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O Concerto das Letras: Contos inspirados em música
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O Concerto das Letras: Contos inspirados em música
E-book171 páginas2 horas

O Concerto das Letras: Contos inspirados em música

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Sobre este e-book

Como a música pode estimular a criação literária? Propondo uma resposta, 15 autores contemporâneos de língua portuguesa [Brasil-Moçambique-Portugal], com um gosto em comum pela sonoridade das notas e das palavras, se inspiraram em músicas de concerto para compor estes contos. Diversos estilos de escrita, diferentes humores, temas e ritmos se espalham pelas páginas, formando uma verdadeira sinfonia de vozes para ser lida e ouvida.

O Concerto das Letras – contos inspirados em música é, assim, uma leitura imperdível para amantes de música e literatura.

"Talvez o ideal seja ler cada conto ao som da música respectiva para recriar, como um cenário, o almejado conceito romântico de obra de arte total (Gesamtkunstwerk). Segui este conselho quando li os originais da Sinfonia dos Mil. Alguns textos transmitiram ao meu cérebro a sensação de que o autor usou o ritmo da obra para escrever. O leitmotiv melódico ou harmônico transforma as notas em letras; o andamento, em parágrafos. Então, surge um contraponto curioso. (...) Se a obra que você tem em mãos fosse, de fato, uma música, seria um tipo de Rapsódia escrita a várias mãos." - do prefácio de Leandro Karnal

* * *

Rafael Gallo, vencedor do prêmio José Saramago, é formado em Música pela UNESP, mas encontrou na literatura sua principal forma de expressão. Cristhiano Aguiar foi premiado com o prêmio Jabuti por seus contos de terror. Mariana Salomão Carrara e Natalia Timerman são fenômenos de leitores Brasil afora. Com estes e outros autores contemporâneos brasileiros, portugueses e moçambicanos, o livro de contos O Concerto das Letras é um lançamento imperdível para amantes de música e literatura.

Reunindo diversos estilos de escrita, diferentes humores e ritmos se espalham pelos contos, como em uma verdadeira sinfonia.

Lançado pela Editora Tipografia Musical, cada um dos 15 contos foi inspirado em uma composição, como A refeição, que traz uma filha conversando com seu pai, já morto, um espectro e uma lembrança de uma ópera de Mozart, a necessidade de continuar a matar o pai e uma tristeza familiar. Como acontece com o personagem Don Giovanni, um homem que seduz mulheres e depois as deixa, a filha do conto de Paula Febbe também sente o abandono deste homem em vida e, depois, na morte de seu pai.

O livro conta ainda com um prefácio, que chamamos de prelúdio, de Leandro Karnal.

Autores: Alex Sgreccia, Camilo Gomide, Cristhiano Aguiar, Hirondina Joshua, Jessica Cardin, Leonardo Mathias, Mariana Salomão Carrara, Mário Alves Coutinho, Natalia Timerman, Paula Febbe, Paulo Vicente Cruz, Rafael Gallo, Rute Simões Ribeiro, Simone AZ e Yuri Al'Hanati. Organização de Jessica Cardin. Apresentação de Leandro Karnal
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de abr. de 2024
ISBN9786587867373
O Concerto das Letras: Contos inspirados em música

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    O Concerto das Letras - Jessica Cardin

    O concerto das letras

    LEANDRO KARNAL

    As informações cruzam o cérebro em emaranhados de neurônios. Ali, a memória de um som; aqui, um cheiro da infância; à frente, um sabor marcante. Cada sentido-antena captura uma impressão do mundo. Nariz, língua, ouvido, tato e visão enviam os dados para o mesmo lugar dentro da cabeça. O que entra separado forma, lá, camadas mistas e alternadas. Informações que se alimentam, trombam e criam redes entrelaçadas. A grande mistura da evocação cruzada de memórias é chamada de sinestesia pelos especialistas.

    Os escritores amam dar cor aos sons, cheiros às cores, música ao olfato. Poetas usam e abusam do recurso. Mário de Sá-Carneiro registra: Insônia roxa. A luz a virgular-se em medo./ O aroma endoideceu, upou-se em cor, quebrou/ Gritam-me sons de cor e de perfumes. Lindas palavras para viver o enredado neuronal caótico e intenso.

    Os termos gregos para união e sensação formam a palavra sinestesia. Um exemplo? Meu colégio da infância, São José, tinha às manhãs o cheiro do pão assado pelas freiras. Ao chegar cedo, ouviam-se cantos da capela misturados ao aroma de pães assados. Se entrássemos no espaço de orações, a luz azulada dos vitrais inundaria, suave, todo o ambiente. Era algo único: um pão-gregoriano-azul. Para sempre, no escaninho da minha alma, a mistura evoca o sagrado e a infância.

    Por todo lado, identificamos união de sensações e composição de memórias. A Sexta Sinfonia de Beethoven tem cheiro de chuva. A Cantata Café de Bach evoca o gosto da rubiácea. Come-se, ouvindo; ouve-se, saboreando a vida que os gênios engendraram, sinestesicamente. A melodia é a chave de muitos mundos, e a música sempre foi um signo aberto.

