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Falemos de poesia
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E-book478 páginas5 horas

Falemos de poesia

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Sobre este e-book

Este livro reúne uma série de ensaios apresentados no I Ciclo Nacional de Conversas do Grupo de Pesquisa Poesia Brasileira Contemporânea, formado por 20 pesquisadores de variadas instituições brasileiras, e realiza também uma dupla homengem. Em primeiro lugar, por ser dedicado à memória de Josefina Ludmer, teórica argentina que comparece explícita ou implicitamente nos trabalhos de muitos membros do Grupo e cuja influência é atestada desde a programação do evento, que partiu de uma ideia relacional de poesia, propondo-a como isso que sempre anda junto (poesia e política, poesia e negritude, poesia e destroços, poesia e imagem, poesia e…, poesia e…, poesia e…), em um princípio, portanto, "pós-autônomo". A outra homenagem é a Roberto Corrêa dos Santos, cujo trabalho intitulou uma das mesas do ciclo, "Poesia e Clínica de Artista", dedicada a seu pensamento. Publicamos, também, como um pós-escrito neste livro, um ensaio até então inédito de Roberto, intitulado "O campo expandido da crítica".
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento31 de jan. de 2024
ISBN9786559057108
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    Falemos de poesia - Alberto Pucheu e Danielle Magalhães

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    Sumário

    Nota dos organizadores

    Falemos de poesia

    Alberto Pucheu

    poesia e política

    Política da poesia

    Piero Eyben

    Poesia, política, criação

    Bruno Domingues Machado

    poesia e negritude

    A primeira poeta negra-brasileira

    Heleine Fernandes

    Imagens de levante em Carlos de Assumpção e Maya Angelou

    Jade Soares do Nascimento

    poesia e destroços

    Notícias da poesia do Médio Xingu

    Edmon Neto

    A poesia que se escreve com os destroços

    Martha Alkimin

    poesia e imagem

    Do movimento sobrevivente das imagens: uma leitura de noite de São João, de Natália Agra

    Paulo Benites

    O acontecimento onírico na poesia de Graça Graúna

    Sergio Assunção

    A concepção poética da imagem

    Isa Albuquerque

    poesia e testemunho

    A Medusa em Giorgio Agamben, Hélène Cixous e Tatiana Pequeno

    Danielle Magalhães

    E se amputassem a poesia? Corpo e linguagem em um poema de Paulo Ferraz?

    Diana Junkes

    A boca que fala e a boca que falta: regimes políticos do silêncio na arte contemporânea latino-americana

    Thiago Grisolia

    poesia e indeterminação

    Uma aproximação a um poema de Leonardo Fróes

    Luiz Guilherme Ribeiro Barbosa

    Políticas de impropriedade em certa poesia brasileira contemporânea: vidas rasteiras, de Alberto Pucheu

    Luis Felipe Abreu

    poesia e autobiografia

    Do autobiográfico em poesia: alguns apontamentos

    Maurício Chamarelli Gutierrez

    poesia e crítica

    A poesia e a crítica

    Susana Scramim

    poesia e clínica de artista

    Memórias de uma clínica de artista e seus protoparadigmas dançantes

    André Monteiro

    Uma vida de personagem

    Moisés Alves

    pós-escrito

    O campo expandido da crítica

    Roberto Corrêa dos Santos

    Sobre os autores

    Texto de orelha

    a Josefina Ludmer, em memória

    Nota dos organizadores

    Este livro reúne os ensaios decorrentes do I Ciclo Nacional de Conversas do Grupo de Pesquisa Poesia Brasileira Contemporânea, ocorrido de modo remoto, entre 3 de abril e 8 de maio de 2023. Organizado por Danielle Magalhães (UFRJ/Faperj), pesquisadora e integrante do Grupo, o evento foi movido pelo desejo tanto de reestabelecer as trocas intelectuais e afetivas dos componentes em momento pós-pandêmico quanto de compartilhar as respectivas pesquisas em poesia entre os integrantes do Grupo, espalhados pelos mais diversos cantos do Brasil, e o público.

