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A alfabetização sob o enfoque histórico-crítico: Contribuições didáticas
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E-book417 páginas5 horas

A alfabetização sob o enfoque histórico-crítico: Contribuições didáticas

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Sobre este e-book

Esta obra apresenta questões didático-pedagógicas de apropriação de conhecimentos científicos acerca do ensino da leitura e da escrita em uma perspectiva crítica de educação, alicerçada na psicologia histórico-cultural e na pedagogia histórico-crítica, sendo que tais aportes teóricos encontram-se em franca ascensão como alternativas pedagógicas aptas à melhoria da qualidade educacional, notadamente nas escolas das redes públicas municipais. Não obstante, ainda não dispomos em nosso país de uma obra que elucide, especificamente, como proceder à alfabetização sob o enfoque histórico-crítico, sendo este o caráter inédito desta obra: a formulação de princípios didáticos. Entendemos digno de nota apontar que o método de alfabetização adotado por Cuba – referência mundial de sucesso em alfabetização – foi, entre outras, uma de nossas fontes de pesquisa para elaboração de tais princípios. Com tais proposições, esperamos auxiliar o professor no desempenho de sua tarefa como alfabetizador, estando cientes de que os domínios da leitura e da escrita se impõem como lastro de todo o percurso de escolarização, isto é, como dispositivo básico do qual dependerão os demais processos de aprendizagem que compõem o universo escolar e a vida no seio da cultura.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de ago. de 2018
ISBN9788574964164
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    A alfabetização sob o enfoque histórico-crítico - Meire Cristina dos Santos Dangió

    2016.

    Éconsensual para a psicologia histórico-cultural e para a pedagogia histórico-crítica que a linguagem eleva o psiquismo humano, fazendo-o alçar patamares cada vez mais complexos por meio da apropriação do universo simbólico criado pelo coletivo dos homens. Munido desse preceito, o presente capítulo visa corroborar a compreensão da importância da leitura e da escrita na requalificação do psiquismo humano e, ao mesmo tempo, destacar quanto a apropriação de tais objetivações da humanidade se impõem como condição de humanização para cada pessoa em particular.

    Por ser a apropriação da leitura e da escrita um elemento nuclear para o desenvolvimento humano e visando explicitar as vicissitudes desse processo, julgamos pertinente, de partida, nos deter sobre os aspectos históricos do desenvolvimento filo e ontogenético desse complexo mecanismo cultural denominado linguagem. Com base nessa historicidade, avançamos em direção ao aclaramento das relações entre o desenvolvimento psíquico e a apropriação de signos, bem como ao destaque da palavra como unidade dialética entre linguagem e pensamento. Uma vez expostas as bases teóricas gerais da psicologia histórico-cultural acerca dessas temáticas, colocamos em tela os elementos que respaldam a realização da linguagem na oralidade e na escrita e, subsequentemente, como se dá o processo que se encaminha do gesto à palavra, subsidiando a capacidade humana de simbolização. Finalizando este capítulo, apresentamos o enfoque dispensado pela pedagogia histórico-crítica ao papel da educação escolar na promoção do desenvolvimento humano, anunciando que para essa teoria pedagógica a alfabetização se impõe como tarefa primeira da escola. Nesse sentido, aproximamos a pedagogia da psicologia naquilo que esta contribui para o entendimento das leis do desenvolvimento humano e para o planejamento de situações de ensino anuentes com esse ideal.

    1. Desenvolvimento histórico da linguagem: aspectos filo e ontogenéticos

    A primeira exigência a ser atendida por um enfoque histórico-crítico diz respeito à compreensão do fenômeno em estudo em sua processualidade e movimento, dado que nos conduz ao estudo do desenvolvimento histórico da linguagem haja vista seus vínculos com a complexificação do psiquismo humano e, consequentemente, com a edificação da vida cultural dos indivíduos. Segundo Luria (1994, p. 29), a linguagem se firmou como objetivação humana por um longo percurso social, no qual o uso da palavra ocupou distintas posições e, conforme o referido autor: a palavra nem sempre teve as formas precisas que atualmente tem, nem dispôs do sistema preciso de significados que caracterizam as palavras de uma língua desenvolvida.

