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Como asas e âncoras
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Como asas e âncoras
E-book311 páginas4 horas

Como asas e âncoras

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Sobre este e-book

Na adolescência, Antonieta Neves é vítima de uma violência sexual, que a leva a fugir do Rio Grande do Norte para São Paulo. Desaparecida por seis anos, período em que enfrenta anos duros naquela cidade, é descoberta e ajudada por uma assistente social que fazia um levantamento dos moradores de rua durante a pandemia. A profissional acaba por descobrir que os parentes próximos de Antonieta foram vitimados pela covid-19, exceto seu pai, e convence a moça a voltar para suas terras e ajudá-lo na recuperação dos negócios da família. Antonieta recomeça a vida em Macaíba, vestindo a pele imaginária de Nieta Duboc, e neste retorno descobre preciosos segredos de sua mãe, guardados no porão. As histórias de mãe e filha se entrecruzam quando a moça estabelece uma relação amorosa com um homem que se prova filho do homem que foi o grande amor de sua mãe, antes de se casar com seu pai. O casal vive uma relação intensa onde o sexo tem papel central e motriz na resolução dos traumas de Antonieta. O prazer feminino assume um tom axial nesse livro de beleza ímpar.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de mai. de 2024
ISBN9786580672783
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    Pré-visualização do livro

    Como asas e âncoras - Kátia Valevski

    Capa - Como asas e âncorasCapa - Como asas e âncoras

    Copyrigth: Kátia Valevski e Folhas de Relva Edições

    Direção editorial: Alexandre Staut

    Revisão: Beatriz Carrijo

    Projeto gráfico: Osvaldo Piva

    Capa: Loohan Fernandes Barreto

    Desenvolvimento de eBook: Loope Editora

    Catalogação na publicação

    Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166

    V168c

    Valevski, Kátia

    Como asas e âncoras / Kátia Valevski. – São Paulo: Folhas de Relva, 2024.

    ISBN 978-65-80672-72-1

    1. Romance. 2. Literatura brasileira. I. Valevski, Kátia. II. Título.

    CDD 869.93

    Índice para catálogo sistemático

    I. Romance: Literatura brasileira

    Folhas de Relva Edições/ São Paulo Review Produções

    Rua Marquês do Herval, 414, Centro, Espírito Santo do Pinhal, SP

    CEP: 13990-000

    www.editorafolhasderelva.com.br

    www.saopauloreview.com.br

    À paz do meu quintal

    e aos miados amorosos

    de Pórum, Sina, Preto,

    Tinky e Pooh!

    "Tempo, tempo, tempo, tempo

    Quando o tempo for propício…"

    Caetano Veloso

    No mar da ficção a travessia do vagalume, de brilho mais duradouro, a metáfora de Antonieta, a Nieta criada por Kátia Valevski

    Por Adriana Vieira Lomar

    A escrita de Kátia Valevski é diferenciada pela originalidade de mesclar com desenvoltura uma escrita refinada ao realismo a serviço de um enredo rico em ação. A trajetória da protagonista Nieta é repleta de sofrimentos e recomeços. O elo entre o presente e o passado trará a alquimia necessária para a cicatrização de suas chagas.

    Há vários aspectos do romance que me chamaram a atenção, a linguagem elaborada, um bordado alinhavado com linhas nobres e precisas a serviço de uma trama urdida em tempos diversos; a tristeza, a mágoa presente na filha é desanuviada no porão, uma espécie de santuário repleto de memórias, um lugar sagrado que lhe dá coragem para contar sobre o abominável, a grande ferida que a fez vaga-lume.

    Os cheiros, os sumos, as essências e a busca pelo perfume ideal permeiam o processo de Nieta ao sentido de sua existência e a encorajam a contar o trauma sofrido e, assim, amenizar o fardo do silêncio.

    O luto transforma-se em encontro e a filha resgata as memórias da mãe e a transforma em joia para sair do seu processo de autoflagelo. A história da mãe guiará a filha em uma jornada de autoconhecimento e cura.