    O Grupo de Pesquisa, coordenado por Alberto Pucheu (UFRJ/CNPq/Faperj), é cadastrado no CNPq. Esse Ciclo foi o primeiro encontro de todos os vinte pesquisadores do Grupo, oriundos de variadas universidades brasileiras e outras instituições de ensino: UFRJ, UnB, UFCG, UERJ, UFJF, UEFS, UFSC, UFSCar, UFPA, UTFPR e Colégio Pedro II. Entre quem participou do evento, a única ausência neste livro é a de Henrique Borralho (UEMA) que, infelizmente, por motivos pessoais, não pôde enviar o texto finalizado.

    Agradecemos a todos e a todas participantes que se dedicaram a falar de poesia, bem como a dezenas de pessoas que estiveram conosco escutando as palestras e participando das conversas. Um evento e um livro como esses só são possíveis devido às bolsas de pesquisa das agências de fomento Faperj e CNPq.

    Neste livro, realizamos duas homenagens. Uma, dedicando-o à memória de Josefina Ludmer, teórica argentina que comparece explícita ou implicitamente nos trabalhos de muitos membros do Grupo. A influência de Josefina é atestada, ainda, na programação do evento, que partiu de uma ideia relacional de poesia, propondo-a como isso que sempre anda junto (poesia e política, poesia e negritude, poesia e destroços, poesia e imagem, poesia e..., poesia e..., poesia e...), em um princípio, portanto, pós-autônomo. A outra homenagem é a Roberto Corrêa dos Santos, cujo trabalho intitulou uma das mesas, Poesia e Clínica de Artista, dedicada a seu pensamento. Publicamos, também, como um pós-escrito neste livro, um ensaio, até então inédito de Roberto, intitulado O campo expandido da crítica.

    Desde muito tempo, as criações de Josefina e de Roberto são referências da maior importância para muitos e muitas de nós. No segundo semestre de 2011, o coordenador do Grupo os convidou para o VIII Simpósio do Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura) da UFRJ, intitulado Teoria Literária e suas Fronteiras, organizado pelo coordenador, Alberto Pucheu, e por Flavia Trocoli. Josefina Ludmer abriria o evento, mas, inesperadamente, na noite anterior ao dia da abertura, ela não pôde embarcar, devido ao vulcão Puyehue, que entrara em erupção no Chile, afetando o sistema aéreo da América Latina. Solicitou-se então a Roberto Corrêa dos Santos que fizesse a fala de abertura do simpósio. Semanas depois, em 8 de novembro do mesmo ano, Alberto Pucheu conseguiu trazer Josefina, mas, dessa vez, em típica mandinga brasileira, colocou uma fotografia do vulcão Puyehue em plena erupção no cartaz de divulgação da conferência O que vem depois.

    Agora, passados 12 anos, eles voltam a estar juntos em nossas homenagens: ela, falecida em 2016, a quem o livro é postumamente dedicado; ele, com mais um de seus magníficos ensaios, uma Aula Inaugural de 2006, a convite de Eneida Leal Cunha, na Faculdade de Letras da Universidade Federal da Bahia.

    Alberto Pucheu e Danielle Magalhães

    Rio de Janeiro, novembro de 2023

    Falemos de poesia¹

    Alberto Pucheu

    Falemos de poesia. Como um imperativo. Antes, entretanto, troquemos o imperativo pelo presente. Falamos de poesia. Muitos de nós, que falamos de poesia tanto no presente quanto neste passado próximo, falamos de poesia desde um passado mais distante, há três, cinco, dez, vinte, há trinta anos ou, quem sabe, ainda mais. Falamos de poesia hoje e há tanto tempo porque, antes de nós, em um passado mais recente ou mais remoto, em um passado antigo e também arcaico, muitos falaram de poesia. Falamos de poesia, aqui, em nosso I Ciclo Nacional de Conversas do Grupo de Pesquisa Poesia Brasileira Contemporânea, porque se falou e se fala de poesia em Altamira, em Rondônia, em Brasília, em São Luís, em Campina Grande, em Cabedelo, em Salvador, em Juiz de Fora, em São Carlos, no Rio de Janeiro, em Florianópolis, em Porto Alegre... Falamos de poesia porque se falou e se fala de poesia de Altamira ou de Rondônia a Porto Alegre ou, como diz o ditado popular, do Oiapoque ao Chuí.

    Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Maria Firmina dos Reis, Gonçalves Dias e Ferreira Gullar, em São Luís do Maranhão e, com Maya Angelou, em Saint Louis, no Missouri. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Carlos de Assumpção, em Franca e, com Paulo Vieira e Eleazar Venâncio Carrias, em Belém e em Altamira. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Kopenawa, no Alto Rio Toototobi na vila de Marakana, entre Roraima e Venezuela e, com Graça Graúna, em São José do Campestre no Rio Grande do Norte e em Pernambuco. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com indígenas e refugiados, no médio Xingu e, com Homero, em Ios, assim como, com a tradição homérica, em toda a Grécia. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Tatiana Pequeno, Danielle Magalhães, Roberto Corrêa dos Santos, comigo e com Stella do Patrocínio, na Zona Sul, na Zona Norte, no subúrbio, no Centro Psiquiátrico Pedro II no Engenho de Dentro e na Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá no Rio de Janeiro e, com Oswald de Andrade, Haroldo de Campos e Verônica Stigger, em São Paulo. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Chico Alvim, em Brasília e, com Angélica Freitas, em Pelotas. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Paulo Ferraz, em Rondonópolis, no Mato Grosso e, com Ana Martins Marques, em Belo Horizonte. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Natália Agra, em Maceió e, com Mário Quintana, em Alegrete. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Leonardo Fróes, em Secretário ou Petrópolis e, com Manuel Bandeira, no Recife. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Hesíodo, em Cime ou Ascra e, com Ovídio, em Roma. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Rui Costa, na cidade do Porto, com Prisca Agustoni, em Lugano e em Juiz de Fora e, com Paula Glenadel, em Niterói. Falamos de poesia porque se falou e se fala poesia e de poesia, com Eurípides, em Salamina e na Macedônia e, com Conceição Lima, em Santana, na ilha de São Tomé e Príncipe.

    Falamos de poesia predominantemente brasileira e contemporânea, mas não apenas, porque se falou e se fala poesia e de poesia por todos os povos, por todas as épocas e por todos os cantos do mundo. Falamos de poesia porque se falou e se fala de poesia em suas expansões e, com elas, falamos de poesia falando de fotografia, de vídeo-arte, de artes plásticas, de artes visuais e performáticas, com Paulo Nazareth, em Governador Valadares, com Regina Galindo, na Cidade da Guatemala, com Lenora de Barros e Rosana Paulino, em São Paulo e, com Sophie Calle, em Paris. Falamos de poesia porque se falou e se fala de poesia em suas expansões e, com elas, falamos de poesia falando de cinema, com Peter Weir, em Sidnei, com Charles Chaplin, em Londres, com Jean-Claude Carrière, em Paris, com Ingmar Bergman, em Uppsala e, com Glauber Rocha, em Vitória da Conquista.

    Falamos de poesia porque se falou e se fala de poesia ao se falar de crítica, de teoria, de filosofia, de psicanálise, de história, de política, de etnografia, de antropologia e de modos variados de leituras interventivas e, com eles, falamos, entre tantas outras e tantos outros, com Leda Martins, Giorgio Agamben, Hélène Cixous, Guilherme Wisnik, Liliane Louvel, Antonio Candido, Josefina Ludmer, Ailton Krenak, Betina Bishop, Walter Benjamin, Gisele Beiguelman, T.S. Eliot, Laura Graham, Haroldo de Campos, Florencia Garramuño, Jacques Rancière, Marjorie Perloff, Italo Calvino, Hanna Limulja, Roland Barthes, Horácio, Tõrãmã Kêhíri, Umisi Pãrõkumu, Jacques Lacan, Kaka Wera, Jacques Derrida, Mikhail Bakhtin, Thomas Pavel, Baumgarten, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Cornelius Castoriadis e conosco, em uma constelação de trabalhos e de cidades.

