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A Dama de Asolo
A Dama de Asolo
A Dama de Asolo
E-book291 páginas4 horas

A Dama de Asolo

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Sobre este e-book

Não podemos mudar o passado, mas o passado pode nos mudar.

Após perder o noivo em um desastre terrível, Fern visita a Itália para encontrar conforto e se dedicar à pintura, sua verdadeira paixão. Contudo, seus pesadelos com a morte se transformam em realidade quando ela começa a ouvir sussurros fantasmagóricos e ver repetidamente um pedaço de madeira queimada, que misteriosamente aparece e desaparece.

Luca, um arquiteto da região, surge para salvá-la no Castelo de Asolo, quando sua mente parece ter sido tomada por Cecilia, uma jovem da corte da Rainha Catarina Cornaro, que viveu quinhentos anos atrás.

Com um episódio atrás do outro, Fern passa a ver o mundo cada vez mais através dos olhos de Cecilia, que começa a ter um caso de amor com o artista Zorzo. Os ecos do passado se manifestam no presente com uma série de coincidências assustadoras, até que o passado e o presente se encontram, colocando a vida de Fern e Cecilia em risco.

Será que Luca conseguirá manter Fern fora de perigo e ajudá-la a fazer as pazes com o passado?

Da vila dos prazeres da Soberana Dama de Asolo aos palácios de Veneza do século XVI, o livro de Siobhan Daiko levará você a uma sensual viagem no tempo através de intrigas, romance e redenção.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento29 de mai. de 2017
ISBN9781547502509
A Dama de Asolo
Autor

Siobhan Daiko

Siobhan Daiko writes powerful and sweeping historical fiction set in Italy during the second World War, with strong women at its heart. She now lives near Venice, having been a teacher in Wales for many years.

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    A Dama de Asolo - Siobhan Daiko

    Para Clodagh

    1

    ITÁLIA

    Junho de 1989

    Fern abriu a porta do quarto. Havia algo pegando fogo; ela tinha certeza. No corredor, o sol da manhã entrava pelas frestas das venezianas, mas não havia sinal de fogo. A passagem estava livre de fumaça. Ah, graças a Deus. Ela sentiu um cheiro forte. Cândida?

    Uma rajada de ar frio deixou sua pele arrepiada.

    Lorenza!

    Fern deu um pulo. ― Quem está aí?

    Roncos ressoavam por de trás da porta fechada. Tia Susan, irmã de seu pai, conseguia roncar mais do que toda a Grã-Bretanha junta, assim como ele. Será que a voz que ela tinha ouvido foi apenas um eco?

    Com o som alto dos passos dos chinelos, Fern caminhou de mansinho pelo corredor, e desceu a escada caracol. Na cozinha, um gatinho gordo malhado se esfregou em suas pernas. Ela se agachou para acariciar a pelagem macia, sentindo o aroma das rosas do vaso em cima da mesa. A cozinha de tia Susan dava para uma varanda com vista para o quintal. Na sala de estar, havia uma lareira entre os armários, um sofá, uma poltrona e uma televisão ao fundo. A cozinha era rústica, bem aproveitada e confortável. Não era como a caixa de sapato onde costumava preparar as refeições em Londres.

    Pela janela, ela via uma rua estreita que cortava um vinhedo e um milharal. O sol da manhã iluminava as colinas no horizonte. No mais alto pico, havia uma construção antiga, típica de uma fortaleza; e abaixo do forte ficava a cidade de Asolo. Um lugar para escritores, músicos e artistas, de todas as modalidades. Fern esfregou as mãos nas pálpebras para limpar os olhos. Será que ela encontraria aqui a paz que procurava?

    Lorenza...

    O sussurro, tão lamentoso, vinha de perto. ― Quem é?

    Silêncio total.

    Sentindo-se ridícula, Fern repetiu a pergunta.

    E nada. Deve ser só minha imaginação.

    Ela foi até a estante e pegou o mais novo livro de sua tia. A Amante do Duque – Um Romance de Susan Finch. Ela amava ler, e mal podia esperar para se jogar nele.

