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E-book314 páginas4 horas

Patos

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Sobre este e-book

A saga de um jovem de espírito inquieto que, na busca de seu caminho, encontra-se diante de um novo "eu" desprovido de valores e de conduta questionável.
Um novo "eu" descontrolado e perturbado que é submetido a um tratamento psiquiátrico duvidoso lhe revelando a pior e mais torturante fase da sua vida.

Saiba mais sobre este e outros livros em: http://descemaisuma.blogspot.com.br/p/meus-livros.html

IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de mar. de 2014
Patos
Autor

Rafael Castellar das Neves

Nascido em Santa Gertrudes, interior de São Paulo - Brasil, formado em Engenharia de Computação e um entusiasta pela literatura, buscando nela formas de expressão, por meio de crônicas, poesias, contos, ensaios e romances.

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    Patos - Rafael Castellar das Neves

    P  A  T  O  S

    Todos os direitos autorais sobre este conteúdo estão

    registrados na Fundação Biblioteca Nacional do Brasil:

    Nº: 497.550     Livro: 941    Folha: 194

    RAFAEL CASTELLAR DAS NEVES

    P  A  T  O  S

    EDIÇÃO PRÓPRIA DO AUTOR - 2013

    Literatura Brasileira - Romance

    Saiba mais sobre esta e outras obras em: Desce Mais Uma!

    CreativeCommon

    Esta obra foi licenciada sob uma Licença Creative Commons: Atribuição - Não Comercial - Sem Derivados 2.5 Brasil.

    Você pode copiar, distribuir e exibir, desde que seja dado crédito ao autor original. 

    Ao meu querido maquinista, que me ensinou sobre a vida e me colocou nos trilhos da felicidade.

    Agradeço à minha amiga Patrícia Jurasseche Barrigão que de tão bom grado e dedicação realizou toda a revisão técnica e conselheira desta obra.

    Prefácio

    Antes de começar a escrever essa introdução, reli grande parte dos e-mails que trocamos - eu e o autor - sobre todas as revisões que fizemos, as alterações acertadas, os comentários detalhados; a fluidez, o tom, o peso. Senti-me apreensiva em alguns desses e-mails, relendo o que eu havia colocado, a emoção, a indignação, a revolta, as reações sobre certas situações ou sobre um personagem mais exaltado, ou apático, ou irreal.

    O que ficou impresso na minha mente ao ler esse livro, nascido depois de um longo tempo e de muita dedicação, foi o quão familiares certas narrações pareciam e, ao mesmo tempo, quão impensadas e até surreais outras definitivamente eram! Muito se pode questionar conforme o leitor – eu, você – avança as páginas. Quem teve uma vida que não foi contada por nossos avós, que a contaram para seus filhos e que então chegou até nós? Qual vida é isenta da lembrança do passado e a da preocupação com o futuro? Qual pai não desejou o melhor para o filho – mesmo que o filho achasse que aquilo não é o melhor para ele? Por outro lado, como pode alguém buscar com tanta convicção seu objetivo maior, renunciar confortos e ultrapassar barreiras simples ou inimagináveis e, cedo ou tarde, deparar-se com a cegueira, a traição, a violência, o abuso e o abandono como recompensa? Peças desencaixadas. Descrições fortes. Cenas impensadas. Pessoas frias. Solidão.

    O leitor será levado por momentos incríveis quando se identificar com boa parte das palavras que poderão remetê-lo à sua família, à sua infância e aos conselhos do seu próprio pai; ao longo da narrativa, será tomado por compaixão, indignação e revolta e se perguntará vez ou outra o que deu errado, o que foi perdido, onde foi o passo em falso.

    Ao final, perceberá que o passo em falso sempre estava ali, ora evidente, ora oculto, mas sempre ali. O gatilho estava claro desde o início e foi alimentado, capítulo a capítulo, com pitadas de verdades chocantes e de circunstâncias utópicas. Intrigante? Vale a leitura para constatar.

    Patrícia Jurasseche Barrigão

    A verdadeira compreensão se restringe aos limites do seu próprio ser.

    O autor.