    * * *

    Jessica Cardin reuniu pessoas que pensaram narrativas com som. A sinestesia vira fio condutor de histórias. Talvez o ideal seja ler cada conto ao som da música respectiva para recriar, como um cenário, o almejado conceito romântico de obra de arte total (Gesamtkunstwerk). Segui este conselho quando li os originais deste livro. Alguns textos transmitiram ao meu cérebro a sensação de que o autor usou o ritmo da obra para escrever. O leitmotiv melódico ou harmônico transforma as notas em letras; o andamento, em parágrafos. Então, surge um contraponto curioso. Foi uma experiência notável minha viagem pela imaginação de tantos talentos ao som de músicas pungentes.

    Se a obra que você tem em mãos fosse, de fato, uma música, seria um tipo de Rapsódia escrita a várias mãos. Foi dado o tema, como Frederico de Prússia ofereceu a Bach. Começam as variações. Quando Sergei Rachmaninoff gosta de uma centelha de Niccolò Paganini, usa as notas da fonte como base de uma nova fogueira artística. São criadores tecendo camadas a partir de outra obra e mostrando o efeito infinito da inspiração que a música provoca.

    Existem filmes que devem ser vistos e ouvidos ao mesmo tempo. O melhor exemplo talvez seja Todas as manhãs do mundo (Tous les matins du monde, Alain Corneau, 1991). Há pinturas, como de James Whistler (1834-1903), que buscaram inspiração nos Noturnos de Chopin. Há livros, como este, para serem lidos e ouvidos. Entregue-se ao deleite sinestésico da arte da memória e da criação. Permita-se ler e ouvir. Voe e sonhe. Seus neurônios anseiam por novas ligações. Sua vida ressecada pela monotonia do cotidiano quer o orvalho da música. Entregue-se. Vai começar o concerto das letras. Silencie o celular e abra a alma. Vale a pena.

    Playlist

    O concerto das letras

    Spotify

    A escritora que é pedra encontra uma menina que é segundo

    RUTE SIMÕES RIBEIRO

    Gustav Mahler, Sinfonia nº 9

    A escritora disse, Nada mais escrevo que não cante, nada mais vejo que não morra. Ela saiu então do quarto, pois não esperou que morresse o que então via. Sossegou quem por ela passou, Nada acontece que não seja invisível, não incomodará o que não exista. E dela caía a pena. E da pena caía o canto. Ela chegou à rua e sentou-se, pois à vida que passava em frente ela só assistia. E ela se comovia.

    Uma menina a viu restando no chão, contando para trás a vida que escorria ao dia. A menina disse, Tudo se move enquanto tu te demoras. A escritora olhou para ela, que era vida, e disse, Quando o movimento é inútil, a gente só pode assistir. A menina tentou encontrar a palavra necessária, mas só encontrou uma que não solucionava nada, Tem sempre movimento a espera. A escritora viu a menina como se acabasse de chegar e disse, Movo meus medos, meus modos, meu jeito, mas a vida sempre cessa, sempre vai, sempre escorre. Ela te escorrerá, menina. A menina entendeu que a escritora era pedra e saiu.

    A escritora continuou imobilizada, sentada no chão que com ela parava também. Mas a escritora notou num instante a mudança que nela e no chão parado se fazia. Ela soube que tinha ficado a falta. E a falta lhe movia os medos, os modos, o jeito. Ela quis a menina que lhe tinha fala, ainda que um dia nada. E ela se levantou do chão que para trás continuou parado e seguiu, decidindo cada passo de modo a fazer caminho.

    Conforme andava, tudo o que era ela além da falta se movia e lhe pedia palavra. Ela então soube que era estátua. Nos seus contornos fixos, ela era transformada.

    A escritora parou no meio do caminho, que também pode ser destino, e na folha de papel de que desistira esboçou o movimento que lhe ia. Ela escreveu, Nada. E a palavra ela tentou, no destino que fora caminho, Nada existe que não seja segundo, nada acontece que não se faça pó. E a escritora entendeu o que só fora semente. Ao dia que se queda sobra outro que se recomeça. E ela os dias quis, recomeçados como palavras cumpridas e palavras de novo tentadas.

    A menina a encontrou, em estátua, contando dias seguintes na poesia que longa lhe escorria da pena. E pôs pergunta sobre a esperança, Se segundo sou e segundo serei, quererás que tua seja no tempo que é meio? A escritora entregou um gesto onde ia toda, deixou cair a pena que dentro dela se firmou, estilhaçou os contornos fixos que a agrilhoavam dentro e segurou a menina. Apertou os braços, onde guardou o movimento. Sentou-se no chão, onde foi colo.

    A menina então na escritora se deixou inteira no pedaço de vida que era apenas. O tempo era todo no segundo que as tinha juntas. E a escritora começou cantando, com palavras pela primeira vez encontradas, a folha que era o segundo infindo que a vida se desfiando nos braços continha. Se um dia a vida onde ela habitava com seu afeto, seus medos, seus modos, seu jeito, desnascesse, ela em beijos permanentes lhe teria dito, Minha poesia, minha morada, tua vida foi contada.