    Do que, entretanto, falamos quando falamos de poesia? Falamos de política, de negritude, de destroços, de imagem, de testemunho, de indeterminação, de autobiografia, de crítica, de clínica. Falamos de uma história escravocrata e racista do Brasil lida e vivida por negros e indígenas, falamos da vivência diaspórica pautada pela violência sofrida, falamos de invisibilizações, falamos de arquivos contra-coloniais, falamos de epistemicídios, falamos de monocultura e de policulturas de saberes, falamos de descolonialidade, falamos de línguas de forro, falamos de oralituras, falamos de levantes, de combates, de insurgências e de subversões a partir das opressões sofridas, falamos da invenção de uma rebeldia que perturba a ordem, falamos de recontar a história pelo ponto de vista de negros e negras, de indígenas, das mulheres, falamos da natureza, da crise climática, de racismo ambiental e de ecocídios, falamos das ruínas da ditadura, falamos da materialidade dos silêncios e dos impedimentos materiais de falar, falamos de histórias contadas, mas não ouvidas, falamos de cantos xamânicos e outros cantos indígenas com sentidos quase perdidos ou integralmente perdidos, falamos de um processo de desembranquecimento da Amazônia e de uma amazonização do Brasil, falamos de poetas do médio-Xingu, falamos, entre as ruínas, com suas imagens e efeitos, das nuvens e das nuvens tecnológicas, de névoas, de ventos, de ares e de fumaças de queimadas, falamos de imagens, de documentos e dos efeitos de suas projeções, falamos de distintas camadas temporais, do arcaico e do apocalipse distópico de nosso tempo em que o céu está prestes a cair – se é que já não caiu –, falamos do arpocalipse e falamos da busca por uma saída, por um escape, por um desvio, falamos de uma abertura do campo do possível, de rios navegados e de rios aéreos, falamos de mundos alternativos, de realidades paralelas, falamos de instituições sociais, falamos de atos de fala que antecipam atos sociais, falamos de um comum para relações variadas e de variações e diferenças dentro desse comum, falamos do poder e do não poder, falamos do não pertencimento da linguagem, falamos de políticas de impropriedades e de ocupações, falamos de ouvir as vozes e os rumores de vidas anônimas sem teto, falamos de compartilhamentos de memórias comuns, falamos de fazer comunalidades, falamos dos vis e dos ódios, da guerra, da morte e do que perturba a paz, falamos do corpo glorioso e do corpo com furos (perfurado, ainda, muitas vezes, a bala), falamos da relação entre pai e filho, falamos das mães, e de suas mortes, falamos das intensidades, dos turbilhões e das delicadezas, falamos da arte de ceder, falamos da constituição da subjetividade e dos espaços dramáticos, falamos do grito e do riso como limites do escrever (écrire), falamos do testemunho a partir da Medusa, falamos do estupro, falamos do princípio ético de encarar o que não pode deixar de ser visto, falamos de devolver as línguas, mesmo que amputadas, ao testemunho, falamos de uma voz sem língua, falamos das feridas que proíbem o esquecimento, falamos de figurações do indefinível como da decomposição dos corpos de cadáveres, falamos do resto vital em movimento no corpo já morto, falamos de alteridades, falamos dos sonhos ameríndios como uma dimensão oracular e como uma face oculta tanto da ciência ocidental quanto da colonialidade moderna, falamos do horror, da desgraça e da graça, falamos do que resta da devastação, falamos de fantasmagorias, falamos de sobrevivências, falamos de experiências e de dores, falamos de mediações que deixam vida ser vida, falamos de vida e falamos do mundo.