    Capítulo I

    O sol novo e não muito alto estava quente o suficiente para queimar o rosto de Adauto e incomodar seu sono. Com os olhos ainda fechados, começou a despertar, remexendo-se e endireitando seu corpo. Sentiu dores nas juntas e nas costas que lhe atacavam por causa da posição sinuosa em que se tinha postado. Com uma das mãos, limpou a baba viscosa que, quase seca, parecia melado repuxando seu rosto. Sentiu nojo e vergonha de ter sido visto naquela situação. Precisou de força para tentar abrir os olhos, mas uma pasta encorpada se formou durante o tempo em que as pálpebras não trabalharam. Uma luz inimiga o atacou e elas lutavam com força para vencer essa batalha. Doeu-lhe a fronte. Uma cegueira temporária o fez espreguiçar. Repousou novamente e aguardou que a ofuscação terminasse.

    A luz começou a diminuir e tudo ganhava forma e cor. Com a saliva grossa, inspecionou todo o interior da boca com a língua. De maneira incompetente, comprovou a presença de todos os dentes e em seguida engoliu. Tratou de repetir o movimento algumas vezes até a que a saliva raleasse. Passou as mãos na cabeça como se fossem pentes banguelas que colocavam os fios de cabelos em posições mais apresentáveis.

    Com a visão quase normal, virou-se para a janela da cabina e tentou descobrir onde estava e constatou uma subida. Era um terreno rochoso. Sua vista era cortada por árvores e moitas que desapareciam tão subitamente quanto apareciam. Sem dar chance de identificar quaisquer detalhes, apenas revelava tons esverdeados que se formavam com as cores misturadas pelo vento e pela velocidade. Eram plantas que teimavam em crescer em terreno onde não deveria haver nada que precisasse de terra e água para vingar. Ao fundo, morros traçavam um horizonte sinuoso definido pelos cumes rochosos e pelo céu azul-esbranquiçado do amanhecer de um dia quente. No céu sem nuvens, bandos de aves fantasmas iludiam sua existência em amontoados que definiam formas irregulares e destoantes. Talvez fosse a mistura da claridade com as remelas que as distorciam. Esfregou os olhos para remover as manchas que via. Continuou. Abaixo dos cumes rochosos, sem mais nem menos, verdes cobertores aveludados escondiam as intimidades da serra que se fundiam uns aos outros, cravados em um estreito vale que a cortava. De onde estava, parecia um tapete de um verde intenso e vivo. Algumas árvores tornavam o relevo imperfeito. Como uma fina e delicada gargantilha prateada derramada sobre o colo, rasgava um córrego, talvez um rio mais largo – não se tinha a noção precisa daquela distância. Refletia de uma forma intermitente e irregular. Ao seu redor, majestosas árvores e volumosos feixes de colonião abriam alas para sua passagem pelo vale. Era uma vista virtuosa, mas não um paraíso. Lá embaixo, talvez predominasse o som de ventos e de folhas roçando umas com as outras num balé desengonçado na estreita planície, vazia de lembranças ou sentimentos pesados.

    Os pensamentos de Adauto deixaram de ter sentido. Olhava, mas não via. Tudo ficara embaçado como se tivesse perdido as formas e então era um amontoado de manchas que tentavam se definir. Adauto nada via e nada pensava, apenas estava ali, alienado, sentindo. Sentia o calor na face, sentia paz, sentia-se livre. Como se pudesse ir aonde quisesse, enquanto para nenhum lugar queria ir. Como se tivesse aberto uma porteira para que seus pensamentos saíssem para se divertir, sem se lembrar do que realmente eram. Sentia paz: era só ele e o mundo. Há tempos não conseguia estes momentos. Havia tentado, mas quando se tenta os pensamentos não ficam livres; com muito esforço, apenas o corpo. Mas os pensamentos mantêm a ligação com a realidade e ainda trazem um turbilhão de e se...?. Apesar disso, definitivamente, sentia-se bem.

