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Os perdidos
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E-book393 páginas4 horas

Os perdidos

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Sobre este e-book

O telefone toca passados apenas cinco minutos das cinco da manhã…
Nunca tinha ouvido falar do nome Everett Walsh antes, contudo, segundo a pessoa que me ligou, poderei saber alguma coisa sobre uma miúda desaparecida. Embora não me diga o quê. Ainda considero a hipótese de não me encontrar com ele, mas parecia desesperado e, se há coisa que me atrai mais numa pessoa do que a persistência, é o desespero. Apesar de encontrar pessoas fazer parte da forma como ganho a vida, o que poderia eu saber sobre uma miúda desaparecida que justificasse uma chamada a esta hora?
Tudo começa com uma chamada telefónica que Nora Watts receou durante quinze anos — desde o dia em que deu a sua filha recém-nascida para adoção. Bonnie desapareceu. A polícia considera-a uma fugitiva crónica e não anda à procura dela, levando os pais adotivos a procurar, como última esperança, a mãe biológica.
Resultado de uma relação multirracial e proveniente de instituições de acolhimento, transiente, sem-abrigo, apavorada pelo seu passado repleto de dor e violência, e amaldiçoada com uns intimidantes olhos escuros que absorvem toda a luz circundante — e com a capacidade de penetrar bem fundo na alma de uma pessoa — Nora sabe intimamente o que acontece a raparigas vulneráveis na rua...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de fev. de 2018
ISBN9788491392583
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    Os perdidos - Sheena Kamal

    Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

    Núñez de Balboa, 56

    28001 Madrid

    Os perdidos

    Título original: The Lost Ones

    © 2017, Sheena Kamal

    © 2018, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

    Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

    Tradutor: Ana Filipa Soares

    Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

    Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

    Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

    Desenho da capa: Calderónstudio

    Imagem da capa: Dreamstime.com

    I.S.B.N.: 978-84-9139-258-3

    Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

    Sumário

    Página de título

    Créditos

    Sumário

    Dedicatoria

    Um

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Capítulo 16

    Capítulo 17

    Capítulo 18

    Capítulo 19

    Capítulo 20

    Capítulo 21

    Capítulo 22

    Capítulo 23

    Capítulo 24

    Capítulo 25

    Capítulo 26

    Capítulo 27

    Capítulo 28

    Capítulo 29

    Dois

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Três

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Quatro

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Cinco

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Sobre a autora

    Para a minha mãe

    Um

    1

    O TELEFONE TOCA passados apenas cinco minutos das cinco da manhã.

    Fico logo na defensiva, pois nunca nada de bom acontece a estas horas da madrugada. Ou, pelo menos, não com chamadas telefónicas. Afinal, nunca se fica a saber de um familiar abastado que faleceu e deixou uma herança antes das nove. O que vale, é que já estou acordada e na minha segunda chávena de café, por isso, estou moderadamente preparada.

    Acabo de regressar do meu passeio junto ao mar, em que me inclinei à beira do paredão a observar as águas calmas e cinzentas, o reflexo perfeito da cidade nesta altura do ano. Como sempre, tentei ver a corrente quente e escura que vem do Japão e que depois acaba por se converter no Pacífico Norte, atenuando o frio e espalhando os seus dedos mornos pela costa. E, como sempre, ela negou-me esse prazer.

    Vancouver. Várias pessoas dizem que é uma cidade bonita, mas se calhar é porque nunca vaguearam pelos espaços a que chamo lar. Nunca estiveram em Hastings Street, com seringas e drogados por todo o lado. Nunca tiveram de contemplar um céu e águas cinzentas durante meses a fio, enquanto a chuva cai, numa tentativa infrutífera de limpar a cidade. Depois, vem o verão, tão quente que até dá para assar marhmallows nos incêndios que assolam as florestas na província. Perto da costa, o verão até é agradável, no entanto, ainda se encontra a meses de distância quando o telefone toca.

    Fico a olhar para o número desconhecido no ecrã e, após um momento de hesitação, rejeito a chamada. Uns segundos depois, volta a tocar. Fico intrigada. Atendo, mas só porque sempre admirei quando alguém é assim persistente em falar comigo.

    — Estou?

