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O tempo e a ocasião: o encontro Espinosa Maquiavel
O tempo e a ocasião: o encontro Espinosa Maquiavel
O tempo e a ocasião: o encontro Espinosa Maquiavel
E-book542 páginas7 horas

O tempo e a ocasião: o encontro Espinosa Maquiavel

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Sobre este e-book

A Editora Contracorrente tem a satisfação de anunciar a publicação do livro O tempo e a ocasião: o encontro Espinosa Maquiavel, de autoria do aclamado filósofo italiano Vittorio Morfino. Nesta obra Morfino aborda uma questão que foi negligenciada por quase dois séculos e posteriormente pouco explorada no século dezenove: a relação entre Maquiavel e Espinosa.

Morfino enfoca, de um lado, os textos maquiavelianos presentes na biblioteca de Espinosa e, de outro, as passagens do "Tratado Político" em que Espinosa cita e comenta Maquiavel. Além disso, o autor acrescenta duas perspectivas de análise relevantes. Primeiramente, investiga as obras da biblioteca de Espinosa que abordam ou reproduzem, de forma explícita ou disfarçada, o pensamento maquiaveliano. Essa abordagem busca revelar as interpretações concretas de Maquiavel que influenciaram Espinosa na formação de sua própria interpretação filosófica. Em segundo lugar, Morfino examina o papel da citação nas obras de Espinosa. Essa análise estratégica permite destacar o significado da menção frequente ao nome de Maquiavel no léxico espinosano. Com essa abordagem abrangente, o autor pretende lançar luz sobre os traços materiais e as conexões conceituais entre Maquiavel e Espinosa, fornecendo uma contribuição fundamental para o entendimento dessa importante relação filosófica.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento7 de nov. de 2023
ISBN9786553961302
O tempo e a ocasião: o encontro Espinosa Maquiavel

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    Pré-visualização do livro

    O tempo e a ocasião - Vittorio Morfino

    CAPÍTULO I

    MAQUIAVEL NA BIBLIOTECA DE ESPINOSA E NOS SEUS TEXTOS

    A questão da relação entre o pensamento de Maquiavel e o de Espinosa pressupõe a análise preliminar de um conjunto de dados empíricos que constituíram a base a partir da qual esse problema foi posto no curso do nosso século: trata-se, de uma parte, dos textos maquiavelianos presentes na biblioteca de Espinosa e, de outra, das passagens do TP nas quais Espinosa cita e comenta Maquiavel. A essa perspectiva de análise se deve juntar, de uma parte, o estudo das obras da biblioteca de Espinosa que discutem ou repetem de modo aberto ou mascarado o pensamento maquiaveliano, de outra, o estudo do papel da citação nas obras de Espinosa: o primeiro tipo de análise permitirá pôr à luz os traços materiais das interpretações de Maquiavel a partir das quais Espinosa elaborou, presumivelmente, sua própria interpretação, enquanto o segundo nos permitirá evidenciar o significado estratégico da ocorrência do nome de Maquiavel no léxico espinosano.

    1.1 Os textos de Maquiavel na biblioteca de Espinosa

    Deter-nos-emos, em primeiro lugar, sobre os textos de Maquiavel presentes na biblioteca de Espinosa. Sobre isso, parece-me justo recordar, como observação metodológica preliminar, que a presença de um texto no inventário de sua biblioteca não significa ipso facto que este tenha sido lido ou estudado por Espinosa e que, assim, sobre o inventário não se pode decalcar o espectro do horizonte cultural de Espinosa. Isso se estende evidentemente a um leque muito mais vasto e compreende, além dos livros que eventualmente escaparam ao inventário, aqueles que ele leu sem tê-los possuído e toda aquela aura de conhecimento que deriva da comunicação oral nas diferentes práticas sociais.

    Feita essa demarcação, vamos à análise daquilo que Kant definiria como um fato histórico, enquanto ratificado por uma autoridade local. No inventário conservado nos arquivos notariais de Haya dos objetos deixados por Espinosa e vendidas em leilão após sua morte, duas são as indicações que concernem a Maquiavel:²⁵

    Entre os livros in quarto, no nº 14: Opere di Machiavelli. 1550.

    Entre os livros in octavo, no nº 16: Machiavel. Basileia.

    A primeira das duas indicações corresponde à edição das obras de Maquiavel, sem indicação de lugar e data de 1550, chamada Testina pelo tipo de caractere usado para a impressão (o testino). Sabemos há mais de um século, graças aos trabalhos de Bartolomeo Gamba, que essa edição foi objeto de cinco diferentes reimpressões;²⁶ Gerber pôde estabelecer que essas cinco reimpressões são todas do século XVII e indicou sua ordem de aparição através das letras A, B, C, D, E.²⁷ Enfim, Bonant estabeleceu a data provável da aparição de cada um dos livros:

    A viu a luz fora de Genebra, em 1615, B devido às prensas de Pierre Aubert apareceu em 1628, C foi executada a custos comuns por Pierre Aubert e Pierre Chouet em 1635, D sai da tipografia de Jacques Stoer por conta de Pierre Chouet e eventualmente dos herdeiros de Pierre Aubert em 1640, enfim, E foi impressa por Samuel Chouet em 1660.²⁸

    Bonnant fornece também uma explicação totalmente convincente da pré-datação das Testina:

    (...) quis-se dar a esses textos a autoridade de uma edição próxima das primeiras publicações do autor. Além do que, tomando a data de 1550, de nove anos anteriores à condenação dos escritos de Maquiavel pelo Santo Ofício, a obra se beneficiava, de alguma maneira, da aprovação dada a esses escritos da parte do Papado.²⁹

    A presença dessa obra na biblioteca de Espinosa nos fornece um dado inequívoco: Espinosa teve, no mínimo, a possibilidade de ler a obra integral de Maquiavel em italiano, língua que parece ter estado em grau de compreender, como testemunha a presença de um dicionário italiano-espanhol³⁰ e de uma outra obra em língua italiana, Le visioni politiche de Gregorio Leti.