    Ainda conforme Luria (idem, ibidem), a linguagem, surgida como necessidade de comunicação pelo trabalho, era estruturada muito mais por exclamações, entrelaçadas num sistema de gestos e atos de trabalho, do que de palavras de significado rígido e permanente. Dessa forma, o significado da palavra era refém da situação prática, conferindo-lhe um caráter simprático, ou seja, o significado da pluralidade de sons e de sentidos consubstanciados em uma palavra só era captado no contexto prático de interlocução. Sendo assim, a fala não possuía ainda uma estabilidade sígnica.

    No plano filogenético, após milhares de anos, em seu processo evolutivo, as palavras passaram a carregar significados com traços particulares, estabelecendo-se um sistema objetivo e diferenciado de códigos linguísticos transformado até os dias atuais. Por conseguinte, esse sistema linguístico, como resultado de relações sociais humanizadoras, nos impele à reflexão sobre a aprendizagem da linguagem escrita, em uma relação semântica com ela, ultrapassando meramente o caráter sonoro das palavras. Escrever foi uma árdua conquista da humanidade, e assim também o é para cada indivíduo particularmente.

    Cagliari (2005, p. 106) caracteriza a história da escrita por meio de três fases: a pictórica, a ideográfica e a alfabética. O sistema de escrita pictográfica era apresentado por meio de desenhos ou pictogramas.

    Nossos antepassados viviam em cavernas, sobreviviam da caça, da pesca e de raízes. Com o surgimento da necessidade de comunicação entre eles, apareceram as primeiras inscrições antigas, representadas nos desenhos e pinturas das paredes das cavernas. Pinturas representativas desse período histórico são os pictogramas da Caverna da Pedra Pintada, localizada no Pará/Brasil, que provam serem indícios da antiga cultura amazônica [idem, ibidem].

    Nessa ótica, Cagliari (idem, p. 108) declara que os pictogramas não estão associados a um som, mas à imagem do que se quer representar. Consistem em representações bem simplificadas dos objetos da realidade. Nessa mesma direção, Dehaene (2012, p. 198) afirma a importância da escrita pictográfica para o desenvolvimento da humanidade, declarando que, por meio da gravura e do desenho, a humanidade inventa uma primeira forma de ‘autoestimulação’ de seu sistema visual.

    A fim de ilustrar a reflexão sobre o desenvolvimento da escrita na humanidade, Zatz (2002) nos apresenta uma pintura feita em caverna e aponta reflexões acerca dessa imagem e de sua representação objetiva (Figura 1).

    Figura 1 – Pintura rupestre

    Fonte: Zatz (2002, p. 16).

    A referida autora infere sobre os possíveis significados da pintura, deduzindo: É possível que a pessoa que a fez quisesse dizer: Caçamos dois alces. Mas poderia ser: ‘Hoje vamos caçar dois alces’. Ou então: ‘Meu irmão e meu pai foram caçar alces’. Ou ainda: ‘Eu agora já sou grande e vou poder caçar alces’ (idem, p. 17).

    Zatz (idem) transporta-nos aos primeiros passos da humanidade para a invenção da escrita: registrar, por meio de desenhos, ideias e sentimentos, aquilo que gostaríamos de comunicar. Todavia, como a própria autora provou, representações por meio de desenhos nem sempre objetivam exatamente nosso dizer, dando margem a diferentes interpretações.

    Então, após milhares de anos de evolução social, a humanidade experienciou a necessidade de controlar seus rebanhos, plantações, marcações de terrenos etc., sendo a escrita um instrumento necessário e importante. Portanto, a partir dessa necessidade, o ser humano criou sinais para representar palavras, iniciando assim a fase ideográfica da escrita. Esses desenhos especiais eram chamados de ideogramas. Zatz (idem) nos apresenta a Figura 2:

    Figura 2 – Ideograma

    Fonte: Zatz (2002, p. 23).