    Dá-se uma longa pausa depois de a pessoa do outro lado da linha explicar com uma voz rouca o motivo para me estar a ligar. A pausa cria um momento estranho. Consigo notar que o interlocutor está a debater-se consigo próprio, a querer dizer mais qualquer coisa, mas tendo noção de que isso talvez não seja boa ideia. Ninguém gosta de estar ao telefone com um tagarela. Especialmente um que não se conhece de lado nenhum. Imagino o interlocutor a transpirar do outro lado da linha. Talvez tenha ficado com as mãos pegajosas. O telefone escorrega-lhe das mãos e ouço-o estatelar-se no chão. Ele fica a praguejar uns bons trinta segundos enquanto tenta apanhar novamente o telefone e recompor-se.

    — Ainda aí está? Chegou a ouvir o que eu disse? — pergunta-me ele.

    — Sim, sim, ouvi — respondo eu, quando o silêncio começa a ficar um pouco aflitivo. — Lá estarei.

    De seguida, desligo o telefone.

    Nunca tinha ouvido falar do nome Everett Walsh antes, contudo, segundo a pessoa que me ligou, poderei saber alguma coisa sobre uma miúda desaparecida. Embora não me diga o quê. Ainda considero a hipótese de não me encontrar com ele, mas parecia desesperado e, se há coisa que me atrai mais numa pessoa do que a persistência, é o desespero.

    Apesar de encontrar pessoas fazer parte da forma como ganho a vida, o que poderia eu saber sobre uma miúda desaparecida que justificasse uma chamada a esta hora?

    Este seu desespero é tão fresco e cru que quase consigo sentir o seu sabor.

    2

    ESTÁ UMA MANHÃ de inverno agitada em Vancouver. Eu diria até molhada, mas quando se fala da costa oeste nesta altura do ano, essa ideia fica implícita. Nesta cidade, em caso de dúvida, mais vale apostar pelo lado da precipitação. Fico sentada durante uma hora antes do encontro numa paragem de autocarro do outro lado da rua, mesmo tendo o meu velhinho e amolgado Corolla no parque de estacionamento. As pessoas que vão nos carros tendem a evitar cruzar olhares com as que estão à espera dos autocarros nas paragens, exceto quando o semáforo fica vermelho e não têm mais alternativas para onde olhar. Já que que aqui não há semáforos, sinto-me invisível. Consigo ver perfeitamente o café e o parque de estacionamento daqui do meu poleiro. A parte do balcão é bem iluminada, mas o resto do café está escuro. Então isto é suposto ser um encontro clandestino. Por mim, tudo bem. Consigo fazê-lo sem problema. Mas será que este Everett Walsh consegue?

    O autocarro chega e faço sinal negativo ao motorista. Este parte com um grunhido e o autocarro arrota fumo do tubo de escape para a minha cara ao sair.

    Perto da movimentada Kingsway, o café é um cruzamento de café com restaurante, rodeado de fatos de mecânico e cadeias de fast food. De todos os bares que ele podia ter escolhido entre o seu local de residência em Kerrisdale e o lado maltrapilho da cidade de Vancouver onde moro, decidiu-se por um com um bonito toldo vermelho e uma decoração amarela já a desvanecer-se. Algo entre os dois sítios. Talvez estivesse a tentar fazer com que ambos nos sentíssemos confortáveis.

    Posso dizer que o café aqui é horrível, mas pelo menos os queques não são assim tão maus. As pessoas que pedem café para levar levantam a tampa, provam e depois fazem uma careta. Os que levam os queques nunca fazem cara feia. Encolhem os ombros e vão à sua vida, vendo os queques como uma boa forma de terem gastado o seu dinheiro.

    Vinte minutos antes da hora marcada, um Audi escuro desportivo dá a volta no parque de estacionamento. Um casal com uma imagem cuidada e a usar óculos de sol, espreitam para o café. Não encontram a pessoa de quem estão à procura e começam a discutir. O Audi sai do parque de estacionamento e volta passados cinco minutos.