    Por que, entretanto, falamos de poesia, quando falamos de todas essas coisas? Ou por que falamos de todas essas coisas quando falamos de poesia? Falamos de poesia porque, de tudo que falamos quando falamos de poesia, falamos de poesia desde os corpos, desde vida e desde o real. Um poema de que gosto muito de André Luiz Pinto, intitulado Retorno, do livro Terno novo, desde sua primeira palavra, traz um imperativo que retorna sete vezes em seus dezoito versos: Olhe. Olhe, diz o poema de forma retornante, fazendo com que seja esse próprio imperativo que retorna: Olhe a tua volta, Olhe a tua volta, Olhe ao redor, Olhe mais um pouco, Olhe, peço de novo, Olhe, Olhe bem de perto. Ao fim das repetições imperativas e demandadoras, esse Olhe bem de perto vem com um acréscimo que diz muito da poesia: Olhe bem de perto, você aguenta.²

    Suportar o que, retornantemente, há para encarar, suportar, retornantemente, um mundo do horror e do terror que se herda olhando-o, retornantemente, bem nos olhos, sofrer, retornantemente, o que se vive e o que, para poder compreender, retornantemente, se olha, parecem ser a demanda e a coragem da poesia, que, como falamos, está aí para, retornantemente, aguentar olhar o real o mais de perto possível, sustentando, retornantemente, na linguagem do poema aquilo que, retornantemente, ele pode suportar, aquilo que, no limite, retornantemente, ele é capaz de sustentar, aquilo que, no extremo, as fragilidades retornantes dos versos conseguem sofrer do real retornantemente encarado. No poema de André Luiz Pinto, o verbo retornante é olhar, mas valeria igualmente para ouvir, cheirar, degustar, tocar, sentir, pensar...

    Falamos de poesia desde isso que, nela, com o próprio verso, retorna, porque isso que retorna com o verso está, desde há muito, colocado pela poesia e é disso que falamos quando falamos de poesia, quando falamos do verso, quando falamos do que retorna. Falando desse retorno da poesia, de alguma maneira, o poema de André Luiz Pinto atualiza o que fora falado por um poeta grego antigo que, por sua vez, reformula, fazendo-o retornar pela diferença e pelo avesso, um antigo provérbio ainda anterior a ele (o de que sabedoria seria evitar o sofrimento), mostrando para nós o que retorna no poema, o que retorna no verso, o que retorna no retorno do verso, o que retorna na fratura do retorno do verso. No famoso verso 178 do Agamêmnon,³ Ésquilo escreve a lei válida do πάθει μάθος – aprender por sofrer – encaminhada por Zeus aos mortais para lhes ensinar o pensar, a compreensão, a prudência (φρονεῖν, σωφρονεῖν). Esse aprender por sofrer vem de fora dos mortais, no caso, de Zeus, tido na tradição poética grega, via, por exemplo, Semônides, como o abalador de alicerces,⁴ ou seja, quando qualquer alicerce é abalado, denomina-se tal abalo de um feito de Zeus. O abalo dos alicerces é o caminho pelo qual os mortais são conduzidos à violenta graça de pensar a vida em todo o seu peso, fazendo com que esse pensar e esse pesar se façam como um ponderar pelo assombroso que nos acontece, pelo impossível que nos violenta, pelos incidentes que, inesperadamente, nos atingem, pela experiência que, à nossa revelia, somos obrigados a fazer, pelo sofrer que nos leva a sentir o peso do desabe da vida ou de algo dela antes alicerçado.

    Para Ésquilo, o duro trabalho da dor que os mortais trazem então de cor recai, constante e insonemente, no coração, propiciando-nos, de maneira involuntária, o pensamento e a ponderação, ou seja, pensar, contrariadamente, com o peso do abalo que nos acontece. Se esse pensar o peso do acontecimento com a dor que trazemos de cor e no corpo é uma derivação do que, vindo de fora, abalando-nos, fazendo-nos sofrer, nos impacta, tal pensar, mesmo que impulsionado por um fora, é ativo, é um fazer. Fazemos alguma coisa com esse abalo dos alicerces, ponderamos a partir do peso desse abalo dos alicerces, pensamos esse e com esse abalo dos alicerces, ou seja, o πάθει μάθος, páthei mathos, sendo um aprender por sofrer, é um aprender a fazer pelo e com o sofrer. Nessa ambiência, estamos lidando com um fazer desde o coração a partir do que vem de fora e nos toma, com o que poderia ser chamado de um fazer do coração, de uma cardiopathia que se desdobra em um cardiopoetar.