    A segunda indicação se refere a uma tradução latina de O príncipe que teve uma larga difusão e que constituiu o ponto de partida da recepção de Maquiavel no nordeste da Europa. Trata-se muito provavelmente³¹ da tradução saída em Basileia

    em 1560;³² a edição foi realizada por dois italianos, o tradutor Silvestro Tegli e o impressor Pietro Perna, refugiados em Basileia para escapar às perseguições religiosas.³³ Na introdução à tradução, Silvestro Tegli toma a ritual distância do texto apresentado:

    Do mais, não ignoro por causa de quais erros afirma-se que se trata de um autor suspeito, nem os motivos avançados para decretar que seria preciso afastar as almas dos homens de sua lição: certamente, precisaria antes de tudo e em toda parte celebrar-se a glória do soberano príncipe, que apenas dele se ocupasse, que ele fosse proposto como fim último de nossos estudos. Os homens, contemplando e admirando a obra de Deus, são feitos para cantar louvores, honrar, venerar e servir com o espírito puro o soberano autor de toda coisa. Uma vez colocado tal fundamento, nada haveria que não pudesse ser de alguma utilidade para nós.³⁴

    No que concerne à tradução, não podemos aderir completamente ao juízo de Procacci, segundo o qual o tradutor considerou prudente censurar algum passo mais escabroso e servir-se do latim para domesticar certas expressões mais cruas.³⁵ A bem ver, em vez disso, Tegli realiza, até onde a língua lho consente, um decalque latino do italiano de Maquiavel.³⁶ É certo que não mantém homogeneidade alguma na tradução dos termos, mas isso, mais que domesticar o estilo maquiaveliano, o torna por demais confuso. Traduz, por exemplo, com o termo populus tanto popolo como sudditi, enquanto utiliza multitudo para traduzir università, universale, sudditi, moltitudine. Da mesma forma traduz ordini seja com leges et instituta, seja com leges (utilizado obviamente também para traduzir leggi), ou ainda com instituta ou com ordines.³⁷ Em todo caso, essa descontinuidade não produz nenhum efeito interpretativo de particular relevo.

    Quanto à censura de Tegli evocada por Procacci, ela se limita a dois casos. A primeira omissão é de fato sem significado e corresponde provavelmente a uma simples falha do tradutor. Tegli, com efeito, não traduz a passagem do capítulo VI no qual Maquiavel afirma que di qui nacque che tutti e’ profeti armati vinsono, e li disarmati ruinarono (daqui nasce que todos os profetas armados tenham vencido e os desarmados se tenham arruinado), mas não esconde nada da argumentação maquiaveliana do capítulo, de que essa fórmula não é nada mais que um feliz resumo.

    O segundo caso respeita ao capítulo XVIII, no qual a intervenção do tradutor é mais complexa. Em primeiro lugar, após haver traduzido as primeiras duas linhas do capítulo (Quam sit omni laude dignum in principe pactam fidem servare, atque vitae integritatem sine ullo dolo malo retinere, nemo est qui non intelligat [Quão louvável seja num príncipe o manter a palavra dada e viver com integridade e não com astúcia, qualquer um entende),³⁸ Tegli elimina a referência maquiaveliana à experiência de seu tempo, em que foram vistos quelli principi avere fatto gran cose, che della fede hanno tenuto poco conto, e che hanno saputo com l’astuzia aggirare e’ cervelli degli uomini; e alla fine hanno superato quelli che si sono fondati in sulla lealtà (terem feito grandes coisas aqueles príncipes que tiveram em pouca conta a palavra dada e que souberam, com a astúcia, dar a volta aos cérebros dos homens: e, no final, superaram aqueles que se fundaram na sinceridade).³⁹

    No parágrafo posterior, depois de haver acuradamente restituído a teoria da duplicação do político em homem e besta, não traduz a conclusão segundo a qual l’una senza l’altra non è durabile (uma não dura sem a outra).⁴⁰ Em seguida, no terceiro parágrafo, Tegli traduz a passagem do texto que diz respeito ao bom uso da besta na dupla forma de leão (lione) e raposa (golpe), metáfora da força e da astúcia, mas modifica radicalmente o sentido da passagem central. Onde, com efeito, Maquiavel escreve que non può... uno signore prudente, né debbe, osservare la fede, quando tale osservanzia li torni contro e che spente le cagioni che la feciono promettere (Não pode, portanto, um senhor prudente, nem deve, observar a palavra dada quando tal observância se volta contra ele e já se extinguiram os motivos que o fizeram prometer),⁴¹ Tegli traduz:

    Princeps propterea qui sapientia sit praeditus, debet ea promissa vitare, quae suis commodis contraria fore videt (Por isso o príncipe que é dotado de sabedoria deve evitar as promessas consideradas por ele que serão contrárias a seu interesse).⁴²

    O sentido da afirmação de Maquiavel é profundamente transformado e recolocado em um plano que não conhece fratura entre moral e política.⁴³