    Com esmero e de forma corajosa a autora traça o perfil de Nieta, tornando-a única e voltada para o vazio da existência, a intercessão tão comum às mulheres vítimas da violência sexual. A ficção serve como unguento nas mãos da autora, porque traz leveza a uma história densa, enche de esperança o coração do leitor, que vibra ao se deparar com o renascimento de uma mulher graças ao amor. Nas mãos bordadeiras da autora, o fim dado à narrativa não se tornou piegas e sim numa fábula moderna criando no leitor fisgado a expectativa da continuidade. O romance não tem ponto final e sim o respiro de Nieta.

    Cito Umberto Eco em Confissões de um jovem romancista para reconhecer em Nieta um personagem complexo, particular, Antonieta Neves, Nieta Duboc, do Agreste à São Paulo, da criança saudável à adolescente deflorada, da mulher solitária e ferida à mulher cicatrizada pela busca de si mesma tornando-se suprema e única: A ficção dá a entender que talvez nossa visão do mundo real seja tão imperfeita quanto a visão que os personagens fictícios têm do seu mundo. Por isso é que os personagens fictícios bem-sucedidos tornam-se supremos exemplos da real condição humana".

    Espero que o leitor se deixe levar por esse caminho, não julgue Nieta e vibre com sua capacidade de se reinventar. Para isso serve a ficção para mergulharmos na tentativa de nos (re)descobrirmos com todas as nossas imperfeições. Entre asas e âncoras, segue Nieta, sobrevivente numa noite escura guiada por sua luz a quem chamou de vaga-lume até a libertação do trauma da violência a que foi submetida. Os cheiros retornaram, a felicidade do amor e o sexo por fim vivido como uma experiência prazerosa e cheio de sintonia, olhos nos olhos e aconchego. Nieta merece e consegue encontrar a seiva, borrifar o perfume e terminar feliz ao lado de quem ama. Nem sempre, na vida real, é possível, mas precisamos seguir a luz e voar. Nieta, vaga-lume, fez a rota em plena escuridão. Parabéns à autora, o personagem é tão forte que suplantou à narrativa, tornou-se inesquecível e isso só foi possível porque a linguagem ora poética, ora factual conseguiu captar a essência de Nieta. Uma homenagem a todas as mulheres que conseguem contar o abominável. A violência que envergonha e maltrata.

    Sumário

    I

    II

    III

    IV

    V

    VI

    VII

    VIII

    IX

    X

    XI

    XII

    XIII

    XIV

    XV

    XVI

    XVII

    XVIII

    XIX

    XX

    XXI

    XXII

    XXIII

    XXIV

    I

    — Mourão, Mourão, tome teu dente podre, dê cá meu são! Mourão, Mourão, toma teu dente podre, me dá meu são!

    — Joga, filha; bem alto e bem forte, pra não voltar do telhado.

    — Lá vai, pai. Vou jogar.

    E a garotinha, em vestido e chinelos vermelhos, se incendendo toda para arremessar o dente que puxara sozinha com a linha, pega o impulso na corrida e voa. Lá do alto acena ao pai, que, do chão, tentava parecer calmo para não assustar a filha. Inseguro, no íntimo, sobre a força das asas, que eram só extensões das maria-chiquinhas que ele mesmo tinha penteado, grita:

    — Volta, filha. Já tá muito longe; parece uma seriguelinha madura num pé-de-céu. Volta!

    Os ganidos abruptos dos freios e as luzes incandescentes do local em que o ônibus interestadual parou, eclipsaram o sonho de Nieta. Ela acordou atordoada, tentando responder Tô voltando, pai. Os passageiros já disputavam o momento de sair de suas cadeiras e se juntarem, no corredor, à fila dos ansiosos para esticarem as pernas num chão menos bambo. Nieta afastou um trisco-belisco da cortina enxovalhada e espiou, pela brecha, o ponto da parada. Pensou se descia para comer ou beber algo. Melhor não. Reacomodou o pescoço numa blusa dobrada, improvisada de travesseiro, e se deixou levar com o sono outra vez.

    Era céu de sol já a pino quando enfim chegou e pisou de novo o chão de terra vermelha de Macaíba. Trajava o corpo esquálido com o mesmo vestido em que tinha deixado a cidade, seis anos antes, na esperança de que lhe restasse algum traço de Antonieta Neves, filha única do casal Augusta e Augusto Neves. O vento quente que soprava as paredes e o chão da rodoviária abanava as flores da chita no vestido, quase as arrancando de lá e revelando que agora havia muito mais vestido que corpo.