    Os sinais presentes nessa escrita foram descritos por estudiosos da paleografia, que descobriram que os sinais dessa escrita representavam, de acordo com Zatz (idem), conforme Figura 3, respectivamente:

    Figura 3 – Ideograma

    Fonte: Zatz (2002, p. 24).

    Portanto, nesse caso ficou fácil traduzir a escrita: o dono tinha 54 animais, entre bois e vacas. Conforme podemos notar na Figura 3, de acordo com Dehaene (2012, p. 201):

    a codificação das ideias abstratas, muito em particular a dos números, parece ter jogado um papel essencial desde todas as primeiras etapas da emergência da escrita e, talvez, na ideia mesma de que os conceitos possam ser escritos. Os primeiros símbolos escritos são raramente pictográficos: são com frequência formas geométricas simples.

    A invenção de sinais para representar palavras a princípio parecia ser uma boa solução para o registro, contudo, com a complexificação das relações sociais, foi necessária a criação de muitos outros sinais. Zatz (2002, p. 25) justifica essa necessidade: aos poucos, foi-se tornando necessário escrever mais palavras e era impossível inventar e decorar sinais para todas elas. Passou-se, com isso, conforme Zatz (idem, ibidem), a usar o mesmo sinal para palavras que tinham significados que poderiam ser associados. Um exemplo desse momento era o sinal para a palavra SOL, podendo expressar SOL e DIA.

    Entretanto, havia palavras impossíveis de serem escritas dessa maneira, tais como nomes de pessoas, lugares, palavras representativas de vida, saudade, alegria etc. Massini-Cagliari e Cagliari (2001, p. 23) ratificam essa ideia, apontando que seria muito complicado escrevermos poesia ou documentos ideograficamente, porque, nesses casos, os sons das palavras (no caso da poesia) ou a presença de determinada palavra e não de outra (no caso dos documentos) é muito importante.

    Para solucionar o problema, os povos começaram a usar sinais para representar o som da fala. Um exemplo dos sumérios era o sinal apresentado na Figura 4, demonstrado por Zatz (2002):

    Figura 4 – Ideograma

    Fonte: Zatz (2002, p. 27).

    Esse sinal representava tanto a palavra flecha quanto a palavra vida, e ambas possuíam o mesmo som: ti. Com o tempo, passaram a utilizar também essa estratégia para pedaços de palavras. Cagliari (2005, p. 108) complementa essa ideia afirmando que: esses desenhos foram ao longo de sua evolução perdendo alguns traços mais representativos das figuras retratadas e tornaram-se uma simples convenção de escrita. As letras do nosso alfabeto vieram desse tipo de evolução.

    Como representante desse raciocínio, temos o formato atual da letra A. Sua história nos indica que, segundo Zatz (2002, p. 42), em algumas línguas faladas por povos de antigamente (hebreus, assírios, arameus, fenícios e árabes), a palavra ALEF significava BOI. No início, era escrito conforme a primeira ilustração na Figura 5, mas depois o desenho foi se transformando:

    Figura 5 – Ideogramas

    Fonte: Zatz (2002, p. 42).

    A partir dessa ideia, os gregos passaram a usar esse desenho, representando o som A e não o significado de boi, sendo a primeira letra grega o alfa, escrito desta maneira: α. Assim, Zatz (idem) nos mostra como nasceu a letra A da forma como a utilizamos na escrita atual:

    Figura 6 – Evolução gráfica da letra A

    Fonte: Zatz (2002, p. 42).