    Estacionam perto da entrada e o homem sai, sem os óculos, e caminha em direção ao café. É baixo e largo, com um pescoço grosso. Um boné de beisebol cobre-lhe o escasso cabelo castanho. Está a usar um casaco preto e os ombros que se encontram por baixo dele estão arqueados, em posição derrotista. A mulher sai pouco depois, afastando o longo cabelo ruivo para os ombros e seguindo-o em direção ao café. Não se preocupa com quem a possa ver. É bonita e está habituada a que olhem para si. Porém, mantém os óculos, pois isso contribui para o seu ar misterioso e sex appeal. É bastante eficaz. O homem de meia-idade que se encontra ao balcão lança-lhe casualmente olhares cobiçantes, enquanto lhe serve o café. Não olha para o homem que se encontra atrás dela, exceto para receber o seu dinheiro.

    A seguir, ficam os dois à espera. Ambos nos seus quarenta anos, bem cuidados e bem vestidos. Não falam um com o outro, mas o silêncio que se instala entre eles é desconfortável. Se alguma vez houve química entre os dois, os vários anos de casamento desgastou-a completamente. O homem ainda está interessado, contudo, a mulher ignora todas as suas tentativas de atrair-lhe a atenção e olha para a entrada do parque de estacionamento pela janela. Ambos bebem o café sem qualquer reação visível. Ou nenhum deles está a prestar atenção, ou as suas papilas gustativas estão em choque.

    Fico a estudá-los durante o tempo que resta. É óbvio que não costumam ir ao café juntos. Não estariam aqui se não fosse preciso, por isso, a situação deve ser má. Tenho um mau pressentimento em relação a isto, mas tenho de admitir que também estou curiosa. A partir de uma pesquisa que fiz na Internet logo de manhãzinha, fiquei a saber que são ambos arquitetos, mas que trabalham para empresas diferentes. Tanto um como o outro parecem distraídos, por isso caminho pela parte de trás e entro pela porta lateral. Não estavam à espera disto e ficam surpreendidos quando lhes apareço à frente, de queque na mão. A mulher fica a olhar para as minhas calças de ganga gastas e o meu casaco muito largo com as linhas saídas expostas. Porém, o homem fica atraído pela minha cara. A minha pele, que não é nem clara nem escura, apenas de uma cor lamacenta e intermédia. Maçãs do rosto salientes. Queixo proeminente. O que parece atrair-lhe mais na minha cara são os meus olhos. É algo que acontece com frequência a quem se dá ao trabalho de olhar para mim. Sem eles, passo despercebida. São tão escuros que a pupila e a íris são virtualmente indistintas, cercados por umas longas pestanas que quase os tornam bonitos, até se olhar com mais atenção e se perceber que eles absorvem toda a luz à sua volta e se recusam a mexer um milímetro que seja. Ao olhar para eles, se alguma vez o fizer, será de repente invadido por lembranças de encontros que devia estar a ter e de compromissos anteriores que se esqueceu de colocar no calendário.

    — Everett Walsh? — Puxo uma cadeira e sento-me ao lado da mesa onde eles estão. Olho apenas para o homem. A mulher precisa de um pouco mais de tempo para se recompor da minha entrada.

    — O quê? Ah, sim. Sou eu. Sou, hã, eu. — Limpa uma gota de suor debaixo do boné e depois tira-o. A mulher faz-lhe uma expressão de nojo. — Esta é a Lynn, a minha mulher.

    — Muito prazer — exclama ela, numa voz fria e clara, indicando que a situação é tudo menos isso. Nenhum deles me reconhece da paragem de autocarro e, provavelmente, nem se aperceberam de que havia uma. Vê-se que são pessoas que não estão acostumadas a utilizar transportes públicos. Sorte a deles. A melhor descrição que se pode dar dos transportes públicos de Vancouver é que são uma porcaria, e devem ser evitados a todo o custo, a menos que se seja pobre ou o carro de luxo ainda estiver na loja.

    Apercebendo-se de que a Lynn decidiu não ser grande ajuda, o Everett toma conta da situação:

    — Muito obrigado por vir. Quero dizer, eu sei que isto é muito inesperado e que não nos conhece de lado nenhum, mas…

    — Quem é que lhe falou de mim? — Alguém lhe deve ter falado, para terem o meu número de telefone.

    O Everett pestaneja.

    — O quê? Ninguém. Contratámos alguém para a encontrar.

    Agora sou eu que fico confusa. Normalmente, é o contrário.

    — De que é que está a falar?

    — A nossa filha está desaparecida – diz a Lynn.

    O Everett olha para ela.