    Entregou o bilhete ao rapazote que recebia os cupons de bagagens. Ele lhe rendeu uma caixa comprida de papelão, embrulhada com fitas adesivas e aviso de conteúdo frágil.

    Sabia de cor o caminho que a levaria de volta à casa e o faria a pé, para economizar os reais que lhe restavam na bolsa. Mas antes passaria no hospital para ver o pai. Não conseguiu. Na recepção, mandaram que retornasse na manhã seguinte. Tentou argumentar, mas a atendente apontou o papel colado na coluna ao lado do balcão, onde os horários de visita, em caneta vermelha, estavam escritos com a mesma crudeza da mulher.

    Nieta se sentiu como uma criança que deixa escapar um balão das mãos. Estava a poucos passos do pai, depois de tanto tempo, mas com uma burocracia no meio. Saiu de lá cabisbaixa, com os olhos evitando o céu. Respirou fundo e resignou-se à caminhada que teria pela frente; alguns minutos pelas ruas em polvorosa, depois embrenhada nas veredas de espinhos e securas do semiárido potiguar. Usou o tempo de travessia no centro de Macaíba para se expor nas ruas do comércio, onde estavam os bares e restaurantes da cidade em que ela fora gente daquela gente um dia. E tão mais gente, agora — e mais motos, mais bicicletas, mais cachorros sem donos, mais gradeados nas portas. Caminhou em postura altiva, com os olhos fitando a todos. Olhava o interior das lojas, para além das vitrines, buscando sorrisos em rostos do passado. Reconheceu muitos, mas nenhum soube ver Antonieta em Nieta. Também não foi vista por quem não queria encontrar.

    Pegou a trilha das avoantes, tantas vezes usada para ir da casa à cidade e da cidade à casa. À medida que avançava mata seca adentro, as pernas arranhadas pela trama espinescente da caatinga eram sobrelevadas pela insistência de outros arranhões que lhe vinham ao pensamento.

    Viu-se acordando, num banco frio de praça, uns meses antes. Era catucada no ombro por uma assistente social da Prefeitura, que fazia uma espécie de censo dos moradores de rua de São Paulo durante a pandemia: a que lhe deu bom dia, se desculpou pelo incômodo e perguntou seu nome. Por alguns segundos, Antonieta não soube mais seu nome. Era chamada já há tanto tempo, ali, de Nieta do Agreste...

    De início estranhou o apelido, mas acabou encarnando a personagem com confiança, que lhe caiu ainda melhor quando começou a ganhar uma graninha extra, como quiromante, no bar do Joca, que a deixava abordar os clientes e lhes oferecer seu serviço. E ela não era uma farsante — fazia-se crer e mostrava-se firme nesse pensamento. Um dia, revirando o lixo na caçamba de uma livraria, encontrou o livro A mão e os nossos destinos: quiromancia dedutiva e ciências correlatas. Achou aquilo incrível! Sempre teve curiosidade sobre as impressões digitais enquanto marcas tão pessoais e o livro as ampliava para além do polegar — as dispunha em laços, espirais, arcos, nos outros dedos, nas palmas, nos montes... Leu e testou tudo com suas próprias linhas e as da amiga Magnólia. Passou a visitar a biblioteca municipal e pesquisar o que podia sobre o tema. Daí, nunca falava ao vento! As idas à biblioteca, aliás, eram um bálsamo e quase lhe traziam de volta os sorrisos um dia fáceis. Lembrava das leituras feitas junto à mãe; das estantes robustas de pau-ferro, com as centenas de livros do pai.

    Após um tempo, mais dois donos de bares vieram lhe convidar a frequentar e servir seus clientes, em suas mesas. Joca ficou até um pouco chateado, porque sua presença trazia mais freguesia; mas entendeu que a grana daquela beleza agreste estava mais curta a cada grama de coxas e seios que ela perdia, a olhos vistos, desde que andava por ali.

