"Maternandas da Terra"
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Sobre este e-book
Ele, o autor, no enigmático paradoxo de sua física condição visual, toca poeticamente em meus olhos com as palavras de sua alma, dizendo-me: éfeta, abre-te! Sim, enxerga com os teus próprios olhos que elas são vinte e sete, e muito mais. São um número incontável, que vieram da grande tribulação. São filhas da terra, porque em seus corpos entranhou-se a "irmã e mãe terra"; são húmus, que tornou férteis os terrenos, para que muitos pudessem nascer, crescer, frutificar; são carismas, que tão apropriadamente teceram e tingiram o hábito espiritual do autor na cor da argila.
Agora, vejo melhor. Elas estão todas em nós! Partem, mas ficam; despedem-se, mas diuturnamente nos acenam! São como que um amanhecer, um lusco-fusco que não cabe nem na noite e nem no dia. Não cabem sequer nas palavras, porque o ser é mais que o falar, o sentir e o agir. E isso, em nossa intimidade, tece uma humilde e convicta constatação: - Não morrerão, jamais! Apenas, repousam no amor e na textura de que somos feitos. É um pouco disto que nos diz Frei Luiz Pinheiro Sampaio, este frade-poeta! Quem lê a sua vida, a sua alma e as suas obras, passa a enxergar diferente! Simples, assim.
Prof. Dr. Wolmir Therezio Amado
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"Maternandas da Terra" - Luiz Pinheiro Sampaio
Maria Lima Sampaio
(1924-2015)
Esta mulher, fecunda de ternura, simples no ser e no viver, é aquela que me gerou com carinho, acolheu-me em seu regaço, amamentou-me e me ensinou a dar os primeiros passos sob seu olhar diligente. Nasceu num dia de sábado, aos 7 de junho de 1924, em Novo Oriente, extremo-oeste do Ceará, fronteira com o Piauí. Terceira filha entre nove irmãos, formados por dois homens e sete mulheres, filhos de Ricardo Pinheiro Sampaio e Felicidade Ferreira da Mota, naturais do referido lugar. A mãe era analfabeta; o pai escrevinhava o português e ensaiava alguma leitura. Como a maioria da população da região, viviam do cultivo de suas próprias terras.
Na década de 1920, Novo Oriente, terra do milho e do feijão
, estava sob a condição de distrito de Independência, tendo passado à categoria de município em 1957. Localiza-se na região dos sertões de Crateús. No alvorecer do século XX, o pioneiro, Capitão Rodrigo Alves da Silva, construiu a primeira moradia às margens de uma lagoa. No início, o povoado foi chamado de Lagoa do Tigre, devido à existência de onças ferozes que devoravam o gado do lugar. O nome atual surgiu de uma proposta do Padre Afonso de Gouveia, vigário de Independência, quando ali celebrou a primeira missa. Na ocasião, o religioso percebeu o relevo acidentado, semelhante ao da Palestina, no Oriente Médio, por onde já havia andado. Daí sugeriu ao povo o nome de Novo Oriente. O padroeiro local é São Francisco de Assis, com sua igreja matriz, construída no ponto mais alto da cidade. A torre imponente chama a atenção dos visitantes. Até o período de 1980, a imagem da Lagoa do Tigre fazia o cartão postal da cidade. Era também uma fonte de riqueza para os habitantes. Às suas margens, plantava-se e colhia-se arroz com fartura; na época da cheia, havia abundância de peixes; no seu entorno, mulheres animadas penduravam roupas para quarar sob o sol, em céu azul. As crianças se divertiam; a lua tomava banho nas plácidas águas; o sapo boi cantava toda a noite; o belo luar contagiava casais de namorados. Hoje, só resta nostalgia.
Em suas evidentes diferenças, aqueles pais andaram abraçados nas travadas labutas pela sobrevivência. Cultivavam sua lavoura com responsabilidade. Lançaram nela as sementes da dignidade e da resoluta disposição para o trabalho. Jamais faltaram com os cuidados fundamentais aos filhos: afetos, religião, pão, teto, agasalho. Nem todos tiveram acesso à escolarização. Ela, esposa cuidadosa, era incansável nos afazeres caseiros. Achava tempo para trabalhar com os bilros, dando à luz rendas delicadas. Preparou as filhas para serem donas de casa desde a infância, ensinando-lhes a cozinhar, lavar, engomar, costurar e outras prendas.
O pai da família não poupou energia nem suor para lavrar a terra. Enfrentava o sol escaldante do sertão para pôr à mesa o sustento necessário. Muitas vezes, viajava ao Piauí, tangendo um comboio de mulas e jumentos, para o transporte de malas e surrões de couro, repletos de produtos para vender nos mercados da região. Ao regressar à casa, trazia mantimentos para abastecer a dispensa. Frequentemente, o filho caçula, Francisco Pinheiro, era seu companheiro nessas viagens. Assim, pai e mãe se deram um ao outro e à família com todos os sentimentos e com todas as forças.