    Ela topou com o pé em algo áspero. Um pedaço de madeira. Tinha por volta de uns quinze centímetros. Escurecida pelo fogo. Será que o gato a trouxe para dentro? Ela se agachou e passou o dedo na madeira. Fria como uma tumba. Bateu uma sensação ruim, ela pegou a madeira e a jogou na lareira. Será que era esse o cheiro que ela havia sentido? Não. Aquilo tinha queimado há muito tempo...

    Lorenza.

    A palavra ficou no ar.

    Fern sentiu um frio na espinha. Com um berro, o gato correu da sala, seu rabo arrepiado em duas vezes o seu tamanho normal. As tábuas do assoalho estalaram acima dela.

    ― É você, meu bem? Levantou cedo – comentou tia Susan com seu sotaque galês. Ela desceu a escada com um roupão velho de flanela, cobrindo sua silhueta rechonchuda; afastou os cabelos grisalhos e bagunçados da testa, e tirou os óculos com armação de acetato modelo tartaruga.

    ― Algo me acordou e eu não consegui mais pegar no sono.

    Tia Susan fez aquele seu olhar míope. ― Um sonho ruim?

    ― Acho que não – Fern tinha se livrado dos pesadelos, pelo menos ela torcia para que sim. Aqueles sonhos horríveis com chamas e morte. Fumaça saindo pelos túneis pretejados. O pânico, a tosse e a fuligem em seus pulmões.

    Lorenza...

    Como um eco suave.

    ― A senhora ouviu isso?

    Tia Susan ligou a chaleira. ― Ouvi o quê?

    ― Alguém está sussurrando.

    ― Eu não estou ouvindo nada, – disse tia Susan, ajeitando os óculos no nariz – deve ser o vento.

    Fern espiou pela janela, mas as oliveiras estavam completamente imóveis. Ela deu uma olhada na lareira. Nem sinal do pedaço de madeira que ela tinha jogado aquela hora. Ela disse a si mesma para não ser patética. Devia haver alguma explicação para o sussurro. Alguém lá fora estava chamando, Lorenza, ou seus ouvidos estavam pregando uma peça. Seus olhos, não, porém. Ela tinha certeza de que havia visto aquele pedaço de madeira queimada.

    ― Onde foi que o gato Gucci se meteu? – tia Susan colocou água em um bule – normalmente ele fica aqui de manhã, implorando por comida.

    ― Eu vi ele há pouco. Não se preocupe.

    ― Ah, que bom. Nós poderíamos ir pra Asolo depois do café da manhã, se você quiser.

    ― Perfeito! Vou levar meu bloco de desenho pra tentar capturar a paisagem, – Fern esfregou os braços – está frio aqui, né?

    ― Não, pra mim não. Na verdade, o oposto. O início de junho é tão quente quanto em pleno verão. Você só está cansada por causa da viagem de ontem à noite, meu bem. Sempre sinto frio quando estou cansada.

    ― Deve ser.

    ***

    Elas entraram no Fiat 500 de tia Susan e, meia hora depois, já estavam sentadas a uma mesa no terraço do Caffè Centrale, tomando cappuccinos espumantes no mormaço de um esplêndido dia ensolarado.

    No outro lado da praça de paralelepípedo, algo chamou a atenção de Fern, um prédio com paredes repletas de afrescos. Os raios de sol batiam na silhueta de uma cena de batalha, cavaleiros montados em seus corcéis, com lanças nas mãos, fantasmas dos séculos passados. Mas será que não estava faltando algo? Não deveria ter uma escada externa até o primeiro piso? Não. Essa era sua primeira visita a Asolo. Ela deve ter se enganado.

    A fonte agraciava o centro da praça, com uma coluna com tiras entalhadas na base. Um pombo apareceu para tomar água da fonte. O Leão alado de São Marcos avistava a cena do topo da coluna. Símbolo da República de Veneza. Como ela sabia disso?