    — Eu disse-lhe isso ao telefone, querida.

    A Lynn vira-se para ele. Anos de história passam entre o olhar que partilham agora.

    — A filha dela está desaparecida. Mencionaste isso?

    Fico a olhar para ela com a boca ligeiramente aberta. É isto que ela espera que seja uma bomba. Por um escasso momento, todo o ar do café se extingue e surge uma tensão inesperada. Agora a Lynn já me presta toda a sua atenção e, mesmo que não sorria, sei que por trás dos óculos de sol, está feliz consigo mesma.

    O Everett pigarreia. Abre a boca como que para falar, mas volta a fechá-la. Olhamos pasmados um para o outro, até ele ganhar novamente coragem e tentar de novo:

    — Ela está a referir-se à bebé que deu para adoção há quinze anos atrás.

    Ele está preocupado com a minha reação, que até a este momento tem sido representada com uma expressão neutra. Neste momento, sinto-me tentada a verificar se tenho chão debaixo de mim, ou se, tal como suspeito, caí numa espécie de toca de coelho de horrores.

    O Everett tira uma fotografia da carteira e põe-na à minha frente.

    Uma adolescente rechonchuda com uma pele dourada olha para mim. Embora os olhos na fotografia sejam mais profundos e subidos nos cantos, não há dúvida de que são os meus. Quase pretos e impenetráveis. Tem um cabelo escuro que lhe cai até aos ombros, mais escuro que o meu, e uma adorável covinha no queixo. Ignoro a lista de características físicas dela para conseguir perceber o que está por trás daquilo tudo. O que está ela a esconder. Passado uns momentos, apercebo-me que ela está a sorrir com a boca, mas o sorriso não chega aos olhos. Está a mentir para a câmara, a fingir que está feliz.

    — Esta é a Bonnie. Bem, na verdade, é Bronwyn, mas costumamos chamar-lhe só Bonnie. — Sinto orgulho na voz do Everett. Amor também. Viro-me para a Lynn, que se recusa a olhar para a fotografia. Saboreio o meu queque, enquanto reúno pensamentos que possam ter escapado pelas frestas da mesa de madeira e espalhado pelo chão.

    O Everett não consegue interpretar a minha expressão mas, agora que começou, não consegue parar.

    — Está desaparecida há já quase duas semanas. Pensámos que tivesse ido acampar com os amigos, mas…

    — Mentiu-nos e roubou todo o dinheiro que tínhamos em casa. Também me roubou o cartão do banco e levantou milhares de dólares antes de me aperceber o que se tinha passado e ter bloqueado o cartão. — A Lynn tira os óculos e vejo manchas escuras debaixo dos olhos inchados. Começo a entender o que se está a passar. A Lynn está a perder a paciência. A criança por quem ela tanto sofreu para adotar chegou à adolescência e está à procura do recibo para a devolver ao remetente. — Já nos fez isto duas vezes, mas nunca durante tanto tempo.

    — A polícia não serviu para nada — exclama o Everett.

    — Deram o alerta mas, como ela levou o dinheiro, assumiram que ela queria ficar longe este tempo todo. Pararam de a procurar. Não sei se chegaram sequer a começar. Penso que um deles foi falar com alguns dos professores dela lá na escola, mas não conseguiu nada. É uma boa miúda.

    A Lynn ri-se, fazendo troça do que o marido disse.

    — Já lhe chamam «fugitiva crónica» ou algo do género, Everett. Roubou-nos.

    — É uma boa miúda! — O Everett insiste — Só que ultimamente, tem dado mais problemas — Reconhece ele. — Amigos novos. Voltar tarde a casa. A dar-se com esta malta da dança do hip-hop. Achamos que ela tem andado a beber e a drogar-se. Sim, é verdade que já fugiu antes, mas voltou sempre! Só que desta vez… desta vez não. Porquê? Porque é que ainda não voltou para casa? — A emoção abate-se sobre ele. Cobre a cara com as mãos. É triste ver um homem adulto chorar, mas recuso-me a afastar o olhar. É nestes momentos que se consegue ver se alguém está a ser genuíno. As lágrimas de crocodilo são fáceis de detetar, por isso, para se enveredar por essa via, é melhor estar-se muito empenhado. Ele está. Este é um homem em sofrimento.