    Os guinchos agudos das rodas arranhando o trilho e as batidas das engrenagens chacoalhando incansavelmente começaram a ficar cada vez mais altos. Os pensamentos começaram a voltar e as manchas a se definirem e mostrar o que escondiam. Adauto sentou-se e, agora olhando para frente, com os olhos tontos pela falta de luminosidade da cabina, levou as mãos ao rosto e o massageou. Sem pressa, relaxou e nutriu cada músculo, repousando as em seguida em suas coxas. Os olhos começaram a limpar as manchas brancas que apareceram sem sentido em um fundo negro devido à massagem nas pálpebras, e um vulto formou-se em sua frente. Havia um homem sentado ali. Adauto assustou-se. Não havia ninguém naquele lugar quando dormiu e não notara nada de diferente desde que acordou. Devia ter embarcado durante a noite ou trocado de lugar. Não importava, havia um homem sentado em sua frente e o olhava nos olhos. Então Adauto percebeu que era um senhor, um homem de idade avançada. Um velho que não parava de olhá-lo. Adauto começou a olhá-lo também. Quis saber a quanto tempo estava sendo observado. Tentou lembrar se tinha feito algum movimento ou expressão de que deveria se envergonhar enquanto estava olhando pela janela. Não conseguiu, mas mesmo assim sentiu vergonha. Baixou os olhos e os voltou para o velho que mantinha os seus fixos, nas mesmas posições de antes, sem movimentar qualquer outra parte do corpo. Adauto então pensou que podia estar morto. Morrera durante a noite. Então sentiu medo. Um morto em sua cabina; um morto que só parecia morto, não fossem pelos olhos muito vivos. Os sentimentos começaram a se misturar e iludir, então, Adauto decidiu se acalmar e examinar melhor o velho. Usava sapatos novos e bem engraxados, apenas alguns arranhões, provavelmente, por mexer as pernas e os pés durante a noite em busca de posições cômodas para relaxar ou, ao contrário, por enrijecimentos e contrações que tivera enquanto agonizava. Respirou fundo e se acalmou novamente. O terno era preto; um tanto surrado pelo tempo, mas ainda apresentável. Tinha a aparência de recém-alisado. As mãos repousavam em uma pasta marrom acomodada sobre as pernas. Estavam em uma posição que permitiam encaixar o chapéu de feltro de abas estreitas. A gravata estava frouxa e do colarinho saia um pescoço amassado e marcado por sulcos. Por debaixo do paletó, via-se uma camisa larga que tentava se encaixar a uma cintura fina, abarrotada por um cinto apertado. O rosto era menos penoso. Barba aparada. Os lábios finos quase não havia; apenas um risco definia sua boca. Nariz grande e afilado. Largas narinas de onde saiam longos pelos grossos. Os olhos estavam afundados no rosto magro e as pequenas bolsas abaixo deles apenas serviam para destacar as ondas que os seguiam até a região de um provável bigode. Ainda fixos, os olhos tinham tristeza. Sofrimento. Talvez uma vida cansada, cheia de problemas que ainda a atormentavam. Dificuldades financeiras? Solidão? Nunca saberia, a não ser se perguntasse, mas isso não o faria. Ainda não sabia se estava vivo e lembrou que ao passar o olhar pelo pescoço, pôde perceber o movimento de sua respiração e até uma engolida discreta. Continuou. Os poucos e ralos cabelos que lhe restavam eram brancos e finos. Todos cuidadosamente penteados tombavam à direita e exprimiam certa elegância.

    Adauto retornou as costas ao encosto. Concluiu que o velho estava vivo e pronto para o próprio velório. Sem dúvida, era uma figura misteriosa, cheia de fantasmas de uma longa vida. Adauto teve pena. Olhou-o com ternura procurando alguma maneira de ajudá-lo. Mas ajudá-lo com quê? Como falar com ele? O que perguntar? E se conseguisse, o que faria? Para quê? Como? Talvez estivesse apenas cansado. Talvez fosse marcado por anos de trabalho pesado. Ou talvez estivesse indo ao encontro da família ou de um amor do passado. Adauto desistiu de qualquer tentativa ao entender que tudo em que pensava eram apenas especulações sobre um senhor que se sentara em sua frente durante uma viagem. Então, sutilmente, o velho contraiu um dos lados do rosto num sorriso tímido, como se adivinhasse os pensamentos de Adauto.

    Pelo corredor, o grito do cobrador anunciou a cidade da próxima parada. O velho, com a mão esquerda, vestiu o chapéu, firmou a pasta na mão direita e se levantou, tentando firmar os joelhos trêmulos que não tinham a mesma sustentação de antes. Já em pé e de frente a Adauto, levou a mão direita ao chapéu e o tocou levemente em reverência, dizendo de forma macia e calma, sorrindo:

    - Tenha um bom dia, filho!

    Adauto engasgou, apavorado. O velho curvo estava quase no corredor. Adauto tentava dizer um Obrigado, bom dia para o senhor também, mas não conseguia. Estava assustado. Contorceu-se agitado tentando dizer algo com o corpo, mas o velho sumiu de vista.