    Ela sacudiu a colherzinha de café na borda da xícara. Tudo muito estranho. Estou cansada. Apenas cansada. Meu subconsciente está atravessando meu consciente. É só isso.

    Uma trombada na cadeira, quando de repente aparece alguém ao lado da mesa delas, um homem alto vestindo um jeans desbotado e uma camisa branca aberta no peito.

    Buongiorno, Susan – o homem se inclinou e beijou as bochechas de sua tia. Seu rosto moreno contrastava com o viso pálido da senhora.

    ― Luca. Que surpresa agradável! Esta é minha sobrinha, Fern. Ela vai ficar comigo algumas semanas.

    Fern estendeu a mão.

    ― Será que já não nos conhecemos? – disse o rapaz.

    ― Acho que não – ela se lembraria de ter visto aquele moço. Ele devia ter uns trinta anos, julgando pelas entradas na testa. Não muito mais velho do que ela. E muito atraente (ele não ficaria nada mal na capa dos romances de tia Susan). Não que ela estivesse interessada. Longe disso...

    Ela sentiu algo quando a palma da mão dele tocou na sua. Algo meio que como um choque elétrico. Difícil de descrever, mas a deixou tonta. Ela se agarrou na mesa.

    ― Nós vamos passear pela Rocca hoje de novo, – tia Susan apontou para o antigo forte – o tempo está bom pra uma caminhada. Vamos visitar o Castelo da Rainha, e por hoje é só.

    ― O Castelo da Rainha? Asolo tinha uma rainha? – disse Fern, maravilhada.

    ― A Rainha Catarina Cornaro, – Luca se sentou ao lado dela e esticou as pernas compridas – Filha de Veneza. Casada com o Rei de Chipre. Persuadida a abdicar o trono em nome da República, e assim lhe foi concedido o feudo de Asolo em 1489.

    ― O Luca é especialista no assunto – comentou tia Susan.

    ― Você é historiador, Luca? – ele era diferente dos historiadores antiquados que ela havia conhecido quando participou do Clube de História na faculdade.

    Seus olhos azuis ficaram enrugados nos cantos. ― Arquiteto, mas trabalho com restauração. Conheci sua tia em uma palestra que dei no museu do bairro. Não sou tão especialista na Rainha, – ele deu uma risadinha – porém, do castelo eu entendo.

    ― Tenho um livro sobre a Catarina Cornaro em casa, – disse tia Susan – um pouco acadêmico, mas interessante mesmo assim.

    ― Bem, será minha leitura de férias, então. Vamos, tia! O castelo nos aguarda, – ela olhou para Luca – seu inglês é excelente. Queria saber falar italiano assim tão bem – o que seria um feito e tanto, considerando que eu sei apenas algumas frases.

    ― Minha mãe é inglesa. Cresci bilíngue e fui educado na Inglaterra. Vou ao castelo também, então pode ser que eu veja vocês lá.

    ― Ótimo – Fern retirou a bolsa do encosto da cadeira, se levantou, e acompanhou tia Susan pela rua, com sua saia longa entrelaçando as pernas. Roupa de férias: aquelas nas quais ela se sentia mais confortável. Seu olhar avistava a planície veneziana no horizonte, a silhueta de uma torre de igreja marcava o limpo céu azul. Algo nela despertou uma lembrança. O quê? Ela balançou a cabeça e alcançou sua tia.

    Tia Susan a pegou pelo braço. ― Em Asolo, você deve andar com a cabeça pra cima, é como diz o guia de viagem. Olhe essas janelas arqueadas e as petúnias debruçadas na sacada!

    ― É formidável. Tão bem-preservadas – Fern amava como as cores dos prédios harmonizavam umas com as outras em tons de creme e abricó. E como os letreiros das lojas eram discretos, não como nas cidades vizinhas de sua casa.

    Fern deu risada. ― Se eu andar com a cabeça pra cima sem ter onde me segurar, vou acabar caindo de cara no chão nesses paralelepípedos.