    Tegli, enfim, censura tanto a passagem central do quinto parágrafo quanto aquele final do sexto. Eis a primeira passagem retirada, que segue a afirmação da necessidade do fingimento:

    ouso, até, dizer o seguinte: tendo-as e observando-as sempre, elas são danosas, e, parecendo tê-las, são úteis; como parecer piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo: mas ter o ânimo predisposto de modo a que, se precisares de não ser, tu possas e saibas converter-te no contrário. E tens de entender que um príncipe, e mormente um príncipe novo, não pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens são chamados de bons, estando amiúde necessitado, para manter o estado, de atuar contra a palavra dada, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião.⁴⁴

    E eis o segundo, que contém uma referência mascarada a Fernando, o Católico:

    Certo príncipe dos tempos atuais, cujo nome não convém dizer, nunca prega outra coisa senão a paz e a palavra dada, e tanto de uma como de outra é inimicíssimo: e uma e outra, se as tivesse observado, lhe teriam por mais de uma vez tirado quer a reputação, quer o estado.⁴⁵

    A respeito da interpretação implícita subjacente à tradução de Tegli, pode-se, pois, relevar que a sua intervenção se manifesta muito menos na supressão das referências ao panorama histórico-político da época (entretanto a referência ao Papa enganador, Alexandre VI, é conservada, e isso não é evidentemente um caso para um calvinista perseguido em sua pátria) do que na tradução do texto de Maquiavel sobre os pactos: com efeito, o sentido da proposição maquiaveliana estebelece uma dependência de fato do respeito aos pactos em relação à conjuntura e às proporções de força que a atravessam, enquanto o sentido imposto pelo tradutor vai na direção, na verdade banal, segundo a qual deve-se refletir bem antes de subscrever um pacto.⁴⁶

    Todavia, exceção feita a esse caso em particular, de resto não sem importância, as passagens mais polêmicas nos confrontos do poder teológico-político da época são acuradamente traduzidas. O célebre incipit do capítulo XV é um exemplo disso. Após ter traduzido a alternativa verdade efetiva – imaginação da coisa nos termos veritas rei – simulacrum vel imago rei, repropõe em toda sua força a tese que deriva de haver escolhido tratar os homens como são e não como deveriam ser:

    Porque um homem que queira em tudo fazer profissão de bondade não pode senão correr para a ruína, entre tantos que não são bons. Também é necessário a um príncipe, se quer se manter, aprender a poder não ser bom, e de usar e não udar disso conforme a necessidade (Qui enim se virum bonum omnibus partibus profiteri studet, eum certe inter tot non bonos periclitari necesse est. Necessarium est itaque principi, ut perceptum habeat (si se salvum velit) qua ratione possit esse non bonus, idque pro rei necessitate, in suum convertat, vel non convertat usum).⁴⁷

    Um outro exemplo muito eloquente nos é fornecido pela passagem do capítulo XVII em que Maquiavel, após haver afirmado que para o príncipe é melhor ser temido que amado, exibe a sua antropologia:

    Porque dos homens pode-se geralmente dizer isto: que são ingratos, cambiantes, simuladores e dissimuladores, inimigos dos perigos, afeitos ao ganho; e que enquanto lhes fazes bem, são todos de ti, te oferecem o sangue, os bens, suas vidas e suas crianças... quando não tens necessidade deles; mas quando a necessidade se aproxima, viram-lhe a face (Nam de hominibus universe haec afirmari possunt, eos ingratos esse, inconstantes, simulatores, periculorum fugitantes, lucri cupidi: dumque de eis benemeritis, ac necessitas procul abest, tui omnes sunt studiosi, sanguinem pro te effundendum offerunt, fortunas, vitam, liberos. At ea premente, ut supra docuimos, confestin desciscunt).⁴⁸

    Pode-se, enfim, acrescentar a passagem que retoma este quadro antropológico a propósito do respeito aos pactos (trata-se da passagem modificada por Tegli que foi mencionada acima):

    E se os homens fossem todos bons, esse preceito não seria bom, mas porque eles não são bons, é preciso evitar atentamente sua maldade e perfídia (Atqui, homines si probi fuissent omnes, praeceptum hoc plane fuisset inutile: verum cum improbi sint, diligenter eorum improbitas perfidiaque erit eludenda).⁴⁹

    A propósito dessa edição de Tegli, pode-se concluir que se trata de uma boa tradução que mantém os riscos de traição consubstanciais a esse tipo de trabalho dentro de limites aceitáveis, exceção feita para a passagem sobre os pactos na qual o pensamento de Maquiavel é esmagado por uma ideologia contratualista que lhe é de todo estranha.

    1.2 A imagem e a presença de Maquiavel nos textos da biblioteca de Espinosa

    A análise do inventário dos livros contidos na biblioteca espinosana pode fornecer-nos outros dados úteis na perspectiva de completar e ao mesmo tempo precisar o quadro a partir do qual Espinosa, presumivelmente, elaborou sua própria leitura de Maquiavel. Podemos achar tanto nos textos políticos quanto naqueles filosóficos traços da Wirkungsgeschichte que tem sua origem na obra do secretário florentino. Isso não constitui evidentemente senão uma pequena parte do grande debate que atormentou a Europa – em que se contrapunham, num primeiro momento, maquiavelianos e antimaquiavelianos, depois a interpretação monárquica e aquela republicana do pensamento de Maquiavel; e todavia é, talvez, um exemplo in vitro desse debate: podemos encontrar aí os modelos interpretativos mais importantes, seja a respeito do pensamento em seu conjunto, seja sob a forma de comentários ou reescritura de certas passagens, seja ainda como elaboração autônoma a partir da solicitação de Maquiavel.

