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Democracia Agonística e Normatividade Comum
Democracia Agonística e Normatividade Comum
Democracia Agonística e Normatividade Comum
E-book455 páginas6 horas

Democracia Agonística e Normatividade Comum

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Sobre este e-book

O livro Democracia agonística e normatividade comum defende uma base "normativa comum" para o projeto de uma democracia agonística cosmopolita. Ao analisar a teoria democrática agonística de Chantal Mouffe, observa-se que ela carece de uma base normativa comum que oriente a cidadania democrática na arena política contemporânea. A partir das contribuições da ?loso?a da linguagem do segundo Wittgenstein, a obra considera que a democracia liberal é uma "prática social" ou "forma de vida" que, por sua vez, tem uma "gramática profunda", cujas normas são regidas por regras linguísticas que orientam o agir político da cidadania democrática engajada nas sociedades contemporâneas. Para isso, torna-se necessária então uma "normatividade comum", a saber: a normatividade política, jurídica e valorativa, como "pano de fundo" das práticas sociais do projeto de uma democracia agonística cosmopolita.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de jun. de 2022
ISBN9786525023243
Democracia Agonística e Normatividade Comum

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    Democracia Agonística e Normatividade Comum - Geraldo das Dôres de Armendane

    Geraldo_Armendane_capa_16x23-01

    Democracia agonística

    e normatividade comum

    Editora Appris Ltda.

    1.ª Edição - Copyright© 2022 do autor.

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.

    Catalogação na Fonte

    Elaborado por: Josefina A. S. Guedes

    Bibliotecária CRB 9/870

    Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT

    Editora e Livraria Appris Ltda.

    Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês

    Curitiba/PR – CEP: 80810-002

    Tel. (41) 3156 - 4731

    www.editoraappris.com.br

    Printed in Brazil

    Impresso no Brasil

    Geraldo das Dôres de Armendane

    Democracia agonística

    e normatividade comum

    Aos movimentos sociais (operários, ecológicos, étnicos, feministas, LGBTQIA+, sem-teto, sem-terra etc.), que lutam bravamente por mais liberdade e igualdade nas sociedades democráticas contemporâneas, sobretudo nas trevas deste tempo.

    AGRADECIMENTOS

    Ao Instituto Federal do Piauí (IFPI), pela minha liberação durante o tempo necessário para a conclusão deste estudo. Se não fosse isso, certamente seria muito difícil conciliar as exigências acadêmicas de um doutoramento em filosofia que, por sua vez, requer foco e disciplina, com as exigências de um trabalho intensivo em sala de aula.

    Ao professor doutor Darlei Dall’Agnol, pelas dedicação e competência na orientação desta obra. O resultado deste trabalho de investigação filosófica deve-se muito à sua paciência e ao seu rigor como orientador.

    À professora doutora Milene Consenso Tonetto, pela simpatia, generosidade e acolhida.

    Aos amigos Mario Machado Filho e Laerzio Lopes Scandelari, pela amizade sincera cultivada no período em que residi em Florianópolis.

    Com o meu escrito não pretendo poupar aos outros o pensar.

    Porém, se for possível, incitar alguém aos próprios pensamentos.

    (Ludwig Wittgenstein)

    PREFÁCIO

    É com alegria, mas também com certa apreensão, que escrevo este prefácio. Com alegria porque o livro Democracia agonística e normatividade comum, de Geraldo das Dôres de Armendane, é o resultado de uma pesquisa de doutorado, cuja tese foi defendida em 2020, na Universidade Federal de Santa Catarina sob minha orientação. É um trabalho conceitual e argumentativo cuidadoso sobre um tema instigante e que merece reflexões filosóficas aprofundadas para que a nossa sociedade possa organizar-se politicamente da melhor forma possível na busca do bem comum. É também com certa apreensão, pois vivemos um momento delicado para a consolidação da democracia no nosso país. Nesse sentido, a publicação da tese em formato de livro é oportuna, pois faz uma contribuição significativa para o debate. Não tenho dúvidas de que o leitor encontrará aqui não apenas uma teoria sobre forma de governo, mas subsídios para (re)pensar a sua práxis política e buscar uma forma-de-vida verdadeiramente democrática.