    Tia Susan gargalhou. ― Verdade. Eu só faço isso quando me sinto absolutamente segura. Não preciso nem dizer... – ela passou com Fern sob um arco, por uma subida íngreme, e foi até um terraço alto. ― Minha nossa.

    ― O que foi, tia?

    ― Acabei de pensar em uma solução pra um problema de uma trama. Isso tem me irritado há tempos.

    ― Que bom, né?

    ― Sim, mas preciso anotar antes que eu esqueça, – tia Susan vasculhou a bolsa – saco! Deixei meu caderno no carro. Você vai ficar bem enquanto eu volto lá pra pegar?

    ― Posso arrancar uma página do meu bloco de desenho.

    ― Obrigada, meu bem, mas preciso conferir minhas outras anotações. Encontro você lá no terraço.

    Fern teve um pressentimento ruim. As mesas espalhadas pelo pátio, com ombrelones em marfim, pareciam alheios a este lugar. Que estranho.

    Claro que tudo pareceria diferente, lembrou. Ela estava acostumava com a garoa de Londres e as casas com tijolinhos vermelhos e telhas cinza, o barulho dos jatinhos a caminho de Heathrow, a multidão corcunda se apressando pelas ruas, lojas anunciando promoções e ofertas imbatíveis a cada esquina.

    Ela subiu até as muralhas, pegou o bloco da bolsa, e observou os jardins verdes brilhando com os raios de sol. Ela levantou a mão para cobrir os olhos, a fim de diminuir a intensidade da luz. Sentiu uma pequena tontura. A iluminação mudou e as corres ficaram estouradas, superexpostas. Ela se apoiou no parapeito. Estava flutuante, observando tudo de cima das muralhas do castelo.

    O raio de sol passou por uma fenda e perfurou sua vista como cacos de vidro. O prédio alto havia sido transformado em uma construção de dois andares. Uma majestosa dama e seus criados, montados em seus cavalos magníficos, passavam sob o portal.

    Fern fechou os olhos e os abriu novamente, mas o prédio estava como antes. Em seus ouvidos, apenas ressoava o galopar das ferraduras batendo nos paralelepípedos, e o ar, perfumado com o aroma cítrico das parreiras que germinavam nas fissuras da parede.

    2

    Luca viu a garota inglesa sentada na muralha antiga do castelo. Vestida com uma saia volumosa e uma blusa cigana, seu cabelo longo era um emaranhado de cachos, lembrava uma hippie. Qual era mesmo seu nome? Algo botânico, não era? Seria Rose? A garota parecia distante. Ah, merda! Ela estava bamba e parecia que ia tombar. Ele correu pelos degraus e conseguiu segurá-la antes que caísse muralha abaixo. A garota escorregou no pé do parapeito. Ele a sacudiu com delicadeza.

    ― Coloque a cabeça entre os joelhos – sugeriu ele, acariciando o ombro dela. Veio novamente aquela sensação de que já a conhecia. Pazzesco! Ele observou sua cara branca e o brilho do suor em sua testa. ― Você está bem?

    ― Acho que sim.

    ― Você não deveria sentar aqui. É perigoso. Ainda mais se não estiver se sentindo bem.

    ― Eu estou bem. De verdade, mesmo. Não dormi muito ontem à noite, então acho que meu corpo deve estar sentindo só agora.

    ― Você quase literalmente caiu muralha abaixo, e é uma queda e tanto até o outro lado. Acho que estava prestes a desmaiar. Você estava totalmente fora de sintonia. Onde está a sua tia?

    ― Foi buscar algo no carro. Por favor, não se preocupe. Estou perfeitamente bem.

    ― Tem certeza de que não nos conhecemos? – a garota tinha um rosto inesquecível. Um nariz saliente, que desvirtuava da simetria de sua feição (não que a deixasse feia) e seu cabelo loiro escuro poderia ser descrito como selvagem, mas havia algo nela.

    A garota olhou para o peito dele, e então para seu rosto. Olhos verdes. Adoráveis. Ela sorriu para ele, seus lábios curvados em um arco agradável, fazendo com que ele quisesse esticar a mão e passar os dedos neles.