    Reporto a lista das obras que respeitam em uma dessas formas ao pensamento maquiaveliano:

    – entre os livros in quarto no nº 7 Descartes Brieven, no nº 11 Politike discoursen. 1662. Leyden, no nº 12 Obras de Quevedo, no nº 16 Corona Gothica. Hisp. 1658;

    – entre os livros in octavo no nº 11 Polityke Weegschael door V. H. 1661, no nº 17 Las Obras de Perez. 1664, no nº 34 El Criticon vol. 3;

    – entre os livros in-dodicesimo, no nº 10 Clapmarius de arcanis Rerump., no nº 21 Verulamii Sermones fideles, no nº 22 Le visioni Politique.

    Trata-se das obras seguintes:

    DES CARTES, Renatus. Brieven (…). trad. Jan H. Glazemaker. Amsterdam: T. Houthaak voor Jan Rieuwertsz, 1661, 2 volumes.

    VAN DE HOVE, Pieter (de la Court). Politike Doscoursen (…). Leyden: P. Hackius, 1662.

    QUEVEDO, Francisco de. Obras (…). Brusselas: F. Fippens, 1660-1670, 2 vols.

    FAXARDO, Diego de Saavedra. Corona Gothica Castellana, y Austriaca, puliticamente olustrada (…). Amberes: J.B. Verdussen, 1658.

    DE LA COURT, Jan van Hove-Jean. Consideratien van Staat ofte Politike Weegschal (…). Amsterdam: J. Volcketsz Zinbreker, 1661.

    PEREZ, Antonio. Las Obras y Relaciones (…). Genevae: J. de Tornes, 1644.

    GRACIAN, P. Balthasar. El Criticon, Madrid, 1650-1653.

    CLAPMARIUS, Arnold. De Arcanis Rerumpublicarum Libri sex (…). Amsterodami: L. Elzevirius, 1641.

    VERULAMIO, Franciscus Bacon de. Sermones Fideles, Ethici, Politici, Oeconomici (…). Lugduni Batavorum: F. Hackius, 1641.

    LETTI, Gregorio. Le visioni politiche sopra gli interessi piì reconditi, di tutti i prencipi e repubbliche della Christianità, Divise in varij sogni, e ragionamenti tra Pasquino, e il Gobbo di Rialto. Il tutto dato alla luce per la commodità de’ curiosi, s.e., Germania, 1671.

    1.2.1 Bacon

    Os Sermones fideles são a segunda tradução latina dos Essayes de Francis Bacon.⁵⁰ Esse texto contém numerosas referências à teoria política de Maquiavel,⁵¹ referências elogiosas em grande parte, não obstante o clima intelectual da época.⁵²

    Todavia, para além da retomada de temas singulares⁵³ – com frequência reelaborada autonomamente –, o que resulta de grande interesse teórico na obra de Bacon é a retomada do tema maquiaveliano da memória das coisas e da sua contingência, no capítulo De vicissitudine rerum (Of vicissitude of things):

    Não há nada de novo sobre a terra, diz Salomão; de sorte que, como Platão figurava que todo saber nada é senão reminiscência, Salomão põe esse julgamento de que toda novidade não é senão esquecimento. Por onde se pode ver que o rio Lete corre tanto sobre como sob o sol. (...) É fato que a matéria está em um fluxo perpétuo e não para jamais. As grandes mortalhas que enterram todas as coisas no esquecimento são de duas espécies: os dilúvios e os terremotos. Quanto às conflagrações e às grandes secas, elas se limitam a despovoar e a destruir. (...) nas (...) destruições por dilúvio ou terremoto, pode-se remarcar que aqueles que subsistem são ordinariamente iletrados e montanheses que não saberiam dar conta do passado, de modo que o esquecimento é exatamente igual a se ninguém tivesse sobrevivido. (...) Quanto à observação de Maquiavel, que o ciúme entre as seitas contribui grandemente para apagar a memória das coisas, – ele acusa Gregório o Grande de ter feito tudo em suas possibilidades para aniquiliar todas as antiguidades pagãs, – não me parece que esses ardores produzam grandes efeitos e durem muito tempo, como foi vivido na sucessão de Sabino que retomou a honra das antiguidades precedentes. Deixemos, porém, tais questões naturais para retornar aos humanos. A maior vicissitude das coisas entre os homens é aquela das seitas e religiões, pois esses astros têm uma influência predominante sobre seus espíritos. A verdadeira religião é fundada sobre a pedra, as outras são lançadas no fluxo do tempo (Salomon inquit: Nihil novum super terram. Itaque, quemadmodum Plato opinatus est; Omnem scientiam nihil aliud esse, quam reminiscentiam; sic Salomon pronunciat; Omnem novitatem aliud esse, quam oblivionem. Ex quo cernere possis, fluvium Lethes, non minus super terram, quam subter terram, decurrere. (...) Illud certum est, materiam in perpetuo fluxo esse, neque unquam consistere. Atqui, magna illa lintea sepulchralia, quae omnia oblivione involvunt, duo sunt; Diluvia & Terrae-motus. Quatenus ad Conflagratones, & Siccitates magnas, illae populum penitus non absorbent, aut destruunt. (...) Verum, n memoratis illis duabus calamitatibus, (Diluviorum, & Terrae-motuum), insuper notandum est; reliquias populorum, quas emergere contigerit, plerunque, homines rudes e montanos esse; quique temporum praeteritorum memoriam posteris tradere non possint; Adeo ut oblivio non minus omnia involvat, quam si nulli prorsus superstites remanerent. (...) Quantum vero, ad observationem Machiavelli; nimirum, zelotypiam & aemulationem Sectarum, ad extinguendam rerum memoriam, multa molitam: qui Gregorio Magno notam inurit, ac si pro viribus sui Antiquitates omnes Ethnicorum supprimere annixus fuerit: Non video certo hujusmodi zelos, aut notabile quidpiam efficere, aut diu durare: id quod liquet in successione Sabiniani, qui Antiquitates easdem statim resuscitavit: Tum vero prohibita, licet tenebris cooperta, obrepunt tamen, & suas nanciscuntur Periodos. (...) Verum transeamus a Naturalibus ad Humana. Maxima apud homines Vicissitudo, est illa Sectarum & Religionum. Hi enim Orbes, animis hominum, maxime dominantur. Religio vera super Petram aedificata est; reliquae fluctibus temporum agitantur).⁵⁴