    A Lynn fica a olhar para o Everett por breves momentos, depois vira-se outra vez para mim. Nada de mão no ombro, nem de frases de consolo como «Pronto, querido!».

    — Encontrámos no computador dela um histórico de pesquisa. Ela sabia que éramos contra, mas ela andava a procurar os pais biológicos pela Internet. Através daquelas… como é que lhes chamam?

    Olha para mim como se fosse suposto eu já ter a resposta na ponta da língua. Encolho os ombros. A expressão da Lynn não vacila.

    — Aqueles sites que reúnem crianças adotadas com os pais biológicos. Ela é menor, por isso não se pode inscrever nos oficiais, no entanto, ouvimos dizer que existem uns ilegais por aí. Comunidades online de pessoas à procura de outras. Temos esperança de que não tenha entrado em contacto consigo, para o bem dela, mas se o fez…

    O Everett recupera o suficiente para lançar a Lynn um olhar chateado.

    — Queira desculpar a minha mulher. Só queremos saber onde está a nossa filha.

    É fácil ler nas entrelinhas. O que eles querem dizer é que eu sou uma má influência, embora só tenha visto a miúda uma vez e ela muito provavelmente não se consiga lembrar de me ter conhecido. Vejo agora que eles me culpam por ela se ter metido no álcool e nas drogas. Que, nas mentes deles, mandou a educação que lhe deram às urtigas e foi logo ao encontro da minha natureza; fugiu para estar com a sua verdadeira família e juntas viveremos uma vida supérflua e enfrascada. Que nos iremos rir deles pelo topo das nossas garrafas de um litro.

    Não há nada mais humilhante do que ter pessoas decentes a olhar-nos depreciativamente. Porém, não deixo que isto se transpareça, e tiro algum conforto do facto de as vidas deles estarem aparentemente a desfazer-se mais rapidamente do que a minha. Agora entendo porque é que o Everett estava tão desesperado por se encontrar comigo.

    Sou a sua última esperança.

    — Há uns anos atrás, ela estava obcecada por encontrar os pais biológicos. Costumava falar com os amigos sobre isso, contudo, acabou por parar e pensámos que a fase tinha passado. Mas apercebemo-nos mais tarde de que ela encontrou os papéis da adoção. O seu assento de nascimento. É uma mulher difícil de encontrar; tivemos de contratar um investigador para ajudar, no entanto, pensámos que talvez a Bonnie tivesse conseguido entrar em contacto consigo de alguma forma.

    Faço-lhe um olhar pensativo e confuso:

    — Isso não faz sentido nenhum. Legalmente, é suposto ter um assento de nascimento alterado. O meu nome não devia constar lá.

    — Sabemos disso — responde o Everett. — Houve uma confusão e deram-nos o assento errado. Recebemos o alterado mais tarde e disseram-nos para destruir o original.

    A Lynn não olha para o Everett, porém as suas próximas palavras são-lhe dirigidas.

    — Mas o Everett guardou-o na mesma.

    — Peço desculpa — diz ele. — Ok? Quantas vezes vou ter de dizê-lo? Peço imensa desculpa.

    — Não sei nada dela — digo-lhes, passado um minuto. O queque já vai quase no fim e, neste momento, tanto a porta da frente como a lateral começam a ter um aspeto extremamente convidativo. No final, a minha curiosidade acaba por vencer:

    — O que é que aconteceu no dia em que ela desapareceu?

    A Lynn encolhe os ombros.

    — Disse que ia acampar.

    — Sim, eu ouvi isso. Onde é que estavam os dois?

    Dá-se uma troca de olhares. Nenhum deles se sente à vontade por terem as suas qualidades como pais a serem avaliadas.

    — Estávamos a trabalhar — conta-me a Lynn. Os olhos estão franzidos e a voz alguns decibéis acima do que pretendia. Alguns dos clientes do café olham para nós antes de se virarem novamente para o seu café horrível.

    — Será que entrou em contacto com o pai biológico? — pergunta o Everett, tentando retomar o controlo da conversa. Sorri apologeticamente pelo comportamento da Lynn. Parece ser algo que está muito habituado a fazer. Pouca sorte. Abano a cabeça.

    — Não o posso ajudar com isso.