    Jaa Torrano afirma que esse aprender por sofrer trata de uma experiência vivida, [que,] quanto mais forte, com tanto mais força impõe-se à reflexão de quem a viveu.⁵ Giorgio Agamben interpreta tal expressão como um aprender somente através de e após um sofrimento, que exclui toda possibilidade de prever, ou seja, de conhecer com certeza coisa alguma.⁶ Se, como diz Lacan,⁷ os deuses gregos, pertencendo ao real e sendo modos de o real se manifestar, são nomes para dizer o real, estamos diante do que, falando poesia e de poesia, retorna para nós: retorna para nós o πάθει μάθος a partir do real que, a cada vez, retorna no verso, no retorno do verso, na fratura do retorno do verso.

    Se falando poesia e de poesia, isso é o que retorna com o verso, com o retorno do verso no poema e com o poema, mesmo que provisoriamente, parece-me possível dizer algo como isso de outras maneiras. Eu poderia falar que um poema é o que, encarando o real, arranca, no fórceps dos versos ou da linguagem que se interrompe e retorna, no fórceps do seu ditado fraturado, isso que o real definitivamente o impede de dizer. Vale lembrar da ousada definição que, me acompanhando retornantemente há muitos anos, pois retornantemente preciso dela, Alain Badiou, em Em busca do real perdido, dá do poema. Escreve Badiou: todo grande poema é o lugar linguageiro de uma confrontação radical com o real. Um poema extorque à língua um ponto real impossível a dizer.

    Por mais que tentemos, parece-me difícil conceitualizar o poema melhor do que Badiou conseguiu com tais palavras, com tal frase que se propõe a difícil tarefa de falar o que é um poema, ou melhor – e ainda muito mais difícil –, o que é todo grande poema. Aqui, a possibilidade de um grande poema não tem nada a ver com a exclusividade de sua extensão, de uma perícia técnica, de uma erudição poética, mas com extorquir à língua um ponto real impossível a dizer. E o que mais tem nesse confronto que realizamos com o real são forças e poderes instituídos dos mais variados que nos impedem de dizer, que trabalham para nos impedir de dizer, para nos silenciar.

    Assim como falamos por esses dias de vários e várias poetas, eu tenho dito e escrito nesses últimos anos que poemas de Carlos de Assumpção, de Eliane Potiguara e de Pedro Tierra confrontam-se radicalmente com o real traumático que marcou seus e muitos de nossos corpos, singulares e coletivos, carnais e políticos, que nos marcou e segue nos marcando em nosso tempo e em nossa história, em limites de dissolução inultrapassáveis, extorquindo à língua um ponto real impossível a dizer. Tais poetas compõem meu último projeto de pesquisa e o livro, por sair, intitulado Trilogia da Resistência. Dos três, o primeiro é um homem negro de 96 anos que só não foi neto de escravos por uma contingência histórica, a segunda é uma mulher indígena de 71 anos, estuprada e diversas vezes ameaçada de morte, e o terceiro, um preso político de 76 anos pertencente à ALN, torturado incansavelmente por cinco anos pelos policiais e militares da ditadura.

    A poesia de Carlos de Assumpção será apresentada aqui por Jade Soares, junto com a de Maya Angelou. Coloco então exemplos de poemas de Pedro Tierra e Eliane Potiguara. O Poema-Prólogo se constitui como o primeiro poema do primeiro livro de Pedro Tierra, Poemas do povo da noite, todo ele escrito na prisão.

    POEMA-PRÓLOGO

    Fui assassinado.

    Morri cem vezes

    e cem vezes renasci

    sob os golpes do açoite.

    Meus olhos em sangue

    testemunharam

    a dança dos algozes

    em torno do meu cadáver.

    Tornei-me a mineral

    memória da dor.

    Para sobreviver,

    recolhi das chagas do corpo

    a lua vermelha de minha crença,

    no meu sangue amanhecendo.