Maria viveu sua infância em clima familiar saudável. Ela e os irmãos criavam os próprios brinquedos. As meninas divertiam-se com bonecas de pano, feitas a partir de espigas de milho. Ajudava a mãe nas diferentes tarefas de casa, inclusive a cuidar dos maninhos, motivo por que não pode estudar. Aprendeu com a mãe a fazer belos trabalhos, com a palha da carnaúba. Dadas as constantes ausências do pai, não lhe faltou o olhar materno, atencioso. Nunca desobedeceu a qualquer ordem. Costumava pedir a bênção aos mais velhos, aos quais respondia com reverência. A forma de tratamento era senhor
e senhora
. Foi criança que aprendeu na escola do lar as lições da obediência e oração.
Uma jovem enérgica, sempre disposta a todo serviço diário: lavar roupas à beira da lagoa e carregar cabaças d´água na cabeça, para abastecer os potes. Dotada de espírito alegre e comunicativo, era amável e simples, estimada por todos. Viveu sua mocidade discretamente no pequeno torrão natal, onde à época, as famílias tinham algum laço afetivo. Às vezes, quando ia a algum lugar, estava sempre acompanhada de uma irmã. Jamais contrariou qualquer palavra dos pais.
Nesse espaço de convívio intenso, desabrochou um amor espraiado, sem ciúme nem cadeias. Pode-se dizer que cresceu como a esperada chuva de verão. Ela e o futuro esposo, Francisco Pinheiro Sampaio, eram primos de primeiro grau. A diferença de idade entre ambos era de dois anos, três meses e alguns dias. A mãe e a madrasta dele eram tias dela, pelo lado do pai. Nessa relação de parentesco, cresceram muito próximos um do outro.
Ele era filho de agricultores: José Rodrigues Sampaio e Liduína Pinheiro Sampaio. Nasceu a 15 de fevereiro de 1922, num casebre de taipa, localizado à entrada do referido povoado, de quem procede de Crateús (CE). Estava engatinhando, quando ficou órfão de mãe, tendo sido criado pela madrasta, Francisca Pinheiro Sampaio, sua tia materna. Foi criança sem direito à infância.
Desde cedo, acompanhava o pai a lavrar a terra. Não sobrava tempo para a escola. Certa vez, seu padrinho de crisma, Dom José Tupinambá da Frota, bispo de Sobral, dirigiu-se a seu pai e lhe disse: - Compadre me dá esse menino para eu levar para estudar no Seminário, porque ele é muito inteligente
. Ao que o pai respondeu: - Não, de jeito nenhum. Ele vai trabalhar na roça comigo
. O rapazote ficou frustrado, vendo seu sonho de estudar ser jogado ao vento, na dureza do trabalho no campo.
A adolescência praticamente não foi desfrutada. Aos 14 anos, com a morte do seu genitor, assumiu a responsabilidade e homem da casa, tendo de trabalhar de sol a sol para sustentar os irmãos menores. Em cada amanhecer, levantava-se cedo, com chapéu de palha na cabeça, enxada no ombro, uma cabaça d´água dependurada. Este jovem franzino e pele queimada levava nas costas o peso do adulto. Nunca se queixou de tantas fadigas.
Aos 17 anos ficara sem a madrasta. Antes de falecer, ela lhe fez dois pedidos. Incumbiu-o cuidar dos irmãos e de não dar nenhum deles a ninguém. Recomendou-lhe, também, escolher uma das primas, Hilda Pinheiro ou Maria Lima para se casar e permanecer no cuidado da família. Como vaqueiro destemido a campear no meio da caatinga, ele observou com tenacidade a todos os pedidos. Dado ao espírito de determinação e coragem, passou a ser chamado desde então de Major.
Muitas vezes, foi menosprezado pelas roupas rudes que usava, as alpercatas nos pés e moradia simplória. Enfrentou dissabores de cabeça erguida. E, com as mãos calosas de lavrador, nunca deixou faltar alimento ao sustento, debaixo do seu teto.
Em 1940, aos 18 anos, esse rapaz amadurecido precocemente, seguindo o conselho da madrasta, escolheu a prima Maria Lima, por quem encantou-se desde cedo. Não houve objeção ao seu pedido. Ela o aceitou deslumbrada. Era muito jovem, 16 anos, para ter clareza de tamanho desafio. Naqueles corações pulsavam amor e simplicidade.