    Bacon faz correções à argumentação de Maquiavel em diversos níveis. Em primeiro lugar, modifica profundamente o início do capítulo, sustentando a perfeita simetria entre memória e esquecimento, afirmação que constitui uma tomada de distância da concepção específica de Maquiavel da contingência da memória e se avizinha, em vez disso, da ideia platônica do eterno retorno do igual, no sentido de que nada cai nunca definitivamente no esquecimento, mas toda recordação está adormecida na alma à espera de despertar. Em segundo lugar, se ele conserva a bipartição maquiaveliana das causas que conduzem ao esquecimento, as devidas aos homens e as devidas ao céu, introduz diferenças ao nível das causas mesmas. As causas que vêm do céu, que que extinguem a raça humana e reduzem a poucos os habitantes de uma parte do mundo,⁵⁵ são, segundo Maquiavel, a peste, a fome ou alguma inundação. Para Bacon, as únicas causas que têm o poder de enterrar cada coisa no esquecimento são os dilúvios e os terremotos. Retoma a esse propósito a ideia maquiaveliana, mas de resto já platônica, segundo a qual os únicos sobreviventes a tais tipos de catástrofe são os montanheses completamente incapazes de transmitir a memória das coisas antigas (delle antichità). Quanto às causas devidas aos homens, Bacon exclui a sugestão de Maquiavel a propósito das variações da língua (variazioni delle lingue),⁵⁶ para deter-se brevemente nas causas devidas aos conflitos entre as seitas, tomando em consideração o exemplo de Maquiavel, a fúria de Gregório VII ao destruir toda forma de paganismo. O Lorde Chanceler sustenta que o exemplo é pouco convincente e, de outra parte, contrariado em seu sentido universal pelo fato de que seu sucessor, Sabiniano, repôs a honra das antiguidades precedentes. Todavia, a operação mais importante, de resto preparada pelos movimentos precedentes, em particular pela construção da simetria entre memória e esquecimento, consiste na reinstauração do primado da religião cristã sobre as outras, a partir de sua posição como ponto de Arquimedes da história, ao passo que Maquiavel inscreve sua narrativa, a sua simbolização do mundo, na aleatória necessidade dos eventos históricos e das relações de força: A verdadeira religião – conclui Bacon, ecoando Mateus (XVI, 18) – fundada sobre a pedra; as outras são lançadas no fluxo do tempo.⁵⁷

    1.2.2 Clapmar⁵⁸

    Embora não constitua uma das principais fontes,⁵⁹ Maquiavel é retomado em várias ocasiões na obra de Arnold Clapmar De arcanis rerumpublicarum.⁶⁰ Esse texto é dividido em seis partes, cada uma das quais corresponde a uma das seis facetas do poder: I) o direito de soberania, II) os arcanos da soberania, III) os arcanos da dominação, IV) o direito da dominação, V) a perversidade da dominação e, enfim, VI) os simulacros da soberania. Maquiavel, como dito, é utilizado seja como fonte histórica, seja como termo de confronto dialético, seja ainda como auctoritas, e por vezes, enfim, como fonte disfarçada;⁶¹ em cada caso é tido em grande consideração, como nos testemunham os epítetos acutissimus, prudentissimus scriptor et popularis e acutus scriptor ab Hetruria. Isso entretanto não impede Clapmar, em alguma página de grande importância do livro V, de traçar a relação entre religião e razão de Estado diretamente em contraposição a Maquiavel, através de uma citação de Scipione Ammirato:

    E porque, diz (Scipione Ammirato), a religião é, como dissemos, superior à razão de estado, e segue regras diferentes daquelas dos homens e não se dá proporção entre as coisas temporais e as eternas, convém, em tais circunstâncias, que recorras primeiramente à religião para ver se ela se opõe a ti; porque, em tal caso, necessita acomodar a razão de estado à religião, e não a religião à razão de estado.⁶²