    Em cinco séculos

    reconstruí minha esperança.

    A faca do verso feriu-me a boca

    e com ela entreguei-me à tarefa de renascer.

    Fui poeta

    do povo da noite

    como um grito de metal fundido.

    Fui poeta

    como uma arma

    para sobreviver

    e sobrevivi.

    Pela primeira estrofe do Poema-Prólogo, sabe-se que, com a tortura repetidamente sofrida, não se morre, conforme o esperado, apenas uma vez; ao menos, não obrigatoriamente. Pode-se morrer, como no caso do poeta, uma, duas, três, quatro, cinco... cinquenta... cem vezes. Com a primeira vez não se confundindo obrigatoriamente com a última, não sobrevivendo, portanto, apenas da morte, mas sobrevivendo na morte, faz-se a experiência do/no morrer a cada vez que se padece da tortura e quantas vezes ela for sofrida: em um cárcere no Brasil, e não apenas em tempos de Ditadura, como também em tempos que lhe são herdeiros, morrer é justamente a experiência que muitas vezes se repete, a experiência retornante. Não se trata aqui de, em nome de uma verdade inabalável, dizer que se morre apenas, irrepetivelmente, uma vez ou, então, não se morre; trata-se, antes, de afirmar que, em tais circunstâncias, a morte, como o verso, retorna, invade a vida, interrompe-a, consome-a, mata-a, fazendo com que, na superfície e nas entranhas do corpo, uma vida faça a experiência da morte retornante quantas vezes for submetida a uma violência extrema, para renascer, quando possível, no momento seguinte.

    O poema não testemunha apenas em substituição àqueles que, fazendo a experiência final da morte, não sobreviveram, mas, nele, testemunha aquele que também morreu – cem vezes – e, apesar disso, sobrevivendo, pode falar, partilhando com muitos a experiência do morrer e partilhando com alguns a experiência do renascer depois da tortura, sobrevivendo à morte. Não há, aqui, uma espécie de verdade exclusiva dos mortos que não sobreviveram, em que apenas eles, testemunhas integrais ou verdadeiras, sofreram a experiência até o fim, mas não a podem enunciar, precisando, portanto, dos sobreviventes, que não teriam feito até o limite a experiência da morte, para darem algum tipo, possível, incompleto, de testemunho; e, não havendo uma distinção hierárquica entre mortos e vivos, não há tampouco uma segregação hierárquica entre o testemunho, impossível, dos mortos e o testemunho possível dos vivos. Rompendo a linha de segregação entre ausência de voz e enunciação, entre mudez e fala, o testemunho possível dos vivos provém exatamente da aporia de uma fala ou de uma escrita impossível provinda da experiência da morte ou, no plural, da experiência de uma centena de mortes. Na tensão constante entre o que não pode ser dito e o que, pelo ato da criação e pela criação em ato, o pode ser, nessa tensão entre impoder e potência, longe de haver uma irrepresentabilidade absoluta, o sobrevivente, renascido retornantemente das mortes das torturas, testemunha poeticamente desde as mortes sofridas por ele e por outros.

    Também é pela tensão entre morte individual e a longa vida coletiva igualmente de mortes que começa o amplo e antológico poema Identidade Indígena ou Em memória ao índio Chico Solón, de Eliane Potiguara:

    identidade indígena / em memória ao índio chico solón

    [Em memória de meus avós, escrito em 1975 (versão indígena)]¹⁰

    [O texto é o testemunho das lágrimas de uma indígena vendedora de bananas, sua avó a refugiada Maria de Lourdes de Souza, filha do índio Chico Sólon, desaparecido das terras indígenas paraibanas por volta de 1920, quando se instalava ali, a neocolonização da agricultura algodoeira causando a fuga de famílias indígenas, oprimidas pela escravidão moderna]¹¹

    Nosso ancestral dizia: Temos vida longa!

    Mas caio da vida e da morte

    E range o armamento contra nós.