    A ideia básica do autor deste livro é que há uma base normativa que possibilita as democracias contemporâneas e que precisa ser protegida e respeitada, pois não está garantida de uma vez por todas. Partindo de uma indicação wittgensteiniana sobre a essência do agir político caracterizada em termos agonísticos, Geraldo reconstrói a proposta de alguns pensadores e pensadoras que defendem um modelo de democracia fundado numa pluralidade de valores e visões de mundo, que não é pensada em termos de amigo/inimigo, mas no reconhecimento de que a outra pessoa pode até ser uma adversária, que discorda e tem diferenças, mas que também é parceira na busca e na realização de objetivos comuns. Essa base normativa comum possibilita a organização governamental, jurídica, econômica etc. Essa normatividade não teria sido reconhecida por importantes defensores da democracia agonística, como Chantal Mouffe. Por conseguinte, a perspectiva de análise torna-se crítica desse déficit normativo.

    O autor caracteriza, então, três tipos de normatividade:

    a política (sobre as disputas no campo adversarial);

    a jurídica (estabelecida a partir do diálogo com teóricos da democracia deliberativa); e

    a valorativa (pensada considerando os valores morais, religiosos e estéticos).

    O trabalho de Geraldo se desenvolve, enfim, no sentido de mostrar que, por exemplo, o dissenso e os conflitos são saudáveis na arena política e contribuem para a formação dos cidadãos e das instituições das democracias liberais.

    O ponto alto do livro é mostrar que a perspectiva de Mouffe é insuficiente para um projeto de democracia agonística e, desse modo, faz-se necessário defender uma normatividade comum para a construção de uma democracia agonística cosmopolita. A prática democrática torna-se fundamental. As contribuições específicas nessa direção o leitor encontrará no corpo deste livro e não é necessário reproduzi-las aqui em detalhes.

    Para finalizar este prefácio, enfim, gostaria de fazer um breve comentário sobre a atualidade e a importância dessas discussões sobre a democracia, principalmente, em nosso país. Muito se tem discutido ultimamente sobre a morte das democracias. De fato, a sua existência depende do que Geraldo chama de normatividade comum e, quando ela inexiste ou é negligenciada, caminhamos rapidamente para diferentes formas de dominação totalitária. Esse parece ser o caso, hoje, no Brasil. Infelizmente, nos últimos anos, temos assistido a uma série de retrocessos na implementação de uma verdadeira democracia, a começar pela incapacidade da Comissão da Verdade de punir exemplarmente os perpetradores dos crimes de tortura durante a última ditadura militar, o impeachment de uma presidenta honesta, a ameaça de representantes das Forças Armadas caso o Supremo Tribunal permitisse a eleição do ex-presidente Lula em 2018, a formação atual de um governo formado majoritariamente por militares da ativa, com alguns declaradamente antidemocratas e outros incompetentes para os cargos (vide desempenho desastroso do General Pazuello na condução do combate à pandemia da covid-19), as constantes declarações do atual presidente, colocando em questão as próximas eleições etc. Não parece surpresa, então, que a nossa política recente tenha se pautado mais pelo ódio próprio da relação amigo/inimigo e, nesse sentido, tenha caminhado mais na direção da implementação de um tipo de tirania do que de uma consolidação democrática.

    Temos muito a fazer ainda para estabilizar a prática democrática no nosso país. Oxalá este livro possa contribuir para voltarmos ao caminho realmente democrático. Que o leitor encontre aqui razões para reconhecer que, quem pensa diferente, não é inimigo, mas apenas adversário com os mesmos interesses, com discordâncias e diferenças, mas, sobretudo, com os mesmos interesses e, desse modo, fortaleça a sua esperança na coexistência pacífica e na busca cooperativa do bem comum. Se tiver sucesso nessa empreitada, o presente livro terá feito uma grande contribuição para retomarmos o caminho da consolidação da democracia no nosso país.

