Heloísa
De Nina Sena
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Heloísa - Nina Sena
Nina Sena
HELOÍSA
Edição do autor
2023
Copyright © Nina Sena 2023
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito (Lei n. 9.610/1998).
Esta é uma obra de ficção. Os nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos é mera coincidência.
Capa: Nina Sena
Foto: S. Radicke
ISBN 978-65-00-64023-6
PARA TODO ADULTO FERIDO NA INFÂNCIA
Prefácio
Quando eu escrevia com muito mais frequência em meu blog entremaeefilha.blogspot.com, recebia muitos comentários, mensagens e e-mails de mulheres quando eu postava algo sobre família. Um dos temas que mais surgiam nessas trocas de mensagens invariavelmente, era o abuso sexual que muitas das minhas leitoras sofreram quando crianças. Muitas me confessavam terríveis situações que viveram naquela que deveria ter sido uma das melhores fases da vida de um ser humano: a infância. Alguém, geralmente muito próximo delas, destruiu a boa recordação que essas mulheres deveriam guardar dessa maravilhosa época, deixando dolorosas e indeléveis marcas naquelas adultas feridas que as meninas se transformaram.
Um dia, sem ter certeza do que eu estava falando, pedi às minhas leitoras que me escrevessem um e-mail contando suas histórias, ao mesmo tempo em que lhes pedia autorização para que no dia em que eu escrevesse um livro, pudesse utilizar parte de seus depoimentos. Recebi diversos textos tristes, carregados de muita dor e sofrimento, os quais publico neste pequeno romance.
Estão todas elas aqui, numa mistura de relatos e nomes trocados para não comprometê-las, minhas queridas leitoras e amigas, que de forma tão terna, confiaram suas experiências a mim. Nunca tive a pretensão de agir como psicóloga, terapeuta ou pastora de ninguém, apenas emprestei meus ouvidos para ouvir aquelas mulheres. Na época, as auxiliava dando-lhes a atenção que eu podia, mesmo sabendo que não poderia ajudá-las de verdade. Aquelas mulheres sempre me comoveram e muitas delas só precisavam que alguém as ouvisse, sendo solidário à sua dor.
Este é o meu primeiro romance. Sou na verdade uma cronista, mas escrever de forma fictícia
foi o melhor jeito que achei para apresentar de maneira mais leve as pesadas histórias que ouvi, dentro deste tema complicadíssimo e ainda hoje tão pouco abordado. Agradeço a todas as meninas que confiaram na minha discrição.
Infelizmente não pude ajudá-las, é verdade, porém hoje conheço Quem pode. Naquele tempo eu não sabia. E estou aqui orando por todas, para que elas encontrem o Senhor que as ama, independente do seu passado.
E sim, no livro há um final feliz, porque eu sinceramente acredito que essa possibilidade existe. Mesmo que haja tanto sofrimento envolvido.
O ABUSO SEXUAL INFANTIL NUNCA É CULPA DA CRIANÇA!
O erro
Heloísa abriu a porta do pequeno apartamento e quase não acreditou no que via. Na sua frente, no corredor escuro do prédio em que morava há um ano, lá estava ele. Com seu eterno sorriso encantador. Ela deixou seus tecidos que havia começado a costurar alguns dias antes, caírem sobre a cama e o abraçou feliz e surpresa. O que ele fazia ali?
– Eu te procurava há tanto tempo Helô, você evaporou como fumaça! Então, lembrei de ir à casa da sua mãe e ela me deu seu endereço. O que você faz morando aqui neste prédio velho? A última vez que tive notícias suas, soube que estava morando com sua irmã – falou ele, de forma rápida e sem pausa, parecendo até mesmo estar feliz em revê-la.
Ela não havia evaporado, apenas decidira recomeçar uma nova vida longe dele, mas preferiu não responder exatamente assim, agindo como sempre fez, cercando-se de cuidados para não ferí-lo.
– É que minha irmã casou e foi morar em Minas Gerais – respondeu uma Heloísa ainda boquiaberta com aquela surpresa. Aliviada, porém, ao pensar que era muito bom que seu namorado não estivesse na cidade. Ele não gostaria nadinha de ver quem resolveu lhe visitar hoje. Denis havia viajado de férias da universidade para rever sua família e telefonava para ela quase todos os dias. E agora, Martín estava ali, como um fantasma voltando do passado, e ela não estava entendendo o porquê de se sentir pela primeira vez, tão bem e tão leve perto dele. Alguma coisa em seu coração dizia que estava finalmente, liberta daquela opressiva paixão que alimentava por ele há mais de três anos.
– Moro aqui há pouco mais de um ano, porque o aluguel é bem mais barato. Larguei meu último trabalho e para ajudar com os gastos na faculdade, faço de vez em quando uns bicos para ganhar um dinheirinho, hoje estou terminando algumas encomendas. Ainda gosto de costurar – comentou meio sem graça, quase com vergonha dele.
Ele olhou em volta. Viu a velha máquina de costura comprada por ela de segunda mão, em um cantinho do quarto. Fez um comentário sem importância e esperou que ela continuasse:
– Olha, preciso empacotar estes últimos e entregá-los a uma amiga que mora a uns três quarteirões daqui, você poderia ir comigo e depois, podemos tomar uma cerveja, o que acha? – sugeriu, Heloísa, pensando que seria a chance de mostrar o quão contente estava por namorar Denis.