    Estava sozinho e cansado. Ainda trêmulo, percebeu o trem parando, mas não via a estação; devia estar do outro lado. Queria ver o velho desembarcar, ver como seria recebido, se teria de carregar muita bagagem e tantas outras coisas que passavam pela sua cabeça. Desistiu. Achou melhor ficar quieto onde estava. Sentia medo e vergonha. Desmanchou-se na poltrona e apertou os olhos agora encharcados, sufocando qualquer lágrima desnecessária que teimasse se formar. Tinha de se recompor para o café da manhã.

    Capítulo II

    Adauto era parte da terceira geração de imigrantes que, em busca de paz e dignidade, fundaram uma vila ao leste daquele estado, tornando-se então uma cidade de porte considerável com qualidade de vida desejável. Resultado merecido. Aquela gente passou por muitas dificuldades, tanto na terra natal quanto no novo mundo. Perdeu a dignidade, foi submetida a situações subumanas e constrangedoras que a maioria nem ousava lembrar. Era como um pacto selado não com palavras, mas com dores vivas guardadas dentro de si, de um tempo que deveria ser esquecido, apagado, engolido. Só era quebrado pelas lembranças descontroladas que irrompiam os sonos de seus personagens, levando-os a espasmos noturnos que terminavam em gritos de desespero de quem diz me ajude, abafados pelas lágrimas e gemidos que os seguiam. Todos os que ouviam seus conterrâneos durante estes períodos noturnos sabiam do que se tratavam, e o máximo que podiam fazer era fechar os olhos e se proteger contra as próprias lembranças. Mesmo os parceiros de cama não davam uma só palavra, nem mesmo para dizer que tudo era só um sonho ou que aquilo já havia passado e que, enfim, os tempos eram outros. Naquele momento, qualquer palavra confirmaria a real existência daquele tempo; então, para não caírem na mesma situação, viravam-se para o outro lado da cama, fechavam-se os olhos para sufocar as lágrimas ou tentavam pensar em outras coisas, esperando o surto vizinho terminar para poder dormir novamente.

    O avô paterno de Adauto imigrara ainda menino, junto da mãe e da irmã mais velha. A decisão de seguir com o grupo para uma nova terra foi tomada pela sua mãe, assim que soube que a guerra tragara seu pai. Passou a ser o único homem da família e não tinha força suficiente para trabalhar com a enxada, mas tinha idade suficiente para entender o que acontecia. Juntaram-se a um grupo de concidadãos próximos e conhecidos, inclusive um tio, cunhado de sua mãe, que tinha informações vindas de outro grupo que havia ido à frente para encontrar um ponto de partida. Na nova terra, estabeleceram-se como puderam e passaram a viver em regime cooperativo, em todas as coisas, desde o cultivo de oliveiras, a produção de azeites, a construção do grande galpão que servira de abrigo coletivo, até às construções das casas e terras de cada família. Foi a busca pela paz, pela dignidade e, acima de tudo, o medo que mantiveram aquele povo unido em todos os momentos, ajudando uns aos outros, como se fossem uma mesma família. E foi esta família que acolheu a de seu avô e permitiu que ela vingasse.

    Sua avó paterna nunca se soube ao certo se nasceu na terra nova ou à caminho dela – era o que uns diziam e outros contradiziam. Mas era filha do tio do avô de Adauto. Com o tio morto e mãe inválida pela idade, o avô de Adauto uniu-se a ela em matrimônio para manter suas terras na família. Apesar de uma união praticamente comercial, tinham respeito um pelo outro e aprenderam a se amar e a viver como os demais casais daquela vila. Sua avó nunca teria as lembranças amargas e sangrentas que todos sufocavam dia após dia e que atormentavam as noites de seu avô. Talvez por isso ela foi uma das pessoas mais meigas que Adauto conheceu.