    Com efeito, como escrevia Clapmar algumas páginas acima, é indigno de ser qualificado como direito (jus) quod divinae legi, quod religioni contrarium fit (o que é contrário à lei divina, à religião).⁶³ Desse modo, é feita a distinção fundamental que anuncia a passagem ao tratamento dos flatigia dominationis (indignidades da dominação), significativamente chamados por Clapmar de consilia machiavellistica. Fala-se de flatigia quando a dominatio, que por si é uma forma intermédia entre o imperium civile e a tirania, não repousa mais sobre fundamentos teológico-morais: non amplius – escreve Clapmar – est Dominatio, non Ius, non Imperium, sed summa injustitia atque extrema tyrannis (não é mais Dominação, nem Direito, nem Soberania, mas a maior injustiça e a tirania extrema). Sob a forma da distinção entre iura dominationis (direito de dominação) e flagitia dominationis, quae Principes, quantum potest, vitare debent (que os Príncipes, o quanto podem, devem evitar), é reproposta a clássica dinstinção entre boa e má razão de Estado:

    Os direitos de dominação diferem das indignidades da dominação, como se fossem opostos. Primeiramente, porque nas segundas tende-se unicamente à utilidade privada, e nos primeiros, tanto à privada como à pública; as segundas existem para satisfazer crueladade e desejo sensual, os primeiros, para a conservação da paz pública. Enfim, nos primeiros, existe a razão da autoridade divina, da honestidade, da fé e do pudor; nas segundas, ao contrário, tudo é pisoteado e indigno. Entretanto as duas são maneiras ocultas e secretas de consolidar e aumentar o poder.⁶⁴

    O erro de Maquiavel reside precisamente, como afirmará na tese L das suas Conclusiones de iure publico, em ter confundido os arcana⁶⁵ dominatonis e os iura dominatonis, cuja distinção é bem evidenciada por Senellart: "os arcana são para o direito soberano como muralhas em torno de uma fortaleza, segundo uma imagem conforme à etimologia (arcanum, segundo os gramáticos, que deriva de arx, fortaleza, ou de arca, baú, caixa...). Não poderíamos assim confundi-los com o direito, que constitui seu fundamento".⁶⁶

    Essa leitura de Maquiavel é possível, todavia, apenas ao preço de uma simplificação que é bem exemplificada pela tese XLIV, em que a tese política de Maquiavel é resumida pelo oderint tum metuant, por um exercício, pois, da crueldade a fim de manter o povo em um eterno estado de medo.⁶⁷ A simplificação e o desentendimento da teoria maquiaveliana consistem em confundir a afirmação da necessidade do uso político da crueldade e da violência com o elogio da crueldade e da violência. Desse modo, Clapmar elimina a distinção entre crueldades bem usadas e mal usadas: as primeiras são aquelas que se fazem num rompante, pela necessidade de se precaver, e depois não se insiste mais nelas, antes se convertem quanto possível em mais utilidade para os súditos, enquanto as segundas são aquelas que, ainda que no princípio sejam poucas, com o tempo, crescem mais depressa do que extinguem.⁶⁸ As primeiras reforçam o poder, as segundas o enfraquecem e o levam, a passos largos, à ruína. Não percebendo a importância dessa distinção, Clapmar atribui a Maquiavel a política do oderint dum metuant, quando, em vez disso, Maquiavel afirma no capítulo XVII d’O Príncipe que o detentor do poder deve ser temido, mas nunca odiado, porque o ódio traz consigo a sedição e, a longo prazo, a perda do poder.

    A natureza da relação religião-política se revela, assim, o lugar estratégico fundamental da colisão com Maquiavel. Nessa perspectiva, Clapmarius não pode eludir o confronto com um dos exemplos históricos dessa relação, o qual se torna clássico na tratadística da época, a religio como instrumentum regni na história romana. Significativamente, ao afrontar a questão do Atheismus, Clapmar se preocupa em refutar a tese maquiaveliana segundo a qual os romanos teriam sido ímpios e teriam utilizado a religião em termos puramente instrumentais,⁶⁹ apoiando-se, novamente, sobre a autoridade de Scipione Ammirato.⁷⁰

    Clapmarius refere-se aos capítulos XI-XV do livro I dos Discursos, entendendo mal seu significado. Longe de afirmar a impiedade do povo romano, Maquiavel sublinha em várias ocasiões a sua religiosidade, em particular no capítulo XI, em que afirma que por vários séculos nunca houve tanto temor a Deus quanto naquela república.⁷¹ É muito provável que o que Clapmarius ouve como uma acusação de impiedade seja a concepção maquiaveliana da religião como componente fundamental da constituição política de um povo, a sua insistência a respeito de sua potência ordenadora, o fato de que ela servia para comandar os exércitos e infundir ânimo na plebe, para manter os homens bons e fazer com que os reis se envergonhassem.⁷² Não se trata, em nenhum caso, da afirmação da impiedade do povo romano, mas sobretudo da utilidade da religião enquanto causa e garantia de ordem. Entretanto, a interpretação de Clapmarius resulta instrutiva, pois nos mostra a incapacidade de apreender a complexidade de um pensamento não redutível ao esquema antitético boa razão de estado – má razão de estado, ou seja, religião como fundamento da política ou religião como mero instrumento, máscara da política.

