Muito além da paz
De Anelise Vaz
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Sobre este e-book
Alinhadas a essas novas práticas, a Minustah já nasceu com objetivos mais abrangentes, entendendo que nenhuma conquista no campo da segurança é sustentável sem mudanças estruturais sociais, políticas e econômicas.
O caminho para a paz está muito além dela mesma.
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Muito além da paz - Anelise Vaz
imprescindível.
CAPÍTULO 1
AS INTERVENÇÕES HUMANITÁRIAS NO PÓS-GUERRA FRIA
1.1 As Nações Unidas e a manutenção da paz
As atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial fortaleceram o entendimento de que a sobrevivência da humanidade dependia do esforço conjunto e da colaboração de todos os países. A Liga das Nações, primeira tentativa de construção de uma entidade internacional que fosse capaz de evitar guerras, falhara, mas perdurava a ideia de uma organização internacional que contasse com a participação de todos os países na promoção da paz.
A Liga das Nações (ou Sociedade das Nações), fundada em 1919, tinha como objetivos principais a prevenção da guerra e a promoção de uma segurança coletiva, por meio de políticas de desarmamento e arbitragem de conflitos. Entretanto, a Liga não contava com uma estrutura à altura de suas ambições, e o contexto de nacionalismos exacerbados de seu tempo acabou por torná-la impotente. Embora tenha fracassado em evitar a guerra, a organização teve um importante papel na redução do tráfico internacional de ópio e na profilaxia de doenças em países pobres, dentre outros pequenos sucessos. Tais realizações podem, por decerto, ter estimulado um novo esforço de cooperação internacional, que tomou forma na criação da ONU.
Mesmo antes do fim da guerra, os países aliados manifestaram a intenção de aperfeiçoar a experiência da Liga das Nações. Diferentemente do período após a Primeira Guerra, quando ainda era possível iludir-se com a conveniência da velha ordem dos Estados, os horrores da Segunda Guerra Mundial incutiram na sociedade internacional a certeza de que um simples retorno à situação anterior não era viável e nem desejável. Assim, uma conferência realizada em São Francisco, em 1945, assentou a estrutura básica para um novo corpo internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU). A Carta das Nações Unidas – documento constitutivo que forma, estabelece e regula a organização – postula que todos os Estados-membros¹ estão sujeitos aos seus artigos, e que suas determinações prevalecem sobre quaisquer outras obrigações advindas de outros tratados. Na leitura da Carta, percebemos que a ONU foi fundada sobre três grandes pilares: a busca pela paz, a cooperação internacional, e a promoção dos direitos humanos. O documento estabeleceu ainda alguns princípios fundamentais, norteadores da Organização e dos Estados-membros, tais como: a igualdade soberana entre todos os Estados, o cumprimento de boa-fé das obrigações contidas na Carta; a resolução pacífica de controvérsias internacionais, de modo que não sejam ameaçadas a paz, a segurança e a justiça internacionais; a proibição da ameaça ou do uso da força nas relações internacionais; a assistência a todas as ações promovidas pelas Nações Unidas; a proibição de prestar auxílio a Estado contra o qual a Organização esteja agindo de modo preventivo ou coercitivo; e a proibição de intervenção, pela ONU, nos assuntos de competência essencialmente interna dos Estados, exceto por meio de medidas coercitivas previstas no capítulo VII da Carta².
1.1.1 A Declaração Universal de Direitos Humanos
Evitar uma nova guerra de proporções mundiais continuava sendo o objetivo em torno do qual a cooperação parecia vantajosa, mas os líderes fundadores entenderam que o respeito aos direitos naturais do homem era condição necessária para uma paz duradoura. Portanto, um dos primeiros atos da Assembleia Geral da ONU foi a proclamação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Junto com a Carta da ONU, a Declaração Universal de Direitos Humanos impôs limites à maneira como os governos podem tratar seus cidadãos, e oficializa, na esfera normativa internacional, a prevalência dos direitos humanos sobre outros direitos dos Estados. A tese dos direitos humanos supõe, justamente, que acima de qualquer poder existem direitos irredutíveis. Lê-se em seu preâmbulo:
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade, de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum;
Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, [...]3
A Declaração inaugurou, assim, uma visão contemporânea de direitos humanos, agregando características a esses direitos que ampliam seu poder, tais como a universalidade, a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a irrenunciabilidade, e a inviolabilidade. Sintetizou, ainda, pela primeira vez em nível internacional, os direitos humanos constantes em declarações precedentes⁴. O preceito da universalidade – que significa que todos os humanos, em todas as partes do mundo, possuem direitos iguais simplesmente pelo fato de serem humanos – tem especial importância porque ignora quaisquer diferenças nacionais, biológicas ou culturais na asserção desses direitos.