    Seu avô materno era um dos desbravadores que chegaram naquela terra. Foi um dos pioneiros e fundadores da vila e carregou as mais pesadas responsabilidades. Ele e seus companheiros tiveram que encontrar um lugar seguro e próspero para onde pudessem levar suas famílias; depois, tiveram que vender as produções daquela gente, correndo as vilas e cidades vizinhas procurando compradores, vendendo e negociando na língua local; passavam noites ao relento sem ter o que comer; e quando não conseguiam nada, tinham a pior das tarefas: voltar e encarar os rostos esperançosos e os olhos ansiosos de seus concidadãos que aguardavam notícias sobre a compra de seus produtos. Estas viagens fizeram com que aqueles homens se tornassem conhecidos nas outras localidades. E foi uma destas viagens que apresentou a avó de Adauto àquele seu avô. Ela era filha de um dos compradores de azeite, dono de um grande armazém da cidade. Trocaram olhares e sorrisos algumas vezes e então deu-se início uma longa e bonita história de amor.

    O avô materno faleceu antes mesmo de Adauto nascer. A única lembrança que tinha era uma única e surrada foto que a mãe guardava. Conhecia-o mais pelas incríveis histórias que o povo contava sobre um de seus grandes heróis, às vezes falsificadas ou destorcidas. A avó ainda viveu vários anos e acabou esclerosada quando Adauto era apenas um bebê. Os outros avós o acompanharam até a adolescência, quando a avó deu um último e terno suspiro na madrugada de um sábado. O avô suportou alguns meses, mas a desolação pela perda da esposa o fez definhar descontroladamente até a morte. Entregou-se.

    A vida daquele povo melhorou muito com a chegada da estrada de ferro, que trouxe progresso e muitos outros conterrâneos que sobreviveram como puderam na terra natal. A comunidade tornou-se vila e a vila tornou-se cidade. O pai de Adauto, então, era dono de um bom pedaço de terra, união das de seus pais e de seus sogros. Era um homem vigoroso, sempre disposto ao trabalho. Não era um homem alto, mas de uma força maior que seus músculos demonstravam. Seus cabelos eram grisalhos e compunham uma espessa franja cuidadosa e constantemente penteada, mesmo que debaixo do chapéu. Seus olhos eram claros e atentos. Estava sempre bem vestido, não importava a roupa, estava sempre cuidadosamente disposta. Com charme e orgulho, exibia um volumoso bigode que sempre acariciava enquanto a mente funcionava quieta.

    Conforme as terras foram se tornando mais produtivas e a produção melhor aproveitada, a idade começou a pesar e os empregados a aumentarem. Eram eles que o ajudavam com a produção e o livravam dos serviços pesados. Os braços cansados tiveram descanso e o cérebro então era o que mais trabalhava. Ele passou a ser o estrategista, o administrador, o patrão. Não era um senhor de terras, mas tinha uma boa condição de vida. Mesmo assim, preferiu manter a família o mais longe possível da vida vadia e decadente que levavam as pessoas da cidade. Não aprovava aquele modo de vida, por mais que tentasse aceitá-lo nas outras famílias. Não se tratava da cidade em si, mas da falta de respeito entre as pessoas, da carnificina, da falsidade e, principalmente, da falta dos tradicionais valores de família, os quais tentava manter na sua. Acreditava na criação ao modo antigo, com o respeito dos filhos pelos pais e da mulher pelo seu homem; acima de tudo, acreditava na família como uma entidade sagrada que devia ser protegida de tudo e de todos. Mantinha e provia tudo para a família do jeito que achava mais conveniente. Respeito. Esta era a palavra que melhor o descrevia. Não era uma pessoa romântica, mas tinhas suas maneiras de se fazer presente.

    A esposa era uma mulher sutil e temerosa ao marido, sempre elegante e com uma imponência majestosa – algumas vezes chegando à arrogância. Era da altura do marido, com cabelos louros encaracolados – sempre muito bem arrumados – olhos esverdeados e amendoados que se moviam de modo soberano. Tinha um corpo esguio e muito bem conservado, considerando a idade e três partos. Estava sempre bem vestida com elegância e requinte, mesmo quando na cozinha ou em outros afazeres domésticos. Teria um rosto angelical se não fosse pelo olhar quase que diabólico. Era uma mulher tradicional que também gostava de manter os valores, principalmente aqueles relacionados à vida social. Preocupava-se incansavelmente com a aparência, não apenas em sua forma física, mas também na comportamental. Neste âmbito era ela quem ditava as regras e fiscalizava toda a família.

    Criou a filha à sua imagem. Era como um prêmio muito buscado, tendo primeiro dois filhos homens. A filha parecia, inclusive, sua miniatura: tinha uma estatura um pouco menor, mas agia, pensava e se comportava como a mãe. Fazia parte também da fiscalização sobre a família, trazendo à mãe os resultados de suas investigações quando esta não estava. Contava os desleixos do pai ou dos irmãos. Tudo era imediatamente incorporado pela mãe e utilizado como munição sobre eles.