Aproveitaria para perguntar como anda a sua vida e ouvi-lo com real interesse como sempre fez. Ela por sua vez, estava feliz com sua vida atual, apesar de todas as dificuldades que vez ou outra precisa enfrentar: ainda aquele mês, ela teria que tentar explicar à cobradora do cartão de crédito, que precisava parcelar novamente a dívida que se refaz a cada novo fim de semana, quando o restaurante universitário não está aberto e precisam ir à pizzaria mais próxima.
Quando a situação é mais difícil, ela engole o orgulho e vai almoçar na casa de seus pais, levando numa vasilha um pouco para o namorado que ficou em casa. Ele mora na mesma rua que ela, e como vive cansado, permanece em casa enganando o estômago com amendoins trazidos do bar onde tomaram uma cerveja na noite anterior.
Foi Denis quem a convenceu a morar ali, quando se conheceram num período em que Heloísa havia começado a faculdade e ido trabalhar numa empresa do Distrito Industrial: foi o único emprego que ela conseguira. O chefe era insuportavelmente arrogante e a humilhava constantemente com suas grosserias e prepotência, mas ela precisava do trabalho, afinal, tinha contas a pagar, precisava ajudar na despesa da casa que alugara com a irmã, depois que ambas decidiram sair da casa dos pais e dividir um pequeno apartamento. Até que a irmã se apaixonasse, casasse e fosse embora. Viver longe, no sudeste do país.
Mas agora estava, mais uma vez, frente a Martín, que aceitou esperá-la terminar de embalar as encomendas de costura e foram juntos entregar. Ela recebeu em troca alguns poucos cruzados reais e seguiram em direção ao barzinho que ela gostava de frequentar com Denis – o bar com a cerveja mais gelada da cidade, quase em frente ao Teatro Amazonas.
Naquela tarde, a cidade estava cheia de turistas alvoroçados. Havia três ônibus estacionados na praça São Sebastião e os visitantes circulavam sobre o chão ondulado em preto e branco, que os amazonenses muito orgulhosos garantem existir antes das famosas ondas do calçadão de Copacabana. O guia turístico parecia impaciente com seu uniforme molhado de suor, e o garçom mais divertido do bar, ia e vinha com cara feia entre as mesas, nem mesmo a cumprimentou. Será que ele estranhou vê-la com aquele mauricinho? Imaginou que ele poderia comentar com Denis, quando este retornasse de São Paulo, mas ela resolveu não pensar nisso. Afinal, estava sendo um dia especial aquele e a cerveja do Bar do Armando resfriava não somente o calor exagerado que fazia em Manaus naquela tarde, como também, sua cabeça, que fervilhava cheia de coisas para contar e precisava ordenar as ideias em frente a ele, seu ex namorado.
Um romance que durou aos olhos dos outros, apenas cinco meses, mas que já existia antes e perdurou muito tempo depois do fim, propriamente dito.
Ela sabia que Martín nunca se sentara ali antes, naquelas cadeiras e mesas de ferro, manchadas de cerveja e ferrugem.
Ele não costumava frequentar lugares assim. Como bom argentino, adorava ir às churrascarias da cidade e tomar um bom vinho ou a sua água tônica com rodelas de limão e gelo. Heloísa o acompanhava ocasionalmente, quando ele resolvia que ela seria a convidada da vez. Aprendeu com ele a valorizar uma boa carne vermelha, a saber que tipo de peça era aquela, como se chamava cada parte do boi, a combinar as saladas e principalmente, não fazer cara feia quando algum prato não era do seu agrado:
– Não faz cara feia Helô, as pessoas perdem o apetite! – dizia ele em tom de reprovação, enquanto ela se envergonhava da falta de jeito. Vinha de uma família simples, que foi num passado não muito distante, pobre. Não lembra de ter ido a restaurantes ou comido tanta carne na infância. Recorda-se muito bem, porém, dos almoços de domingo em família, quando suas tias e as avós se reuniam na casa de uma das filhas e elas cozinhavam juntas as iguarias amazonenses tão apreciadas por todos, como tambaqui, pirarucu, vatapá, enquanto as crianças iam brincar na rua.
E agora estavam os dois ali novamente, naquele barzinho movimentado, conversando animadamente, como antigamente, num tempo em que ele confiava nela e lhe fazia confidências até mesmo íntimas sobre sua vida. Mas ele, tão descontraído e alegre, demonstrava querer mais e insistiu para revê-la mais tarde. Combinaram de se encontrar naquele mesmo dia.
Na verdade, ela não precisava sair com ele aquela noite.
De alguma maneira, sentia-se satisfeita com a tarde que passaram juntos. Não precisava mais daquilo. Pensou no quanto isso era estranho para ela, que nunca teve muito dele, que nunca se sentira plena em sua companhia, porque simplesmente, ele nunca se doava completamente. Martín estava sempre cheio de pessoas à sua volta, parecia um imã humano, atraindo a todos. Era simpático, agradável, engraçado, as pessoas o adoravam! Sempre que ele ia buscá-la em um de seus carros, na casa da sua mãe, pessoas se aproximavam para saber das suas novidades, ouvir suas anedotas, encostar no seu carro, estar perto dele, enfim.
Martín, podia-se dizer, era uma sensação na rua de Heloísa, e era certamente o namorado que todas as meninas gostariam de ter. Ia algumas vezes, em sua motocicleta enorme, usando óculos escuros e sempre sem capacete, numa época em que a polícia só cobrava este acessório dos motociclistas, quando estes saíam da capital em direção a estrada, para outras pequenas cidades. Ele