Em um sistema mundial em que até então somente os Estados eram considerados atores legítimos, surge o homem como sujeito capaz de denunciar maus-tratos do Estado perante organizações internacionais e outros Estados. Os julgamentos de Nuremberg, no qual sujeitos foram julgados individualmente por atos que no passado seriam atribuídos ao Estado como entidade coletiva, estabeleceram o precedente de que indivíduos em posição de autoridade podem ser punidos por crimes contra a humanidade, e obrigaram a sociedade internacional a mudar sua compreensão sobre o lugar do indivíduo no Estado e a concluir que os governantes não podem violar os direitos individuais em nome de interesses coletivos.
Embora a Declaração Universal de Direitos Humanos represente a consolidação formal da importância que os direitos humanos adquiriram nos últimos séculos, e embora ainda seja o documento que estabelece o padrão de ações e discussões internacionais sobre o tema, ela é falha por não prever nenhum mecanismo de imposição dos direitos que prega. Em uma época de endurecimento das linhas de confronto da Guerra Fria, um documento que pretendesse impor obrigações morais aos países jamais seria aprovado. Por isso, na prática, a Declaração expressa mais um conjunto de aspirações que uma realidade alcançável, e sua aplicabilidade esteve sempre atada a considerações geopolíticas. Entretanto, apesar de suas limitações, a Declaração é importante por suas potencialidades e por ser a expressão máxima do aumento na consciência de direitos que ocorreu nos últimos três séculos.
Na verdade, todo o sistema de proteção aos direitos humanos das Nações Unidas dispõe de um instrumental normativo admirável, que não conta, porém, com mecanismos de implementação eficazes. Em função de embates políticos, alianças e antagonismos estratégicos comuns na comunidade internacional, a construção de cada elemento que pudesse, ainda que minimamente, fazer sombra à soberania absoluta dos Estados realizou-se sempre em meio a grandes dificuldades, exigindo flexibilidade e acomodações. É preciso, nesse sentido, entender as limitações da ONU, sem ignorar sua importância.
Além disso, logo após sua criação, a ONU se viu no centro de um embate político entre as duas maiores potências e seus aliados, o que congelava a defesa dos direitos e liberdades individuais e tornava o sistema de segurança coletiva praticamente inoperante. Um e outro lado apelavam para as normas de direitos humanos quando convinha acusar o oponente, mas ao mesmo tempo não se tomava nenhuma medida concreta para não abrir precedentes que pudessem prejudicá-los em outras ocasiões. O uso persistente do veto no Conselho de Segurança da ONU e o clientelismo das grandes potências tornavam a organização incapaz de agir mais concretamente na prevenção de conflitos. Ao longo do período que se estende do final da Segunda Guerra Mundial até 1989, [...], ocorreram mais de duas centenas de guerras civis, mescladas com guerras internacionais, gerando mais de 25 milhões de mortos e provocando a existência de mais de 25 milhões de refugiados, que tiveram que fugir de suas casas, de seus países
⁵. Em todos os casos, as Nações Unidas pouco ou nada puderam fazer além de eventualmente enviar missões de auxílio humanitário que apenas aliviavam o sofrimento dos envolvidos com suprimentos e cuidados médicos. A preocupação com as soberanias nacionais era tão arraigada naquela época que os mecanismos criados para lidar com denúncias de violações de direitos humanos eram de caráter confidencial, e a punição máxima aplicada ao Estado infrator era trazer a público essas