    A mãe e a irmã de Adauto sempre demonstraram o desejo de morar na cidade para poder desfrutar de conforto e do luxo e para estar mais perto das famílias respeitadas que eventualmente as convidavam para alguma badalação. A esposa tinha um gênio forte e não eram raros os momentos em que ela se impunha de forma dura e atrevida, mas ele persistia e conseguia lidar com a situação. Não era um homem vingativo e soberano, sabia também ouvir as vontades de desejos da esposa. Era tudo uma questão do momento em que viviam. As mudanças das condições as faziam odiar e praguejar contra a vida naquele lugar, inclusive em suas intimidades. Mas o pai de Adauto tinha fixa a sua ideia e reformou a casa em que moravam e a tornou bastante confortável, com certo luxo que lhe era possível. Fez tudo de forma que a esposa pudesse, ao acaso, oferecer momentos agradáveis às amigas ali mesmo, dos quais ele nunca participaria.

    O irmão de Adauto era o que menos desejava sair daquele lugar. Era como se tivesse nascido para ali viver. Era sete anos mais velho que Adauto e acompanhara o pai desde jovem na lida com as terras. Era mais alto que Adauto e que o pai. Tinha um corpo forte e ágil, com braços musculosos, mãos calejadas e rosto afilado, cujo queixo destacado e olhar sedutor por natureza, eram atração para as mulheres. Vestia calças justas, camisas de flanela, botas e chapéu tipo caubói. Desistiu dos estudos com consentimento do pai, ainda no início. Queria dedicar-se às terras. Faria jus ao que seria um dia chamado de herança. Foi uma grande força com a qual o pai pôde contar e assim assumiu uma posição importante e ativa nos negócios da família, sendo um dos grandes responsáveis pela situação atual, estável e confortável. Era forte, trabalhava feito um cavalo. Estava sempre pronto e disposto para quaisquer necessidades que o pai viria a ter. Naturalmente, tudo funcionava melhor com o pai por trás, lapidando e direcionando suas ideias, o que evitava que seu ímpeto juvenil o fizesse trocar os pés pelas mãos em algumas situações. Adauto nunca conseguiu definir se o irmão era uma pessoa de bom coração ou se não passava de um potro redomão que, vez ou outra, distribuía coices em todos ao seu redor. Era amparado pela mão do pai que nunca, ao que Adauto se lembrava, a teria usado contra ele. Era um pouco dos dois em um só. Também era certo que o irmão sucederia o pai na família e por isso o pai o preparava conforme achava certo. Eram como unha e carne; como a cabeça e o corpo.

    Adauto tinha uma ótima relação com o irmão; admirava-o, respeitava-o e adorava estar com ele; fosse qual fosse o motivo, bastava estar. Passava a maior parte da infância com a irmã e se divertiam muito, ainda mais quando eram surpreendidos pelo irmão que os carregava nos ombros e se jogava com eles na lagoa do fundo da fazenda. Momentos não raros, mas não tão frequentes em que o irmão, após o dia de trabalho, resolvia distrair-se brincando com eles, agarrando-os, arrastando-os, arremessando-os no ar, girando-os pelas pernas e pelos braços, fazendo todos os tipos de brincadeiras que lhes davam frio na barriga, alternando medos e prazeres. Sempre acabavam estirados ao chão, ofegantes, até que a mãe orgulhosa os chamava da varanda para que viessem rapidamente tomar seus banhos para o jantar que estava quase pronto.

    A irmã era apenas dois anos mais nova que Adauto. Era o retrato físico e emocional da mãe. Frequentava a escola com Adauto. Nunca lhes seria permitido desistir. O próprio pai fazia questão de deixar isso muito claro, já que tinha um ressentimento, nunca admitido, por ter privado o filho mais velho dos estudos. A irmã era uma espécie de boneca que estava sempre atrasada por culpa da mãe, que lhe despejava arrumações e enfeites como um confeiteiro em busca o bolo perfeito. E sempre atrasava Adauto. Nos degraus da entrada da frente da casa, ele tinha paciência em esperar. O irmão os levava e este sim impaciente, apertava a buzina dezenas

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