    Quando ela apareceu no bar pela primeira vez, Joca desconfiou que era de menor, apesar do corpão de mulher. Mas ela bateu o pé que já tinha dezoito completos, mesmo sem documentos para comprovar. Implorou a ele que a deixasse circular entre as mesas, garantindo que não seria insistente ou chata, caso os frequentadores do bar não mostrassem interesse em saber suas sortes. Como ela não teria vínculo formal com o estabelecimento e a mescla de beleza e argúcia da jovem tinham lhe impressionado, Joca aquiesceu ao pedido. Ela rápido viraria uma espécie de atração ao seu estabelecimento e, em retribuição, depois de alguns meses, Joca ofereceu-se para lhe conseguir uma identidade falsa. Ela aceitou de bom grado a oferta.

    Nieta se atou a alguns laços frouxos com frequentadores mais assíduos do bar, naqueles tempos; punham-se antes como peças dum círculo de carências e interesses do que de amizades. Uns amantes, cá e lá, caíram nas suas tramas da leitura de linhas, inclinadas de modo proposital a provocantes previsões, motivadas por sua busca de prazer e aconchego. Mas... caiu ela, também, quando nenhuma linha, na própria ou na mão dele, ela anteviu. Foi quando passava pela mesa de Mauro e ele a segurou forte o punho e pediu (não; rogou!):

    — Senta aqui… lê minha mão.

    Tudo que havia aprendido sobre cruzes, montes, ilhas, pentagramas, toda e qualquer simbologia que muito bem entendia e fluentemente explicava há quatro anos, naquele mesmo bar, embaçou-se na opacidade do olhar sofrido e enigmático de Mauro. Ela simplesmente não conseguia ler suas mãos, e desejou ter achado, na caçamba, um livro sobre leitura de íris (já havia lido algo sobre; Iridologia — como chamavam a tal pseudociência). Inventou um mal-estar qualquer, pediu desculpas e só reviu Mauro, uns meses depois, quando voltava ao seu quarto alugado, na pensão da D. Diva. Estava lá, estendido no chão, num canteiro da Praça do Cachimbo. Quase nunca voltava à pensão por aquele caminho, mas era muito mais curto e, naquela noite, sentia-se tão sem forças! Ficou impressionada consigo mesma por tê-lo reconhecido, tendo-o visto apenas aquela vez, mas se convenceu de que o azulão excêntrico de seu casaco (que o deixara com ar tão elegante na outra noite!) tinha sido a causa para identificá-lo ali. Sentou-se ao seu lado, tentou acordá-lo com um cutuco e só seus olhos foram responsivos. Abertos, eram os mesmos enigmas de tristeza e imensidão. Chamou seu nome:

    — Mauro, levanta! (Havia inquirido sobre o nome do homem ao Joca, àquela noite).

    Nada. Nenhum músculo que não o abismo da pálpebra, que de novo abriu e lhe engoliu. Deitou-se e dividiu com ele toda a quentura que as poucas calorias ingeridas no dia lhe permitiram produzir. Ficou alguns minutos acordada, pensando no que estava fazendo ali, ao relento, abraçada com o homem; o efeito magnético que ele tinha provocado sobre ela estava bem além da sua compreensão. E dormiu. Aos primeiros raios de sol ardendo sobre sua pele rosada, o desconforto do novo dia se fez valer; mas, à pele miscigenada de Mauro, que tinha tom de mogno roubado da floresta, nenhum calor parecia arder. Bem mansa, pôs um dedo na frente das narinas dele e sentiu sua expiração… o ar saía calmo, tranquilo. Ergueu-se e fugiu, antes de correr o risco de ser de novo aprisionada pelos tentáculos propagados pelos vasos vermelhos no seu branco dos olhos.

    Uma clareira se abriu na caatinga, e Nieta desafundou-se das lembranças ao avistar a casa alta, cercada de alpendre e varandas, de seis janelas de frente, cor de terra esturricada, quase imiscuída à paisagem não fossem o anil do céu e a sobra de verde no pé de ingá, que lhe sombreava meio telhado. Uns poucos cabritos se reconfortavam debaixo da árvore enquanto mordiam as vagens caídas, mas o velho curral, nos fundos da casa, não tinha mais nenhuma rês. A morte tinha chegado ali antes dela, levando sua mãe, tios e primos. Seu pai, no hospital, o único que a esperançava.

    Quando a pandemia foi anunciada, a última coisa que podia imaginar era que ela, a Nieta do Agreste, escapada do seu sertão de afeto para a frigidez da metrópole, para os braços sombrosos de Mauro, para o mergulho na dor e no vazio… era que ela — nesse agora corpo pouco para tanta chita — sobrasse em pé, quase derradeira, na varanda alaranjada.