    Primaveras

    MARIANA SALOMÃO CARRARA

    Vivaldi, Primavera – As quatro estações

    Os braços do meu pai traçavam um voo doméstico à minha frente, um volteio delicado que levava na ponta o xarope, simulando talvez um minúsculo balão que não podia transbordar do copinho, o cheiro de falso doce amarguinho, eu vidrada no trajeto do remédio até a minha boca, túnel que eu fechava teimosa e nauseada de mais uma constipação qualquer, alergias crônicas quase asmáticas, um ou outro transtorno que as crianças cultivam periodicamente e não se deixam tratar.

    Dessas tardes só posso me lembrar dos braços do meu pai nos volteios do xarope voador e a música ligada o tempo todo, e a paródia improvisada por ele que era um jovem gastando o domingo na tentativa de medicar a filha, o Vivaldi avolumando na sala amadeirada, madeira muito clara, disso também me lembro como um fundo cênico para as danças do braço do meu pai, agora maestro com o xarope em riste, a Primavera no auge, a orquestra determinadíssima a me fazer engolir harmoniosamente o remédio, e então ele entoou, no ritmo, nosso novo refrão familiar: quem tem Zaditen-tem-tem, tem-tem. Zaditen era o nome do xarope, as sílabas encaixadas em cada nota do estupor da Primavera, meu pai agora em rodopios, o copinho cheio sem derramar uma gota, a Primavera entoando mais uma e outra vez o nosso refrão: quem tem Zaditen-tem-tem, tem-tem!

    Então era isso, Vivaldi tinha composto tudo para mim, para que eu abrisse a minha boquinha tão amada, tão querida, e engolisse o amargo todos os dias, e agora bastaria que meu pai ligasse a minha música, nossa Primavera, e entoasse o refrão secreto, que era o do meu remédio, e essas tardes na minha lembrança são essas madeiras claras, e a regência dos braços do meu pai com o Zaditen-tem-tem, o cheiro de alguma essência infantil no xarope, a cor de água amarelada no copinho, a minha música, a minha orquestra, o meu pai, a minha bronquite, tudo tão totalmente meu, o meu Vivaldi.

    Ao soar das primeiras notas da Primavera, a linguinha já produzia todo o necessário para adivinhar e receber o Zaditen, meu pai e eu já vivíamos juntos a expectativa durante a breve pausa, o suspense antes da explosão dos violinos e instrumentos todos, quem tem Zaditen-tem-tem, e então eu engolia, e isso eu achava que era a nossa vida, enquanto minha mãe cuidava de todo o resto.

    Depois eu cresci um pouco, o que eu não podia prever, há uma série de coisas que não podemos prever a certa altura. Cresci obcecada com as músicas que o meu pai deixava como trilhas sonoras do nosso cotidiano, minha mãe picava um legume enquanto uma orquestra elevava a sala e eu era cada vez menos a plateia absoluta, os grandes compositores já não me dedicavam refrões para engolir os meus remédios, eu já nem precisava do Zaditen. Um dia me referi àquelas músicas como canções sem letra, e ele me olhava de repente seriíssimo, então emendei que quando tinham letra não eram em português, eram línguas alongadas e de mentira, e meu pai que ainda era um jovem de alguma forma gastando o seu domingo na sala com a filha me disse que eram muito, muito mais que músicas sem letra, e então ficamos os dois obcecados.

    A obsessão culminou na chegada de um piano vertical e uma professora velha e impaciente, as aulas eram para mim porque o meu pai dizia que essas coisas só se aprendem quando somos muito novos, já era tarde demais pra ele, então ficava espiando minhas aulas na desculpa de servir um café que a minha mãe passava, água, uns biscoitinhos que eu não estava autorizada a pegar porque minhas mãos tinham de ficar limpas e concentradíssimas. Às vezes ele deixava a bandejinha ao lado da professora e me fazia uma breve massagem nos ombros minúsculos que já estavam aprendendo a tensionar, só pra ficar observando.

    As teclas eram imensas para os meus dedinhos curtos, a professora reclamava dos meus dedos e eu olhava para eles procurando uma forma de espichá-los e ela mesma me consolava, eu só precisava compensar com a cabeça o que me faltava em dedos, a resistência da tecla era uma delícia, atravessar a sua força adulta até acionar o martelo e fazer soar alguma coisa magnífica e além de mim. Mas por trás das canções supostamente sem letra havia desenhos e signos demais que passaram a ocupar as minhas horas e as noites e até os sonhos, eu precisava entender que o piano aconteceria ao mesmo tempo que tantos outros sons e se eu errasse seria a ruína de toda a orquestra. Que orquestra? Invisível, mas implacável, estava sempre ali oculta na sala a suposta orquestra toda a contar comigo, decepcionada com as minhas escalas,

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