Transcorridos alguns meses, adiantaram-se em celebrar aquele afeto. Uniram-se em matrimônio no dia 27 de dezembro do mesmo ano. Ela, sem leitura, aprendera o bê-á-bá do cotidiano do lar. Ele, lavrador, abraçara a tarefa de proteger seus irmãos, depois da morte dos pais. Jovens envolvidos, abraçados ao único propósito: o amor incondicional em família. Assim, despojaram-se de todos os caprichos pessoais e deram-se inteiramente um ao outro.
Esta mulher singular, era vicejante. Foi amada e cultivada pelas mãos do agricultor diligente. Frutificou na estação propícia e suas folhas não murcharam. Gerou 17 filhos, sendo dez mulheres e sete homens. Em cada parto, realizado em casa, teve a assistência do esposo e de uma parteira, dona Maria Floriano, senhora pobre e generosa que vivia num casebre de taipa. Durante os trinta dias de resguardo, o Major recostava a enxada e ficava inteiramente aos cuidados da mãe e da criança; com tanto zelo, preparava o frango caipira para fortalecê-la na amamentação. Procedeu desse modo ao nascer de cada novo rebento.
A primeira moradia do casal foi uma casa de pau a pique e chão batido, situada no mesmo terreno do casarão paterno da senhora Maria Lima. Ali nasceram os dois primeiros filhos. Dividiam, também, o mesmo espaço os irmãos pequenos do senhor Major. Ainda que assim favorecido pelo sogro, o genro sentia-se incomodado, porque essa habitação não era fruto do seu suor. Decidiu vender a única vaca, que lhe dava o leite cotidiano, e na permuta, adquiriu o seu teto, nas proximidades da igreja matriz São Francisco de Assis. Posteriormente, com o aumento da prole, mudou-se para uma habitação espaçosa, feita de adobes à vista; ficava na mesma rua onde havia nascido.
Essa grande família estava alicerçada sobre o vigor e a ternura de almas entrelaçadas pela fé, pelo trabalho, pela solidariedade e pelo cuidado mútuo. Havia respeito, honestidade e anseio por horizontes renovadores. Havia entre pai, mãe e filhos um envolvimento natural e alegre; todos se queriam igualmente; não havia privilegiados. Todos comiam do mesmo pão; ninguém ficou ao relento, cada qual tinha sua rede de dormir.
Aquele local era uma escola de oração e vida. Ali, o pai catequizava os próprios filhos e demais crianças da vizinhança, com base no catecismo
de suas experiências pessoais, utilizando-se de uma coletânea de histórias sagradas. Com linguagem simples e vivencial, ensinava-lhes os primores do catolicismo: as orações, os mandamentos, as devoções, praticar a Palavra de Deus, com assiduidade de bom cristão. Assim, aprendera a lavrar cada terreno e a lançar nele a melhor semente.
Uma mulher fervorosa ao lado de um esposo zeloso com as coisas sagradas. Seu abrigo era um santuário
: na sala de estar, um quadro de São José, como guardião da família; no quarto, um oratório com os santos de devoção: São Francisco das Chagas, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa Senhora das Graças. O cotidiano era uma liturgia: à boca da noite, depois das fadigas, todos reunidos para o terço, em gratidão aos céus pela jornada vivida. Aos finais de semana, a santa missa. E quase todos os anos, O senhor Major levava consigo um dos filhos, de pau de arara, a Canindé para devotar ao querido São Francisco das Chagas. Do começo ao fim, estiveram de mãos dadas por esse mesmo caminho de fé.
Ela, sem letra, e ele, que aprendeu o abc após a morte do pai, com a tia Luiza Brasileira, foram cuidadosos com a educação daqueles que geraram. Colocaram-lhes nas mãos caderno, lápis e borracha. Conciliavam escola e roça. À noite, era tempo de fazer as tarefas escolares à luz de lamparina. Concluído o primário no povoado, algumas das filhas complementaram o ensino médio em Crateús, Sobral, Acaraú e Bela Cruz; os demais em São Paulo e Brasília; poucos chegaram à Universidade. Com isso, cada qual abriu janelas e portas para o conhecimento e para ampliarem seus sonhos.
Nesse ambiente, ninguém foi poupado do trabalho doméstico e da lavoura. O pai se erguia cedo, balde na mão, para tirar o leite da cabra; e ao raiar do sol, tocando umas ovelhas e algumas vacas, tomava consigo filhos pequenos e grandes, homens e mulheres, para ajudá-lo no roçado, a cerca de quatro quilômetros distante da zona urbana. A mãe, na mesma cadência, fazia as vezes do lar, auxiliada pelas filhas que a seguiam na rotina doméstica: cuidar das crianças menores; arrumar a casa; desarmar as redes, colocar as coisas em ordem e limpeza; preparar as refeições; lavar as louças em mutirão; pilar arroz e milho, xerém dos pintainhos; torrar e moer café; carregar água de cabaça para abastecer os potes de beber e para tomar banho; levar comida aos trabalhadores no campo; lavar roupas na beira da lagoa. Com tudo isso, o fruto do suor tinha significado diferenciado, porque vinha do chão de cada um.