    No De Arcanis Rerumpublicarum Dissertatio, apêndice à obra de Clapmarius, também Besold retorna à questão da relação religião-política no discurso maquiaveliano. Ele precisa o que diferencia a concepção política de Maquiavel da de Clapmarius, mostrando como o segundo põe limites aos arcanos através da tríplice exigência de Religio, fides, pudor,⁷³ enquanto Maquiavel não reconhece nenhum limite moral à ação do príncipe.⁷⁴

    E retornando à distinção entre a razão de estado que não é "contra religionem",⁷⁵ e a má razão de Estado, ele identifica totalmente a segunda com a teoria maquiaveliana, para a qual o Valentino seria um perfeito exemplo histórico, já que este agiu sob o prudente magistério de Maquiavel (sub Magisterio Machiavelli providissimo).⁷⁶

    Todavia o próprio Besold, no capítulo III dedicado aos flagitia dominationis, após os ter definido, segundo a proposta de Clapmar, como Consilia Machiavellistica, introduz um elemento de dúvida a respeito das verdadeiras intenções de Maquiavel.⁷⁷ Besold conclui, referindo-se provavelmente aos Discursos, que é necessário ter em conta o fato de que Maquiavel não escreveu somente O Principe, e que se deve pôr em questão o escopo também dessa obra, chegando a sugerir dela uma leitura oblíqua. E um reforço da tese de um Maquiavel democrático, apenas acenada por Besold de forma dúbia, encontra-se nas Theses de Iure Publico di Wolfgang Heinrich Ruprecht, também impressas em apêndice à obra principal de Clapmar. Este, indagando-se sobre qual seja a melhor forma de governo, toma abertamente o partido da monarquia, a que contrapõe apenas Maquiavel (dos Discursos) como teórico da democracia: "Pergunta-se também qual espécie de República seja a melhor? De nossa parte, damos a palma à Monarquia. (...) Maquiavel não está de acordo, ele que, nos Discursos, celebra a Democracia".⁷⁸

    O que me parece de grande relevo no conjunto dos textos que se encontram recolhidos no volume de Clapmarius é o fato de que do seu interior se desdobra o inteiro espectro interpretativo da obra de Maquiavel, que vai da imagem deste último como o malvado pai do maquiavelismo e da má razão de estado, que ensina n’O Príncipe os flatigia contra a moral e a religião para conquistar e conservar o poder, à imagem do único autor que tomou abertamente partido por uma forma de governo democrático nos Discursos, a ponto de chegar a uma interpretação oblíqua d’O Príncipe, uma interpretação que se interroga sobre o verdadeiro sentido da obra, ou seja, pergunta-se se, como dirá Foscolo de modo paradigmático nos Sepolcri, este grande, (...) modelando o cetro dos reinados,/ Lhes desfolha os louros, e à gente desvela / de que lágrimas goteja e de que sangue (quel grande, (...) temprando lo scettro ai regnatori, / gli allor ne sfronda, ed alle genti svela / di che lagrime grondi e di che sangue").

    1.2.3 Leti

    Dentre os livros contidos na biblioteca espinosana que dizem respeito a Maquiavel, a obra de Gregorio Leti, Le visioni politiche,⁷⁹ publicada anonimamente em 1671, é certamente a que apresenta o menor interesse. Trata-se do livro de um aventureiro milanês convertido à religião calvinista que propõe uma análise geral da situação política europeia do tempo. O nome de Maquiavel aparece nas páginas de Leti como o símbolo de uma política maldita, esquecida dos valores da cristandade: seu espectro não é evocado senão sob os disfarces do diabo, old nick, segundo a representação popular inglesa (isso não o salvará de ser expulso de Genebra exatamente sob acusação de maquiavelismo). Diante da teoria política de Leti, inteira e estritamente fundada sobre a teologia, isto é, diante de uma teoria que define Deus como o eterno fabro (o artesão eterno) e os reis como os seus simulacros na terra,⁸⁰ Maquiavel encarna a separação entre política e teologia, a inscrição da política no âmbito da imoralidade.

    Na primeira Ombra, sob a forma de uma exortação ao rei de França, Maquiavel é estigmatizado por Leti como o teórico da má razão de estado, que reduz a religião a instrumento de poder, e que se funda sobre a sistemática destruição da dogmática cristã. Maquiavel desenha um mundo no qual não há lugar nem para Deus nem para a alma, não havendo outra apreensão das coisas divinas, senão aquela que têm as bestas.⁸¹ Justamente em contraposição a uma teoria que concebe o real como o lugar de meras relações de força, Leti repropõe a ideia medieval da exemplaridade moral do príncipe,⁸² e refuta ponto a ponto o modelo de estratégia política que Maquiavel fornece em O príncipe.

    A respeito da instauração de um novo principado, distancia-se da ideia maquiaveliana da crueldade bem usada, do que se diz:

    Um novo Príncipe, em particular, deve sempre lançar as primeiras pedras de seu Governo sobre fundações pacíficas, porque se desde a ascenção ao trono ele confunde o cetro e a espada, dá a crer que é orgulhoso e vingativo, ele convida os povos, sempre desconfiados, à sublevação e mesmo aos tumultos; a licença militar dá também aos súditos a licença de militar contra o Príncipe.⁸³

    A refutação do uso político da violência conduz a refutar também a ideia segundo a qual para o príncipe é melhor ser temido que amado:

    Os ímpios de Maquiavel dão prova não somente de perfídia, mas de ignorância quando aconselham o Príncipe a fazer-se mais temido que amado.

    Imbecis, tanto quanto iníquos! Não sabem que a crueldade do Príncipe é a trobeta que chama os povos às sedições e desperta as conjuras dos nobres?

