua transparente, se fosse aplicada adequadamente uma determinada rotação sobre esse material aquecido.

    Entretanto, esse era apenas um sonho, visto que essas tábuas transparentes eram muito caras, uma vez que haviam pouquíssimas pessoas que sabiam como conseguir essa proeza, os artesãos de Veneza, especificamente os que trabalhavam nas Ilhas de Murano, dominavam essa técnica de fabricação das tábuas transparentes. A produção desses materiais era muito vigiada para que outros não copiassem a técnica.

    Ermemberg contava então com quatorze anos²³, era uma criança feliz e saudável e se preocupava somente em aprender e estudar as lições que sua mãe lhe ensinava, que consistiam em ler e escrever Francês e Latim, ir à igreja todos os dias para assistir às missas e decorar passagens do Santo evangelho.

    Nickolaus, na conversa com seu amigo, explicava que em suas terras todos os camponeses que não estivessem doentes, ou mulheres às vésperas de dar a luz, ou velhos que não mais podiam com seus anos, acordavam com os primeiros raios do sol e, logo após engolirem rapidamente um pouco de sopa feita com pão, seguiam para o campo e trabalhavam duro até o pôr do sol, pois era isso o que lhes pertencia, o trabalho de sol a sol.

    Os casebres onde habitavam os camponeses eram construídos com pedaços de galhos das árvores, fincados no chão e firmemente amarrados com cipó, para ficarem presos uns aos outros. Para que o vento frio e a chuva não entrassem entre os galhos, era produzida uma espécie de massa contendo terra, água, capim e cocô dos animais, essa mistura era bem pisoteada formando uma lama, que era aplicada com as mãos sobre os galhos fincados no chão. A aplicação dessa massa iniciava-se de baixo para cima, tanto na parte interna quanto na parte externa do casebre.

    Na cobertura, alguns outros galhos eram também amarrados com cipó nas extremidades da choupana. Após esse procedimento, preparava-se uma porção contendo capim bem comprido, que era amarrado em feixes, preso entre eles e nas madeiras da cobertura. Dessa forma, evitava-se o excesso de chuva no casebre, bem como de frio e neve. Quando um camponês estivesse dentro da cabana, sua cabeça praticamente encostava no teto, que era bem baixinho, para, dessa forma, economizar madeira, barro, capim e tempo para sua construção.

    Essas habitações normalmente ficavam próximas aos rios, porque dessa forma era fácil pegar água para cozinhar e jogar as fezes produzidas pelas famílias e pelos animais domésticos. As famílias dos camponeses geralmente eram compostas por doze a dezesseis pessoas, contando o pai e a mãe, que, sendo saudável, tinha quase a obrigação de dar à luz a um filho por ano. Este se tornaria igualmente camponês para trabalhar na terra do feudo.

    Essa pequena cabana era normalmente composta por dois ambientes, sendo um deles utilizado para todos dormirem juntos sobre o capim, para um aquecer o outro nas épocas mais frias do ano, e o outro, igualmente pequeno, utilizado para a família se alimentar. Nesse segundo compartimento, existia uma tábua comprida, sobre a qual eles comiam, usando as próprias mãos, em suas tigelas de barro. Havia ainda um banco, também comprido, para que se sentassem. Apesar disso, a família normalmente comia do lado de fora do casebre, porque o ambiente era quente, desconfortável e cheio de ratos, mosquitos, pulgas e outros insetos.

    A vida desses camponeses era no campo e eles não precisavam nem mesmo de lugar específico para comer e dormir, pois existiam única e exclusivamente para trabalhar de sol a sol, desde o nascimento até a morte, e não havia necessidade de qualquer outra coisa para uso pessoal, apenas alguns trapos para cobrirem seus corpos fedorentos.

    Às vezes, uma ou outra família possuía um baú onde se guardava algumas poucas coisas, tais como pedaços de pano de algodão cru, pão seco, calçados, roupas velhas e pedaços de couro para fazerem botas. No mais, comiam com as mãos em recipientes feitos de barro, ou escavados em algum pedaço de madeira. Quando o alimento era muito líquido, utilizavam um pedaço de madeira com uma escavação na ponta que retinha o ensopado, por exemplo, sendo possível levá-lo até a boca.

    Os camponeses jamais saíam do feudo, desde o nascimento até a morte, que ocorria normalmente entre os trinta e os trinta e cinco anos de idade, pois ali eles tinham tudo o que precisavam, mesmo porque não era permitido jamais que tentassem sequer arrumar qualquer casamento fora do feudo. Eles pertenciam à terra e, portanto, deveriam dar um jeito e arrumar casamento no próprio feudo para procriar o máximo possível. Boa parte das crianças morria com

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