    ― Tenho certeza.

    Ele concordou com a cabeça, mas não muito convincente. Será que ele a tinha visto em alguma festa em Londres? Não seria adequado perguntar.

    A garota apontou para o castelo. ― Estava imaginando como era a estrutura no tempo da Rainha – ela colocou uma mecha atrás da orelha.

    ― Tem uma ilustração no Museu Cívico que mostra como era antes da demolição do início da década de 1820 – ele a levou até o terraço. É melhor fazê-la sentar antes que ela passe mal de novo.

    ― Que pena. Quero dizer, que não possamos ver o original hoje.

    Ele olhou para ela, tentando detectar uma nota de ironia em sua voz. Seus amigos frequentemente o acusavam de falar demais sobre o castelo, mas ela parecia ter um interesse genuíno sobre o que ele tinha a dizer. Ela tornou a ficar pálida. ― Você tem um tempinho pra tomar uma bebida?

    Sem esperar por uma resposta, ele a levou até uma mesa na cafeteria do pátio, e acenou para o garçom. ― Un Fernet Branca per la signorina ed un caffè corretto con grappa per me.

    ― Você é muito gentil, – disse a garota – o que pediu pra mim?

    ― Algo pra dar uma levantada. Uma mistura de álcool, cordial e ervas.

    As bebidas chegaram. A garota tomou um gole e franziu a testa. ― Que gosto horrível. Muito amargo.

    ― Manda pra dentro! Você vai se sentir melhor depois. É um antigo remédio pra evitar desmaios.

    ― Qualquer um ficaria melhor se parasse de tomar algo assim. Mas não tenho certeza de que eu desmaiei, na verdade.

    ― O que você acha que aconteceu, então?

    A garota abaixou a xícara, levantou novamente, e a colocou na mesa. ― Não tenho certeza, pra ser sincera. Quando eu estava sentada na muralha, tive uma sensação incrível de... ah, não sei exatamente, – ela se ajeitou na cadeira – foi como se eu já tivesse vindo aqui antes, mesmo sabendo que nunca coloquei os pés neste lugar.

    ― Talvez seja familiar porque você já deve ter visto em fotos.

    ― Pode ser, – a garota parecia se esforçar para encontrar as palavras certas, ela levantou os ombros e fitou o olhar na torre do relógio, depois balançou a cabeça e olhou para ele – você trabalha em Asolo?

    ― Meu escritório fica em Treviso, mas tenho um apartamento aqui – ele olhou para o bloco de desenho na bolsa dela. Uma artista, imaginou ele.

    ― Sorte sua! Tenho um flat em Islington e trabalho na cidade – a garota franziu a testa novamente, por um instante, e então relaxou a expressão.

    ― Prefiro viver em cidades pequenas. Não que Treviso seja uma cidade grande. Tenho uma afinidade com Asolo. Sempre tive, – ele bateu os dedos no braço da cadeira – se você ainda estiver em Asolo até o fim do mês, então poderá ver a apresentação. Pra relembrar a corte da Rainha Catarina Cornaro, um grupo se veste com fantasias da Renascença, tem danças e festejos nas ruas. A cidade inteira participa.

    ― Parece legal. Você vai encenar o saltarello?

    ― Estou surpreso por você saber de uma dança do século XV. É muito difícil, por isso costumamos deixar de fora da apresentação.

    A garota tirou o cabelo do rosto. ― Ah. Devo ter visto em um programa de TV ou lido em algum lugar. Não sou uma loira burra, sabe?

    ― Eu não falei que era – disse ele, dando risada. Será que ele deveria perguntar sobre os desenhos? Foi então que ele ouviu passos no cascalho, e Susan Finch veio até a mesa. Suas pernas curtas e rechonchudas envolvidas por calças largas de agasalho, sua boca coberta de migalhas, denunciando que ela havia devorado um folhado ou dois no caminho até o Caffè Centrale.