    (...) é o amor, e não o medo a razão da conservação do Príncipe pois um Príncipe clemente torna os súditos mais zelosos de sua saúde do que desejosos de sua Morte.⁸⁴

    Essa reinserção da ação do soberano nos caminhos da moralidade conduz Leti a tomar distância dos dois preceitos maquiavelianos a que deveria conformar-se a ação política caso queira ser eficaz: a necessidade de aparecer, isto é, de uma imagem conforme à fé, à caridade, à religião e à humanidade sem que o ser também venha a conformar-se, e a ideia de que o príncipe não deve respeitar os pactos uma vez que se enfraquecidas as razões destes:

    E diz um sábio que viver sem simulação é a pedra de toque que distingue o Tirano do Príncipe legítimo, além de que romper a paz prometida é uma péssima razão de estado, porque essa lassidão e essa instabilidade arriscam muito evidentemente desacreditar o Príncipe e, consequentemente, privá-lo de aliados e de amigos.⁸⁵

    Notemos, porém, como para Leti os motivos do respeito aos pactos se inscrevem em um duplo registro: o primeiro é aquele da ordem moral e respeita ao juízo divino sobre o monarca, ou seja, à sua legitimidade (o que põe a diferença entre o monarca e o tirano); o segundo é a ordem estratégico-política e evidencia as consequências negativas sobre o plano temporal desse comportamento, ou seja, a desconfiança dos aliados.

    Concluindo, a imagem de Maquiavel que emerge das páginas de Leti é interessante no interior de nosso percurso muito mais como indicador sociológico que por seu valor intrínseco: é uma imagem vulgar e privada de qualquer nuance interpretativa e é obtida por simples subtração a partir do retrato do príncipe cristão.

    1.2.4 Quevedo, Perez, Saavedra e Gracián⁸⁶

    Na seção espanhola da biblioteca espinosana são bem pouco numerosas as referências a Maquiavel e, a maior parte delas, indireta. Em Perez não há senão ecos longínquos;⁸⁷ a referência mais precisa que figura em Saavedra⁸⁸ é apenas a expressão de uma polêmcia estereotipada e privada de qualquer originalidade. De fato, a fórmula não se há de governar a Religião pela razão de Estado, senão a razão de Estado pela religião (no se à de governar la Religion por la razon de Estado, sino la razon de Estado por la Religion),⁸⁹ evidentemente endereçada contra Maquiavel enquanto pai da má razão de Estado, não é nada mais que a retomada de um lugar comum da época.

    Do mesmo gênero é uma passagem do Criticon, de Gracián (parte II, crisis 4), em que Maquiavel é associado a Bodin e contraposto a Aristóteles e Botero:

    Este O príncipe de Maquiavel e esta República de Bodin não devem aparecer entre a gente: que não se as chame de razão, pois são muito contrárias a ela. E vos preveni quanto ao fato de que as duas políticas mostram a ruína destes tempos, a maldade destes séculos e quão acabado está o mundo.

    Aquela de Aristóteles é uma boa velha (razão). A um príncipe tão católico quanto prudente, recomendei uma plena de pérolas e de pedras preciosas: A Razão de Estado de Juan Botero.⁹⁰

    Do mesmo modo, a única passagem de Quevedo que tem por objeto Maquiavel é uma simples transposição dos prejuízos da época. Na Fortuna com seso, y la hora de todos, fantasia moral,⁹¹ Quevedo escreve:

    Pacas Mazo, disfarçando sua rapacidade de pomba, diz que o prazo era suficiente, a decisão prudente; mas que convinha que o segredo fosse cego e mudo: e sacando um livro encadernado em pele de ovelha, costurados com fios de ouro com vários ornamentos de lã, deu-o a Saadias, dizendo: Este presente o damos como promessa. O outro o toma e pergunta: De quem são estas obras? Respondeu Pacas Mazo: De nossas palavras. O autor é Nicolau Maquiavel, que compôs o cantochão de nosso contraponto. Os Judeus a miravam com grande atenção, especialmente a encadernação em pele de ovelha; Rabino Asapha, delegado de Ora, grita: esta lã é a que os Espanhóis dizem que tosquia quem vem tosquiá-la. Com isso, separam-se uns e outros tratando de sua parte de se encontrarem novamente, como a pedra e o isqueiro, para combaterem, chocarem-se, fazerem-se em pedaços, até queimarem todo o mundo, para fundas a nova seita do Dinheirismo, mudando o nome de Ateístas, em Dinheiranos ou Dinheiristas.⁹²

    A referência a Maquiavel está inserida em um texto hostil aos marranos portugueses, descendentes dos hebreus expulsos em 1492, que em 17 de novembro de 1629 haviam obtido a liberdade de comércio em Espanha. O reconhecimento da igualdade no plano jurídico provocou uma forte imigração de comerciantes marranos, a qual, embora não facilmente reconstruível em suas cifras, toma a forma, aos olhos dos contemporâneos, de uma verdadeira e própria invasão.⁹³ Tomando posição contra os hebreus, Quevedo se inscreve no interior da intensa batalha econômico-político-religiosa (que) ocorre entre partidários e adversários dos marranos:⁹⁴ para sublinhar o espírito de revolta, a indisciplina, a ingratidão, o egoísmo, o cálculo e a duplicidade, ele não encontra modo melhor que acusá-los de serem discípulos de Maquiavel.

    1.2.5 As obras dos irmãos van Hove

    As duas obras dos irmãos van Hove, os Politike Discoursen⁹⁵ e a Politike Weeg-schaal, podem ser consideradas os manifestos ideológicos da classe dos mercadores holandeses, que entre 1650 e 1672 detiveram o poder nas Províncias Unidas. Nelas, manifesta-se uma dupla posição política: em primeiro lugar, contra a monarquia a favor da república, de que democracia e aristocracia são espécies particulares (Principes mortales, respublicae aeterna, isso é repetido quase obsessivamente na Polityke Weeg-schaal); em segundo lugar, a favor de uma Estado pacífico que permita

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