    Darlei Dall’Agnol (UFSC/CNPq)

    APRESENTAÇÃO

    As sociedades democráticas liberais contemporâneas constituem-se em espaços de conflitos e contestações inevitáveis e permanentes. Em outras palavras, pode-se considerar que os regimes democráticos liberais se manifestam em sua natureza agonística quando acolhem e preservam a indeterminação, a incerteza e o conflito. Isso significa dizer que a dimensão agonística das democracias liberais revela-se em uma maior abertura e em um alargamento do espaço público para a participação de cidadãos engajados nas lutas políticas por liberdade e igualdade nas sociedades contemporâneas. Aqui, cabe esclarecer que a palavra agonística é derivada de agon, que, na língua grega, significa conflito, enfrentamento, confronto, contestação e disputa.

    O enfoque deste livro é a democracia radical agonística de Chantal Mouffe. Para ela:

    [...] o que tem sido comemorado como o renascimento da filosofia política nas últimas décadas é, de fato, uma mera extensão da filosofia moral; é um raciocínio moral aplicado ao tratamento das instituições políticas. Na atual conjuntura liberal, isto se manifesta na ausência de uma distinção adequada entre o discurso moral e o discurso político. Para recuperar o aspecto normativo da política, introduzem questões morais acerca da imparcialidade e a unanimidade no processo de argumentação política. O resultado é uma moral pública para as sociedades liberais, uma moral que é considerada política porque é mínima e evita comprometer-se com concepções controvertidas de bem, e finalmente porque promove o cimento para a coesão social. (MOUFFE, 1999, p. 199-200).

    Nessa passagem, Mouffe critica a atual discussão dos pensadores liberais, como John Rawls por exemplo, em torno da filosofia política e teorias democráticas que caminham na direção de certo normativismo deslocado da realidade efetiva do jogo político democrático contemporâneo. A partir das categorias centrais como hegemonia e antagonismo, a autora aponta para a importância do reconhecimento da dimensão da negatividade radical que se manifesta na possibilidade sempre presente de antagonismo (MOUFFE, 2013, p. 2). Essa dimensão, segunda ela, impede os indivíduos de verem a sociedade como uma totalidade que exclui a possibilidade sempre presente de divisão e de poder.

    Destaque-se que um dos principais sintomas da crise das democracias contemporâneas manifesta-se na forma de antagonismos, segundo os quais as disputas políticas desembocam em conflitos políticos irreconciliáveis de "amigos versus inimigos". Como resposta, Mouffe defende um antagonismo transformado em agonismo que pressupõe uma relação conflitante de "nós versus eles" e reconheça a legitimidade de seus oponentes, ou seja, que eles sejam tratados como adversários e não como inimigos políticos a serem eliminados da esfera pública.

    Para isso, Mouffe defende o retorno do político para a esfera pública naquilo que ele representa enquanto antagonismos, conflitos e disputas políticas pela conquista e manutenção do poder. A partir de categorias filosóficas heideggerianas, a autora reconhece que o político e o social têm status existenciais indispensáveis à existência humana em sociedade. Em outras palavras: para Mouffe, o político em seu estatuto ontológico tem uma dimensão antagonística, constitutiva das relações hegemônicas de poder, que assume várias formas e emerge de várias relações sociais de poder que, por sua vez, nunca pode ser erradicada da esfera pública.

    Embora busque inspiração na segunda fase da filosofia wittgensteiniana, parece que Mouffe não compreendeu o espírito desse filósofo austríaco, que concebe a realidade efetiva da vida política democrática como uma forma de vida (Lebensform), ou melhor, como uma condução consciente da vida de cidadãos na arena política democrática contemporânea, que, por sua vez, é formada por uma gramática profunda, sem a qual não é possível sequer pensar a democracia.

    Conforme visto, é possível vislumbrar então um déficit normativo na teoria democrática agonística de Mouffe. Diante disso, considera-se a necessidade de preencher tal lacuna com a proposta de uma base normativa comum assim como com o projeto de uma democracia agonística cosmopolita. Para isso, busca-se tratar das implicações da filosofia do segundo Wittgenstein para a democracia contemporânea em três tipos de normatividade: política (sobre as disputas políticas no campo adversarial, segundo Mouffe), jurídica (aqui contamos com as contribuições dos dois principais teóricos deliberativos como Rawls e Habermas que tiveram influência do segundo Wittgenstein) e valorativa (sobre a contribuição dos valores morais, religiosos e estéticos).