    ― Fern! Você parece que viu um fantasma.

    ― Estou bem, tia. Foi só uma tontura boba. Graças a Deus, o Luca estava aqui. Ele conseguiu me segurar antes que eu caísse da muralha.

    ― Minha nossa! Que sorte você ter visto ela, – Susan acariciou a mão dele – você gostaria de jantar em casa depois de amanhã? Eu e a Fern iríamos adorar. É o mínimo que podemos fazer.

    Fern; até que enfim o nome da garota. ― Seria um prazer, mas eu não fiz nada. De qualquer forma, a Fern deveria passar no médico.

    ― Vamos dar uma paradinha no hospital no caminho de casa, Fern. Assim o médico dá uma olhada em você. É melhor prevenir do que remediar.

    Susan olhou para ele. ― Esperamos você por volta das 8h da noite na sexta-feira, então?

    Mille grazie.

    Observando as duas passeando pela rua, ele bateu a mão na testa. Esqueceu que deveria passar a noite de sexta com sua mãe.

    3

    Fern estava sentada na cozinha, tomando um copo d’água, enquanto sua tia preparava o jantar. No hospital, depois de uma espera interminável e vários exames, os médicos disseram que o desmaio não era nada grave, apenas que sofria de pressão baixa e precisava evitar cafeína. Provavelmente foi a quantidade de café que ela tinha tomado ao esperar o voo no aeroporto de Heathrow. Valeu, atraso de quatro horas! Sem falar no chá que ela tomou de manhã e o cappuccino no Caffè Centrale. Ela era viciada em cafeína há anos, e agora teria que limitar o consumo para uma xícara de café e uma de chá por dia.

    Ela se concentrou para ouvir o sussurro fantasmagórico ao voltar para a casa de sua tia, mas o único som que havia era o soar dos sinos da igreja do vilarejo, e o barulho de uma motoca passando pela rua. Ela deve ter imaginado o tal sussurro, e aquela queda de temperatura provavelmente teve algo a ver com a pressão arterial e a sensação de desmaio. Não poderia haver outra explicação. Sua estranha experiência em Asolo foi apenas um cérebro carregado de cafeína pregando uma peça. Nada mais.

    Fern respirou fundo e lá estava de novo: o suave cheiro de madeira queimada. Fazendeiros botando fogo na mata, talvez? O que mais seria?

    Tia Susan abriu uma lata de molho. ― Espaguete à bolonhesa, pode ser?

    ― Ótimo – Fern ficou com água na boca. Ela não fazia uma refeição propriamente dita desde anteontem. Outro motivo da tontura...

    O vapor subia da panela com água fervente, e sua tia despejava um punhado de massa enquanto o gato ronronava alto em seu pé. A senhora pegou uma garrafa de Bardolino. ― Eu até ofereceria uma taça de vinho, só que você precisa forrar o estômago primeiro – ela puxou a rolha e sacudiu a mão. ― Xô, Gucci. Você já comeu. Ué, onde estão meus óculos?

    ― Eles estão em cima da sua cabeça, tia – Fern deu risada. Sua tia com certeza era uma figura, e ela a amava de montão. Ela ficou pensando no rapaz que havia conhecido esta manhã. ― O Luca parece ser um cara legal. A senhora sabe me dizer como ele acabou fazendo o colegial no Reino Unido?

    ― A família dele é muito rica e pode arcar com os custos de uma educação particular. Ele fez Eton, sabe? Uma das famílias mais antigas do Vêneto. Aliás, seus antepassados foram Doges e governantes da antiga Veneza. Hoje a Itália é uma república, claro, então ninguém mais se chama conde ou condessa sem nenhuma legitimidade. Se fosse o caso, o Luca seria Conde Goredan.

    ― Ele disse que a mãe dele era inglesa, não disse?

    Tia Susan confirmou. ― Ela é viúva. La contessa, como os locais costumam chamá-la, é uma mulher encantadora. Na verdade, a conheci quando o Luca deu uma palestra no Museu de Asolo.

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