    Levanto-me e saio da mesa, numa partida tão brusca quanto a entrada. Ainda me ocorre pedir-lhes desculpa, contudo, nunca percebi este impulso canadiano de se pedir desculpa por coisas que não são erradas.

    Quando me estou a aproximar da porta, ouço a Lynn sibilar:

    — Grande ideia, Ev. Simplesmente brilhante.

    Ouço passos atrás de mim enquanto atravesso o parque de estacionamento. Fico um pouco tensa quando se começam a aproximar. É o Everett. Enfia a fotografia nas minhas mãos.

    — Nora? Isto não correu como eu pretendia. A Lynn… está sob muita pressão no trabalho neste momento e já há algum tempo que as coisas não têm corrido muito bem entre ela e a Bonnie.

    Mais uma vez, a sua expressão é apologética. Está à espera que eu lhe transmita algumas palavras de conforto. Que indiquem que vai ficar tudo bem. Porém, tal como a Lynn, ignoro a sua súplica por conforto e compreensão. Ele endurece e começa a surgir um fluxo a partir da gola que se vai espalhando pelo pescoço. Tento devolver-lhe a fotografia, mas o Everett afasta-se do meu alcance.

    — Fique com ela. Mas, por favor, se souber alguma coisa dela, contacte-nos. Escrevi o nosso contacto na parte de trás da fotografia. Ela é… é uma boa miúda. Apesar de tudo. Só quero que ela volte para casa.

    É a segunda vez que diz isto. Está desesperadamente a tentar acreditar nas suas próprias palavras. Que é uma boa miúda. Pergunto-me o que será que quer dizer com isso. Ela parece miserável.

    — Porque é que contratou um investigador privado para me encontrar a mim e não a ela? — pergunto-lhe. E então, ocorre-me a resposta. — Porque pensou que ela tinha vindo ter comigo. Então, eu sou o seu ponto de partida.

    — E o nosso ponto terminal — diz ele, virando-se. — Ela já se tornou muito boa a fugir. Deixou-nos sem mais nenhuma pista para seguir.

    À medida que me vou aproximando do meu Corolla ferrugento, luto contra o pânico que começa a apoderar-se de mim. O Everett Walsh esforçou-se imenso por entrar em contacto com a mãe biológica da sua filha desaparecida, mesmo que nada apontasse para que eu estivesse em contacto com a miúda da qual desisti há imenso tempo. Pelos vistos ela procurou-me, mas e então? Muitas crianças procuram os seus pais biológicos sem terem qualquer sorte. Não é nada fora do comum. Dá-me uma fotografia, mesmo sem eu ter pedido. Tenta impressionar-me com o valor dela. Ele não está a mentir, mas as suas tentativas de manipulação estão a tornar-se mais claras. O seu histórico como fugitiva prejudicou todas as hipóteses de se realizar uma investigação séria sobre o seu desaparecimento e o Everett está a tentar com tudo o que tem.

    O facto de me ter conseguido encontrar não é nada de especial. O meu nome está nos documentos originais de nascimento dela. Mas como raio é que ele sabe que ajudo a encontrar pessoas desaparecidas para ganhar a vida?

    E será que sabe que a mulher estava a mentir sobre onde estava no dia em que a filha de ambos desapareceu?

    3

    A RAPARIGA ESTÁ sentada nas rochas e pondera nos seus próximos passos.

    Pensa ter uma concussão, mas não tem certeza disso. Está a sangrar da cabeça, dos braços e dos pulsos.

    Sente uma ligeira dor na parte de trás da anca, porém, não se lembra de ter levado nenhuma pancada aí. Os ouvidos estão totalmente envolvidos pelo som das ondas a bater nas rochas, ameaçando arrastá-la para o oceano. As tonturas que sente são tantas, que sabe que não teria qualquer hipótese em lutar contra a sua força. A água tem por ela própria um poder, poder esse que a assusta.

    Tem de se pôr a andar.

    Ainda vão pensar que está morta e vão parar de a procurar.

    Agarra-se a este pensamento como se fosse um talismã e encolhe-se mais nela própria. O sal que paira no ar arde-lhe nos olhos. Com um movimento rápido da língua, a rapariga apanha uma gotícula de água salgada da cara, apercebendo-se depois de que afinal é uma lágrima.