    Mas enquanto eu tiver o coração aceso

    Não morre a indígena em mim

    E nem tão pouco o compromisso que assumi

    Perante os mortos

    De caminhar com minha gente passo a passo

    E firme, em direção ao sol.

    Sou uma agulha que ferve no meio do palheiro

    Carrego o peso da família espoliada

    Desacreditada, humilhada

    Sem forma, sem brilho, sem fama.

    Mas não sou eu só

    Não somos dez, cem ou mil

    Que brilharemos no palco da História.

    Seremos milhões unidos como cardume

    E não precisaremos mais sair pelo mundo

    Embebedados pelo sufoco do massacre

    A chorar e derramar preciosas lágrimas

    Por quem não nos tem respeito.

    A migração nos bate à porta

    As contradições nos envolvem

    As carências nos encaram

    Como se batessem na nossa cara a toda hora.

    Mas a consciência se levanta a cada murro

    E nos tornamos secos como o agreste

    Mas não perdemos o amor

    Porque temos o coração pulsando

    Jorrando sangue pelos quatro cantos do universo.

    Eu viverei 200, 500 ou 700 anos

    E contarei minhas dores pra ti

    Oh!!! Identidade

    E entre uma contada e outra

    Morderei tua cabeça

    Como quem procura a fonte da tua força

    Da tua juventude

    O poder da tua gente

    O poder do tempo que já passou

    Mas que vamos recuperar.

    E tomaremos de assalto moral

    As casas, os templos, os palácios

    E os transformaremos em aldeias do amor

    Em olhares de ternura

    Como são os teus, brilhantes, acalentante identidade

    E transformaremos os sexos indígenas

    Em órgãos produtores de lindos bebês guerreiros do futuro

    E não passaremos mais fome

    Fome de alma, fome de terra, fome de mata

    Fome de História

    E não nos suicidaremos

    A cada século, a cada era, a cada minuto

    E nós, indígenas de todo o planeta

    Só sentiremos a fome natural

    E o sumo de nossa ancestralidade

    Nos alimentará para sempre

    E não existirão mais úlceras, anemias, tuberculoses

    Desnutrição

    Que irão nos arrebatar

    Porque seremos mais fortes que todas as células cancerígenas juntas

    De toda a existência humana.

    E os nossos corações?

    Nós não precisaremos catá-los aos pedaços mais ao chão!

    E pisaremos a cada cerimônia nossa

    Mais firmes

    E os nossos neurônios serão tão poderosos

    Quanto nossas lendas indígenas

    Que nunca mais tremeremos diante das armas

    E das palavras e olhares dos que chegaram e não foram.

    Seremos nós, doces, puros, amantes, gente e normal!

    E te direi identidade: Eu te amo!

    E nos recusaremos a morrer

    A sofrer a cada gesto, a cada dor física, moral e espiritual.

    Nós somos o primeiro mundo!

    Aí queremos viver pra lutar

    E encontro força em ti , amada identidade!

    Encontro sangue novo pra suportar esse fardo

    Nojento, arrogante, cruel…

    E enquanto somos dóceis, meigos

    Somos petulantes e prepotentes

    Diante do poder mundial

    Diante do aparato bélico

    Diante das bombas nucleares

    Nós, povos indígenas

    Queremos brilhar no cenário da História

    Resgatar nossa memória

    E ver os frutos de nosso país, sendo dividido

    Radicalmente

    Entre milhares de aldeados e desplazados

    Como nós

    Assim como nos versos finais do poema, em que, em certo momento, é dito Queremos brilhar no cenário da História, nessa abertura, temos praticamente o mesmo verso: Que brilharemos no palco da História. Entre a vontade do verso ao fim (queremos) e a certeza do verso no começo (brilharemos), trata-se de transformar o apagamento eurocêntrico, colonialista, neocolonialista e neoliberal da história indígena em brilho histórico, a infâmia, em fama, o descrédito, em confiança, a humilhação, em orgulho, o sem forma e vazio, em resplandecência de todo um mundo até então vilipendiado, a morte, em vida.

    Já a passagem inicial cria uma oscilação repetitiva entre a primeira

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