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    DEMOCRACIA AGONÍSTICA

    1. O que é a democracia agonística

    1.1 O conceito do político

    1.2 O pluralismo

    1.3 A noção de tragédia

    1.4 O conflito

    1.5 Prioridade do poder constituinte

    INSTITUCIONALIZANDOA DEMOCRACIA AGONÍSTICA

    2. Pós-fundacionismo versus antifundacionismo

    2.1 Uma ontologia fraca

    2.2 Democracia agonística como instituição suave

    2.2.1 Contribuições de William Connolly

    2.2.2 Contribuições de Bonnie Honig

    2.2.3 Contribuições de James Tully

    DEMOCRACIA AGONÍSTICASEGUNDO CHANTAL MOUFFE

    3. O paradoxo democrático moderno

    3.1 Democracia deliberativa como uma política sem exclusão

    3.2 Democracia radical agonística de Mouffe

    3.2.1 Democracia radical agonística de Mouffee o segundo Wittgenstein

    3.3 Democracia radical agonística como uma nova esquerda liberal

    NORMATIVIDADE COMUME DEMOCRACIA AGONÍSTICA

    4. Uma ética da democracia sem moralidade segundo Mouffe

    4.1 Uma normatividade comum para a democracia

    4.1.1 Normatividade política

    4.1.2 Normatividade jurídica

    4.1.3 Normatividade valorativa

    4.2 Democracia agonística cosmopolita como uma forma de vida

    CONCLUSÃO

    REFERÊNCIAS

    INTRODUÇÃO

    As democracias liberais em todo o mundo enfrentam um momento grave de crise que se manifesta de várias maneiras, a saber: no elevado nível de ressentimento por parte das populações da classe média e da classe trabalhadora decorrente da deterioração da atividade econômica e da precarização do mundo do trabalho,¹ no aumento da descrença das pessoas nos sistemas políticos tradicionais, no crescimento do individualismo, no recrudescimento da extrema-direita em várias partes do mundo,² no aumento do fundamentalismo religioso e, por fim, na erosão da política em escala mundial. Tais desafios causam angústia e preocupação nas pessoas quanto ao futuro dos regimes democráticos no mundo inteiro.

    Diante disso, torna-se possível identificar duas posturas humanas: por um lado, a existência de um forte pessimismo entre as pessoas causando-lhes apatia e resignação frente aos desafios das democracias liberais contemporâneas; e, por outro, essa crise pode despertar amplo interesse nas pessoas em investigá-la com profundidade para melhor compreender a sua dinâmica assim como as suas causas, a fim de saber como lidar com seus limites e desafios. Aqui, eu me identifico com a segunda posição, isto é, com a postura de um pesquisador cônscio dos desafios e limites dos regimes democráticos contemporâneos, o qual não se acomoda, mas busca dar respostas à atual problemática.

    Um dos principais sintomas da crise dos regimes democráticos contemporâneos manifesta-se na forma de antagonismos, segundo os quais as disputas políticas desembocam em conflitos irreconciliáveis de "amigos versus inimigos". Isso é danoso para a vida democrática implicando riscos aos valores que formam a gramática profunda da democracia liberal, a saber: liberdade, igualdade, tolerância, cuidado e respeito. Se as disputas políticas antagonísticas, por um lado, podem pôr em perigo a coexistência pacífica entre os povos e a sobrevivência humana na Terra; por outro, é possível encorajar as disputas políticas legítimas em sua dimensão agonística na arena política contemporânea.

    Neste livro contemplo a abordagem democrática agonística de Chantal Mouffe, sustentando que há um déficit normativo na democracia agonística mouffeana. Como proposta, defendo a necessidade de uma base normativa comum assim como o projeto de uma democracia agonística cosmopolita. Vale destacar que a política democrática contemporânea apresenta vários níveis de normatividade: jurídica, política, valorativa, econômica e social, entre outros, como pano de fundo. Para isso, busco implicações das noções filosóficas de Wittgenstein para a democracia contemporânea em três tipos de normatividade: política (sobre as disputas políticas no campo adversarial, segundo Mouffe), jurídica (aqui contamos com as contribuições dos dois principais teóricos deliberativos como Rawls e Habermas que tiveram influência do segundo Wittgenstein) e valorativa (sobre a contribuição dos valores morais, religiosos e estéticos).