Esta força feminina era admirável pelos seus talentos. Teciam belos artesanatos com palha da carnaúba: chapéu, abanador, esteira para assentar-se ao chão, bolsa para carregar material escolar. Quando cozinhava, colocava à mesa pratos saborosos: feijão em panela de barro; arroz em panela de ferro; mungunzá; frango caipira; baião de dois; cuscuz; tapioca. Quando sentava junto à máquina de costura movida à mão, consertava e fazia algumas peças de roupa. Tinha a casa limpa e organizada. Cultivava com dedicação canteiros de ervas medicinais e temperos. Entregava-se inteiramente em suas atividades.
Sua doçura materna se estendia a todos. Dia e noite, colocava-se de pé para olhar cada um. Tantos rebentos, ninguém lhe passava despercebido. Só repousava quando verificava um a um deitado e agasalhado em sua rede. Na manhã seguinte, cada um desarmava a própria rede. Nunca deixou que ninguém tivesse piolho. Usavam roupas modestas. Quando iam à escola, tinham aparência decente. Ensinava e exigia dos filhos capricho com todas as coisas e atenção ao modo de comportar-se. Em toda a vida foi a mãe, nas palavras, nas atitudes e presença sincera.
Vicissitudes diversas, obrigaram-na, com o esposo e o restante da família, a migrar definitivamente, na segunda metade da década de 1970, para o Distrito Federal, fixando residência na parte sul da cidade satélite de Ceilândia, nas proximidades da Paróquia Nossa Senhora da Glória, padroeira do lugar, onde já vivia a maior parte dos filhos.
Embora distante do torrão natal, ela nunca esqueceu os parentes e conhecidos de tantos anos de convívio. Procurava comunicar-se regularmente com eles. Aqui e acolá, incumbia a um dos filhos a tarefa de escrever cartas para suas irmãs e pessoas próximas, dando-lhes notícias de sua vida no Planalto Central. Com frequência, tinha sua gente na lembrança, nas conversas e orações.
Além disso, nunca deixou de lado os costumes cearenses. Conservava alimentos e temperos da região, como: cuscuz, tapioca, rapadura, mungunzá etc. Não perdera, também, o sotaque e inúmeras expressões coloquiais. Não aposentara sua rede de dormir, feita de algodão grosso, com varandas e punhos trabalhados à mão.
Neste novo contexto, provou alegrias e dores. Exultava pelas conquistas dos filhos: avanço nos estudos; empregos dignos; moradia própria; construção de sua família; reputação social; busca e vivência da fé. Abraçou com brilho nos olhos numerosos netos e bisnetos. Soube cativar verdadeiras amizades. Jamais deixou de celebrar as coisas bonitas. Enfrentou duras provações: carregava nos ombros a deficiência e o alcoolismo do filho mais velho. Tanto mais difícil, foi suportar a morte do esposo, ocorrida em 20 de outubro de 1981, aos 59 anos. Dividira com ele a cumplicidade de quatro décadas e alguns meses. Não menos diferente, foram as copiosas lágrimas derramadas com o mal passamento de três filhas: Lúcia, recém casada, falecida aos 6 de maio de 1983, prestes a completar 29 anos; Terezinha, solteira, aos 44 anos, em 14 de janeiro de 1996; e Maria Vilani, solteira, aos 49 anos, no dia 19 de novembro de 2000. Apesar de tantas perdas, foi forte para reerguer-se e seguir cuidando do seu canteiro.
Como ramo florido na primavera, como açucena junto ao ribeiro, como ramo de cedro no verão (...) como oliveira frondosa carregada de azeitonas, como árvore balsâmica de espessa ramagem!
(Cf. Eclesiástico, 50, 8.10). Mulher fortaleza. Espalhava suas sementes por onde passava: sua energia na lida cotidiana, trazendo à cabeça o chapéu de palha; seu empenho na administração do lar; seu modo caloroso em acolher as pessoas com uma xícara de chá de erva doce, capim santo ou erva cidreira, do seu próprio cultivo; seu silêncio interior, quando depositava em Deus seu coração e suas preocupações; sua atenção materna, com os frutos do seu ventre, sem contabilizar esforços, sem vaidade; sua franqueza, transparente no dizer e no fazer; sua humildade natural; sempre com as mãos estendidas para os mais necessitados; seu olhar, seu sorriso, seu calor humano, sua pessoa inteira. Nada reteve para si