    Testou a porta da frente que se abriu sem resistência de chaves em fechaduras. Tirou os sapatos, andou para o lado esquerdo da sala em direção a um móvel recoberto pelo lençol de linho branco bordado por sua mãe com o monograma da família: AAN — Augusta e Augusto Neves (o primeiro A era o da mulher — um dia lhe tinha confessado a mãe). Puxou o lençol desencobrindo o aparelho de som, sentou no chão e rasgou as fitas adesivas da caixa de papelão. Tirou de dentro um CD, da Jane Duboc, escutado na única vez em que Mauro a havia levado em sua casa para tomar uma cuba-libre.

    Estavam juntos havia alguns meses, e seu envolvimento evoluía de forma estranha. Não era de altos e baixos, muito menos progredia em curva ascendente; era antes como um fluxo confuso da alternância entre tudo ou nada, sim ou não, agora ou nunca — um caminho a lugar algum, por onde só passam os desavisados e os apaixonados. Naquele dia, entrando pela primeira vez na morada de Mauro, pareceu-lhe que teria chances de abrir as cortinas do fundo dos olhos de seu pretenso amor — aquele homem entristecido, drogado, culto, delicado, algumas vezes capaz de vê-la integralmente, em outras tão encerrado em si próprio. Ele preparava os drinks e as drogas quando a música tocou. Por certa razão irrazoável, Nieta pediu licença a uma ida ao banheiro, pois sentiu que precisava ouvir, concentrada, a voz cantando, lá fora…

    "Começaria tudo outra vez

    Se preciso fosse, meu amor,

    A chama em meu peito

    Ainda queima, saiba

    Nada foi em vão

    A cuba-libre dá coragem

    Em minhas mãos…"

    Ao fim da noite, a Nieta do Agreste, inebriada pelo álcool, pela coca e por uma paixão soturna não predita em nenhuma linha de dedos ou mãos, sentia-se mais só e perdida na trilha. E numa decorrência quase ilógica, achava, em algum profundo olhar de dentro, um facho de coragem e de desejo ao regresso. Dormiu ao lado de Mauro, ao som das zoadas paulistas, mas os sonhos se preencheram com as estrelas caladas do céu de Macaíba, profundamente límpido e imune aos artifícios luminosos inventados pela humanidade para disfarçar seu eterno medo das trevas. Embarcou, desprovida de bússolas ou mapas, numa nau fantasiosa de retorno, numa navegação de um sonho a outro.

    Mas, ao lado dela, duro e inerte, amanheceu apenas o corpo nu de um ex-mistério, inacessível para sempre ao seu amor e desvendamento.

    Polícias, audiências, processos… revelações de quem era Mauro — um primogênito filho de intelectual paulista, bem-nascido, futuro alvissareiro, vencido pelos vícios, herdeiro falecido. Para Nieta ele era nada daquilo, apenas seu namorado, agora defuntado; seu primeiro amor, agora finado. A existência da acompanhante de leito nunca constou das matérias de jornais. A polícia a apagou dos arquivos onde algum escrivão, imprudente, a princípio a tinha dado como uma qualquer Tieta — puta nordestina, drogada, sem teto. Na real, ela era só uma mulher cavando alegrias, que batalhava para pagar todo mês o aluguel de seu muquifo, mas que, após a perda, se extraviaria da própria identidade mais uma vez. A morte de Mauro, naquele junho, foi o segundo grande abismo nos decursos de Antonieta — outra dessas acontescências que têm a capacidade de chacoalhar os chãos e os céus do mundo de alguém. A primeira a tinha tirado do conforto do ninho e a levado à essa outra... E Nieta ainda era tão verde na vida já para tanta tremura sob os pés. Nos dias seguintes à morte do namorado, vagou pelas ruas, dormiu pelas praças, perdeu os sapatos e os passos.