    Trata-se de uma normatividade comum formada por uma gramática profunda constituída por normas cujas regras orientam os agentes nas sociedades democráticas contemporâneas. Para tal fim, argumento que:

    dado que o dissenso e os conflitos saudáveis na arena política contribuem para elevar o nível de confiança e identificação dos cidadãos com as democracias liberais e suas instituições, então é importante valorizar a dimensão agonística das democracias liberais contemporâneas;

    visto que os regimes democráticos liberais contemporâneos se sustentam sobre terrenos contingentes e precários da vida política, então é fundamental cultivar a lealdade e a identificação dos cidadãos com os valores da democracia liberal. Por isso, há a necessidade de institucionalizar as práticas democráticas agonísticas sobres bases fracas no seio das democracias liberais convencionais fortes;

    se a democracia radical agonística de Mouffe carece de uma base moral e normativa cujas regras guiam a práxis de cidadãos engajados na arena política contemporânea, entendo ser necessário sustentar as bases da democracia agonística sobre bases normativas comuns para o projeto de uma democracia agonística;

    considerando que a concepção ética da democracia de Mouffe, inspirada no desconstrutivismo de Derrida e na psicanálise de Lacan, é insuficiente para sustentar o modelo democrático agonístico, então sustento a ideia de uma normatividade comum para as democracias contemporâneas assim como um projeto de democracia agonística cosmopolita.

    Segundo Mouffe, uma concepção rawlsiana de justiça como equidade (justice as fairness) impede uma compreensão adequada da filosofia política contemporânea, pois ela permite apenas conceber cidadãos democráticos como pessoas morais livres e iguais em termos de cooperação social. Dessa forma, não haveria mais espaços para uma visão política de bem comum nem uma definição realmente política de cidadania democrática. A partir daí, então, a autora sustenta a tese de uma filosofia política sem fundamentos morais, dessa maneira a permitir que os cidadãos democráticos reescrevam de forma metafórica as suas relações sociais e políticas, buscando articular de maneira precária as liberdades individuais com as liberdades políticas com vistas a construir novas posições subjetivas e, desse modo, criar novas e diferentes identidades políticas nas sociedades democráticas contemporâneas. Embora reconheça que a abordagem deliberativa de Habermas seja mais bem elaborada que a rawlsiana, Mouffe (2011, p. 72) critica a ideia habermasiana de inclusão por meio de consenso racional e universal. Para ela, toda inclusão implica exclusão de alternativas possíveis. Ademais, o consenso em uma sociedade democrática será sempre a expressão de uma hegemonia. Isso significa que o limite entre o legítimo e o ilegítimo trata-se de uma fronteira política e, portanto, sempre estará sujeito a questionamentos. Portanto, Mouffe conclui argumentando que a teoria democrática deliberativa habermasiana, ao negar as fronteiras ou apresentar os limites da práxis política democrática como algo ditado pela racionalidade e pela moralidade, naturaliza o que deve ser considerado, segundo a autora, uma articulação sempre contingente e temporária de povo mediante um regime de inclusão/exclusão.

    Este livro compõe-se de quatro capítulos. No primeiro, trato da democracia agonística e seus quatro elementos constitutivos, a saber: o conceito do político, o pluralismo, a noção de tragédia e o conflito. Por fim, argumento que a democracia agonística, enquanto aumento ou expansão do poder político mediante disputas e confrontos democráticos de cidadãos engajados na arena política contemporânea, constitui-se como poder constituinte (potentia). Em outras palavras, o poder constituinte é formado pelos movimentos de lutas da cidadania engajada na arena política contemporânea com vistas a garantir os direitos individuais, sociais e políticos nas democracias liberais institucionalizadas, ao passo que o poder constituído (potestas) é formado pelas instituições estabelecidas e sedimentadas de um sistema representativo.