    4

    A INTERSEÇÃO DE Hastings e Columbia situa-se no pior bairro de Vancouver, a zona este da baixa. Essa área da cidade está prestes a ser alvo de obras de recuperação mas, por agora, continua a ser aquilo que sempre foi durante grande parte da sua existência: uma merda. Porém, tendo em conta os preços das casas em Vancouver, esta é a opção mais acessível para um morador conservador da baixa com o sonho de abrir o seu próprio estabelecimento de investigação privado com o amor da sua vida, um jornalista vencedor de um prémio, que aluga um pequeno escritório para as suas atividades de freelance, para escrever um livro e trabalhar no seu blogue de notícias.

    Eu sou a rececionista e assistente de investigação de ambos. Nenhum dos dois tem condições para me pagar por eles próprios, no entanto, graças a esta nova economia de partilha de custos, encontraram uma forma de a coisa funcionar. E, para ser sincera, eu também. Tenho estado a viver nestes últimos três anos por baixo da empresa de graça, para poupar para poder pagar um espaço para mim. Mas os meus patrões não sabem disso. Eles pensam que é só uma cave com discos velhos e um armário de vassouras e nunca se interessaram muito por aquilo. Por vezes comentam sobre o meu Corolla, sempre estacionado no parque de estacionamento, contudo, não fazem ideia de que é meu. Assumem que pertence ao tipo dos serviços de marketing ao fundo do corredor, e nunca me dei ao trabalho de os corrigir.

    Ao fundo da rua, um espaço frequentado por drogados, dealers, chulos e prostitutas, encontra-se o santuário hipster de Gastown. Gastown é o equilíbrio entre ricos e pobres, o local onde se encontram pessoas que podem pagar para viver nas melhores partes da cidade e outros, como eu, que se instalam de graça e que ocupam aquilo a que conseguirem deitar a mão. Os patrões vivem em Kitsilano, que fica perto da praia, mas longe o suficiente do fedor das proximidades das suas empresas para os fazer felizes. São eles Sebastian Crow, um homem de ombros inclinados, sobrevivente de um divórcio, e Leo Krushnik, o homossexual mais extravagante que alguma vez conheci. Os dois estão loucamente apaixonados, se bem que, no que toca ao Seb não seja tanto louco — é mais só apaixonado. Um correspondente estrangeiro brilhante, segundo consta, Seb reconciliou-se com a sua homossexualidade muito tarde na vida, aos quarenta e três anos, após duas úlceras devido ao stress pós-traumático por ter coberto a guerra do Kosovo e a um casamento com uma advogada. Porém, não conseguiu controlar a sua paixão pelo investigador privado, contabilista forense e muito mais novo que trabalhava a mando da sua mulher, portanto deixou tudo para ajudar Leo a abrir a sua própria firma de investigação, para a qual já não trabalha. Por vezes, ainda dá alguma contribuição com as suas competências jornalísticas mas, atualmente, a firma é mais um negócio do Leo do que um projeto de ambos. O que me deu uma lição de vida que levo muito a sério: nunca abrir uma empresa com a nossa cara-metade. Agora, tanto o trabalho como a casa estão inextricavelmente ligados, e o único refúgio do Seb é sozinho à sua secretária ou no bar do fim da rua, quando o Leo tem outras coisas para fazer.

    — Ah, eis a nossa detetora-de-mentiras-mor – diz o Leo assim que entro.

    Estou atrasada, hoje. O que não é normal em mim. Nunca chego atrasada— viver na cave tem as suas vantagens— mas o encontro com os Walsh desorientou tudo. Em vez de trazer um novo cliente, cheguei trinta minutos depois das nove, sem nada para mostrar e sem desejo nenhum de dar uma explicação. Do outro lado da área da receção, o Leo espreita-me da sua secretária. Com os seus óculos de designer e indumentária business casual de alfaiate, não corresponde às expectativas que se tem de um investigador privado, característica essa que o torna tão bom no que faz. Normalmente, as pessoas subestimam-no, o que é um erro. Seb abre a porta do seu escritório e olha para mim da soleira da porta. Os seus óculos de leitura comprados na farmácia têm fita-cola num dos lados e estão empoleirados a meio da cana do nariz.

    — Está tudo bem, Nora? — pergunta-me calmamente Seb. O meu

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