    Numa manhã fria de julho, Augusta Clara das Neves, assistente social da prefeitura de São Paulo, encarava sua missão de mãe do acaso da mulher aparentemente sem teto, que se dizia chamar Nieta Duboc. Em seu contato anterior com ela, sentiu que algo de muito dramático tinha acontecido, em tempo recente, com a bonita moça de sotaque nordestino, mas não soube o quê. Descobriu, no entanto, que havia uma Antonieta Neves nos arquivos de pessoas desaparecidas, cuja foto se assemelhava muito com ela. Pelo seu ar de incontestação diante da pergunta de Augusta sobre sua identidade, a assistente social teve certeza de que ali estava a jovem emigrada do interior potiguar, reclamada, lá longe, como desaparecida, pela família (apesar de no documento que a moça lhe mostrou, depois de uma nítida relutância, constar o nome Nieta Sá).

    Quando, àquela segunda visita, Augusta lhe anunciou que sabia quem era ela, e lhe contou sobre a morte de seus familiares por Covid, a coisa única que Nieta quis foi sair dali e aliviar a bexiga em sua própria casa. Augusta também lhe falou que o pai tinha o que os médicos chamavam de Covid longa, uma condição de sequelas persistentes — ia e voltava ao hospital, em decorrência desse mal. Ele estava só... como ela. Ele precisava dela ... como ela dele.

    Determinada a ajudá-la, a assistente social decidiu burlar todas as perguntas impressas em seus formulários-padrão. Demoveu-se da veste profissional e deixou de lado os procedimentos técnicos que dominava bem, mas que sentia — intuía, aliás — que não seriam de grande valia naquele caso. Partiu para uma abordagem bem menos protocolar. Olhou nos olhos cavos da moça, encolhida no banco, e carinhosamente, segurando suas mãos, questionou:

    — Se você pudesse escolher, Antonieta, onde você gostaria de ir, agora, fazer seu primeiro xixi?

    Nieta ficou espantada com a quase adivinhação da mulher estranha, pois, em pensamentos, tinha acabado de sentar no vaso de sua casa em Macaíba. A urina desceu quente, como as lágrimas, respingando na dor e nos pés de ambas as mulheres, tão agora unidas por um acaso e por uma vontade comum de reescrever o passado.

    Nieta ouviu o CD com o corpo estirado no chão duro da sala (SUA SALA… tão assim que a sentia!). Deu-se conta de que nem conhecia todo o disco. Só o trecho da música da Jane Duboc a tinha interessado — foi ele quem a fez responder, com tanta convicção, naquela manhã, para a assistente social (que tinha quase o mesmo nome de sua mãe, Augusta Neves):

    — Meu nome é Nieta Duboc!

    Ainda que conseguisse se lembrar, naquele momento, de sua verdadeira identidade, era essa Nieta Duboc quem gostaria de despertar dentro dela; essa que teria um fogo queimando no peito… que talvez lhe servisse de rastilho para recomeçar.

    O cansaço e a entrega ao descanso do corpo e da alma, no chão quente da sua casa em Macaíba, foram como a exaustão da criança que fora, depois das aventuras nas brenhas das matas e dos banhos de açudes dos quais tão bem lembrava. Nenhuma tensão sobrou em nenhum mínimo pedaço de músculo, nervo ou tendão após o sono sequestrado pela paz de estar de volta. Acordou, olhou para o alto da casa, ao seu telhado envelhecido de ripas e telhas aparentes; viu que nenhuma réstia de sol penetrava mais as frestas. Levantou-se, pegou sua bolsa e a caixa de papelão, encostou a porta da entrada de casa e dirigiu-se ao segundo piso do velho casarão, onde ficava seu antigo quarto. Encontrou-o como o deixou — decerto cuidado, com regularidade, pela ânsia e zelo da mãe que deve lhe ter esperado a volta, ao longo dos últimos anos. No quarto, seu pai tinha criado uma passagem de acesso ao sótão, e dali a um pequeno balcão no telhado, onde costumava levá-la, quando criança, para observar o céu e aprender sobre constelações, planetas, e outras luzes-do-além, como ele costumava falar.

    Abriu mais uma vez a caixa de papelão, agora já desembalada e desvencilhada das fitas e avisos, e retirou o último item lá contido — um telescópio portátil, de segunda mão, que comprou por uma ninharia num tudo-usado, com parte do rendimento das últimas trinta noites paulistas lendo os sinais de mãos estranhas, anti empáticas, que nunca a enxergaram, talvez nem mesmo a ouviram.

    Voltou ao bar do Joca, depois de um período numa clínica

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