    No segundo capítulo, sustento que uma democracia agonística é formada por instituições suaves no seio das instituições fortes das democracias liberais convencionais. Ao que posso acrescentar, argumento que um modelo democrático agonístico é moldado por uma ontologia fraca permitindo que a real situação da vida social e política das democracias liberais contemporâneas se constitua em um tipo de fundação na qual os conflitos políticos ocupem o seu espaço e, mediante isso, possam florescer. Dessa forma, é importante tornar visível o status contingente e precário das fundações políticas a partir de uma abordagem pós-fundacional para que qualquer pretensão à universalidade seja revelada. Ao concluir, abordarei as contribuições dos três principais teóricos políticos agonísticos (William Connolly, Bonnie Honig e James Tully) para a teoria democrática plural agonística. Esses teóricos, cada um à sua maneira, inspiraram-se em Nietzsche, Foucault, Arendt e Wittgenstein para a elaboração de teorias éticas que orientem os cidadãos em suas lutas contra todas as formas de dominação e opressão nas sociedades democráticas.

    No terceiro capítulo, analiso o modelo de democracia radical agonística de Mouffe e as críticas dessa autora às teorias democráticas deliberativas e consensuais habermasiana e rawlsiana, em que se nota que a autora defende a prioridade do dissenso e das paixões políticas contemporâneas frente à busca por consensos racionais e razoáveis nas democracias contemporâneas. Discordo da posição de Mouffe, por entender que a vida democrática requer consensos e entendimentos mínimos entre cidadãos engajados nas democracias liberais contemporâneas. Ademais, considero que teóricos deliberativos como Habermas e Rawls não rejeitam os conflitos e o dissenso na esfera pública. Esses teóricos deliberativos, na realidade, negam os conflitos irracionais e irrazoáveis que, uma vez instaurados na esfera política, podem colocar em perigo a estabilidade das democracias liberais contemporâneas. Em seguida, discutirei as contribuições da filosofia do segundo Wittgenstein para a democracia agonística de Mouffe. Para concluir, apresento a democracia agonística radical de Mouffe como a proposta de uma esquerda liberal.

    No quarto capítulo, argumento em defesa de uma normatividade comum para a democracia contemporânea assim como de um projeto de democracia agonística cosmopolita. Por meio dessa argumentação, acredito ser possível preencher a lacuna no pensamento político de Mouffe, a saber: a ausência de uma base normativa para as democracias contemporâneas. A princípio, porém, destaco que a ética democrática mouffeana foi inspirada tanto na psicanálise de Lacan quanto no desconstrutivismo de Derrida, uma vez que a teórica política belga se limitou tão somente a criticar a moralidade da tradição sem propor valores normativos para o real enfrentamento dos problemas que atingem as sociedades democráticas liberais em todo o mundo. Em seguida, sustento a ideia de uma normatividade comum para a democracia contemporânea, a partir das contribuições do segundo Wittgenstein. Em conclusão, defendo a proposta de uma democracia agonística cosmopolita para enfrentar os desafios que afligem o mundo atualmente, a saber: a concentração de renda e, por conseguinte, o aumento da pobreza extrema, a crise ambiental, o terrorismo em escala mundial, entre outros.

    Portanto, reconheço a necessidade de se compreender a experiência democrática como forma de vida humana, elaborada por uma gramática profunda formada por um conjunto de normas, cujas regras orientam o jogo político nas sociedades democráticas contemporâneas.


    ¹ Wendy Brown (2019, p. 11) salienta que as agendas políticas liberais, as agendas econômicas neoliberais e as agendas culturais cosmopolitas geraram uma crescente experiência de abandono, traição e finalmente raiva por parte dos novos despossuídos, das populações da classe trabalhadora e da classe média branca do Primeiro Mundo e do Segundo. Cf. BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política democrática no ocidente. Tradução de Mario Antunes Marino e Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: editora politeia, 2019.

    ² Um dos sintomas mais visíveis dessa crise que atinge as sociedades democráticas liberais contemporâneas é o crescimento de partidos ultranacionalistas e a ascensão de líderes populistas de extrema-direita em várias nações em todo o mundo, como os Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra, Suíça, Itália, Polônia, Holanda, Bélgica, Espanha, Áustria, Noruega, Hungria, Rússia, Filipinas, Índia, Brasil etc.

    CAPÍTULO I

    DEMOCRACIA AGONÍSTICA

    Neste capítulo, discutirei a democracia agonística e seus principais elementos constitutivos, a saber: o conceito do político, o pluralismo, a tragédia e o conflito, assim como a prioridade do poder constituinte. O dissenso e os conflitos salutares na arena política contemporânea ajudam a fomentar a fidelidade e a identificação dos cidadãos com os regimes democráticos e suas instituições, então necessário se faz evidenciar a dimensão agonística das democracias contemporâneas. Nesse sentido, os conflitos e as lutas políticas pela liberdade e igualdade se constituem como poder constituinte (potentia) e podem ocorrer de duas formas: como revolução ou como aumento e ampliação dos direitos individuais e coletivos de cidadãos engajados nas sociedades democráticas contemporâneas.

    Acrescente-se, aqui, uma definição de democracia proferida pelo presidente norte-americano Abraham Lincoln, no século XIX, a qual que se tornou senso comum nos dias atuais: a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo.³ Embora tendo um forte apelo retórico, essa definição de democracia não traduz o real jogo político democrático contemporâneo em sua realidade efetiva, a partir da qual se podem levantar as seguintes indagações: será que a democracia, enquanto realidade efetiva, de fato, constitui-se como governo do povo, pelo povo e para povo? Será que o povo é o agente principal na construção coletiva das democracias contemporâneas? Ou seja, os regimes democráticos favorecem o exercício da cidadania engajada na arena política com vistas a aumentar e expandir os direitos individuais e coletivos? Por meio dessas indagações é possível, então, afirmar que, longe de representar governos do povo, pelo povo e para o povo, configura-se na verdade um significativo déficit

    democrático,⁴ implicando riscos aos fundamentos das democracias liberais e suas instituições em todo o mundo.

    As democracias liberais contemporâneas estão fundadas em solos contingentes e precários da vida política e, portanto, seria uma ilusão acreditar que, uma vez estabelecidos nas sociedades contemporâneas, os regimes democráticos seriam aceitos por todos os cidadãos sem oposição ou contestação. Mouffe (2009, p. 96) observa ainda que uma verdadeira cidadania democrática só é possível mediante uma multiplicação de instituições, discursos e formas de vida que promovam uma forte identificação dos cidadãos com as instituições e os valores do liberalismo, por um lado, que dizem respeito às liberdades individuais, aos Direitos Humanos e ao Estado de Direito; e da democracia, por outro, cujos valores estão associados à soberania popular e à identidade entre governante e governado.

    Ela também argumenta que, uma vez privados da possibilidade de viverem os valores democráticos, os cidadãos procurarão outras formas de identificação política, colocando em risco os acordos cívicos que unem as instituições democráticas liberais. A emergência do populismo de extrema-direita e o surgimento de vários tipos de fundamentalismos (ético, moral, político e religioso), por exemplo, são consequências diretas do déficit democrático em todo o mundo. Nesse sentido, há uma onda de publicações de livros, nos quais cientistas políticos, filósofos, historiadores e jornalistas nos alertam para esse perigo, que denunciam essa atual tendência política mundial. Esses autores discutem sobre a capacidade de sobrevivência das democracias liberais atualmente.

    Da minha parte, defendo que um regime verdadeiramente democrático se preocupa com o bem-estar dos cidadãos. Aqui reside o sentido de democracia plena, que difere do ideal de perfeição. Em outras palavras, uma democracia liberal jamais pode cultivar a pretensão de ser um projeto ideal de governo, uma utopia. A história nos ensina que governos inspirados em um ideal de perfeição desembocaram nas mais cruéis tiranias, cujas consequências foram gravíssimas para toda a humanidade. Sendo assim, considero que um regime realmente democrático aposta nas incertezas e indeterminações próprias das democracias liberais contemporâneas.

    Na antiguidade grega, Platão e Aristóteles já nos alertaram sobre os perigos dos regimes democráticos antigos de serem solapados por líderes demagogos que manipulam o sentimento do demos. Na República, Platão (1999, p. 173) observa que, de maneira semelhante à passagem da oligarquia à democracia, a tirania tem origem na democracia, pois um governo democrático, sedento de liberdade, passa a ser dominado pelos maus chefes. Com isso, tudo se transborda em liberdade: o pai habitua-se a tratar o seu filho como seu igual e a temê-lo. O filho não mais respeita nem teme o pai, porque quer ser livre. Do mesmo modo, o meteco torna-se igual ao cidadão e o cidadão ao meteco; o mestre passa a recear os discípulos e os lisonjeia, os discípulos fazem pouco caso de seu mestre; os jovens imitam os mais velhos e disputam com eles em palavras e ações; os mais velhos, por sua vez, sujeitam-se à maneira dos jovens e mostram-se cheios de gentileza para com eles, imitando a juventude, com medo de serem considerados enfadonhos e despóticos.

    Ainda de acordo com Platão, o excesso de liberdade da democracia leva à mais cruel e terrível servidão e tirania, provocando a mais viva reação da natureza: nas plantas, nas estações, nos corpos e, sobretudo, nos governos. Platão ataca também a ideia de igualdade. Segundo ele, a democracia nasceu quando os mais pobres venceram os mais ricos. Depois, eles foram eliminados ou expulsos e suas riquezas divididas. Os seus cargos públicos foram divididos por meio de sorteios. Por fim, o filósofo ateniense atacou aquilo que, nas sociedades democráticas liberais, mormente chamamos de pluralismo. Desse modo, o filósofo grego compara a democracia grega antiga a um traje colorido que ostenta várias tonalidades de cores e uma variedade de caracteres; ou ainda a um bazar de constituições, em que se escolhe o que se prefere e, a partir daí, realiza-se um projeto.

    Ao analisar as diferentes formas de governo e as constituições antigas, Aristóteles (2009, p. 92-93) classificou a democracia dos antigos como uma forma degenerada de governo. O filósofo dividiu as formas de governo em três tipos: realeza ou monarquia, que tem por objetivo o interesse geral; aristocracia, cuja forma de governo é constituída por um número reduzido de homens (tal forma de governo é assim chamada porque a autoridade está nas mãos das pessoas bem nascidas, que fazem uso dela para o maior bem do Estado e de seus membros); politeia ou república, o governo de multidão no sentido do interesse geral, ou melhor, exercido pela maioria dos cidadãos e para o bem de toda a comunidade política. A politeia é também compreendida como constituição.

    Cada um desses tipos de governo, de acordo com Aristóteles, apresenta o seu desvio correspondente: o desvio da monarquia ou realeza é a tirania; da aristocracia é a oligarquia; e o da politeia ou república é a democracia. Daí, a tirania consiste numa monarquia cujo único objetivo reside no interesse do monarca; a oligarquia só reconhece o interesse dos ricos; e a democracia só enxerga o interesse dos mais pobres. Aristóteles salienta que nenhum desses três governos degenerados visa ao benefício geral de toda comunidade, porque a tirania é uma monarquia que exerce um poder despótico na sociedade política; a oligarquia torna senhores do governo aqueles que possuem fortunas e a democracia, ao contrário, dá poder não aos que adquirem grandes riquezas, mas aos pobres.

    Aristóteles (2009, p. 188-189) advertiu também sobre os riscos que a demagogia representa para a democracia dos antigos podendo levá-la à tirania. Para o filósofo estagirita, quase todos os tiranos saíram justamente da classe de demagogos que atraíram para si a atenção e a confiança do povo, utilizando-se de calúnias dirigidas aos poderosos. Aristóteles revela que, mesmo naqueles regimes democráticos que pareciam possuir a constituição mais popular, havia um estado de coisas completamente oposto ao que se pode esperar. Essa situação era decorrente de uma ideia mal concebida de liberdade, por se acreditar que as verdadeiras definições de democracia eram a soberania da multidão e a liberdade. Com isso, o direito era a igualdade e a expressão da vontade popular era a soberania. Como dizia Eurípedes, numa democracia, a liberdade e igualdade contribuíam para que o indivíduo agisse livremente, de tal maneira que cada um vivesse de acordo com a sua própria vontade fantasiosa.

    Apesar disso, alguns teóricos e filósofos políticos contemporâneos procuram distinguir a experiência

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