    Dehaene (2012, p. 209-210) sintetiza esse percurso, afirmando que:

    Desde os primeiros artistas que desenharam em Lascaux as cabeças muito realistas de um touro até os escribas do Sinai, que reduziram esta cabeça a uns poucos traços, enfim, até os escrivães fenícios e gregos que extraíram dali a forma da letra A, a escrita evoluiu em direção a um jogo de caracteres simplificados, susceptíveis de serem imediatamente reconhecidos pelos neurônios especializados do córtex occípito-temporal ventral esquerdo.

    A humanidade inaugurava a fase alfabética da escrita, democratizando o acesso ao código escrito por meio do ensino das letras do alfabeto.

    Conforme disposto por Dehaene (idem, p. 208), estudos explicitam que os primeiros traços de uma escrita alfabética datam de 1.700 anos antes de nossa era. A fase alfabética, caracterizada pelo uso de letras, tem, portanto, origem nos ideogramas, que foram gradativamente perdendo o valor ideográfico, conduzindo a uma nova função de escrita: a representação puramente fonográfica. O valor pictórico do ideograma acabou por ceder lugar à representação fonética.

    Contudo, até chegarmos ao alfabeto atual, a escrita foi sendo modificada nos diferentes povos. Dehaene (idem, p. 210) complementa:

    Em Ugarit, na costa Síria, as inscrições do século XVIII antes de nossa era utilizavam um alfabeto cuneiforme de trinta signos: o princípio alfabético, então inventado, parece ter sido adaptado à tecnologia da escrita sobre tabuletas de argila. O alfabeto semita, diretamente ou não, provocou o nascimento de todos os grandes alfabetos do planeta: o fenício e, a partir daí, o grego, o cirílico, a escrita latina e, provavelmente, todas as escritas da Índia, mas, também, a escrita hebraica, que permaneceu sem modificações até nossos dias; enfim, a escrita aramaica e, por esse viés, o árabe e seus 200 milhões de leitores usuais.

    Nessa direção, Cagliari (2005, p. 109) aponta: primeiro surgiram os silabários, que consistiam num conjunto de sinais específicos para representar cada sílaba. Os fenícios utilizavam sinais da escrita egípcia, escrevendo o som consonantal. Foram os gregos, segundo Cagliari (idem, p. 110), quem adaptaram o sistema de escrita fenícia, ao qual juntaram as vogais, uma vez que, em grego, as vogais têm uma função linguística muito importante na formação e no reconhecimento das palavras. Dehaene (2012, p. 211) complementa essas ideias, afirmando:

    Com o alfabeto, os gregos passaram a dispor, enfim, pela primeira vez, na história da humanidade, de um inventário gráfico completo e mínimo das classes de sons de sua língua. Os símbolos da escrita não representavam mais os elementos de significado, nem mesmo sons complexos como sílabas inteiras. Sem o saber, os gregos haviam descoberto as classes das menores unidades sonoras da língua falada, os fonemas, e conceberam uma notação escrita capaz de transcrevê-los todos.

    Cagliari (2005, p. 110), corroborando o autor supracitado, acrescenta:

    Assim, os gregos, escrevendo consoantes e vogais, criaram o sistema de escrita alfabética. A escrita alfabética é a que apresenta um inventário menor de símbolos e permite a maior possibilidade combinatória de caracteres na escrita. Posteriormente, a escrita grega foi adaptada pelos romanos, e esta forma modificada constitui o sistema alfabético greco-latino, de onde provém o nosso alfabeto.

    No plano ontogenético, conforme pesquisas levadas a cabo por Luria (1994), em uma etapa incipiente de apropriação da linguagem, com relação à percepção das palavras pela criança pequena, a palavra não suscita, absolutamente, uma referência material precisa e ainda não tem uma sólida função significativa, provocando, antes, apenas gestos e atos da criança que pouco se distinguem de outros sinais (idem, p. 31). Gradativamente, em virtude da comunicação oral com os adultos e com os coetâneos desde o primeiro ano de vida, a palavra começa a distinguir traços dos objetos, constituindo um autêntico sistema de sinais, mas, apesar de traduzir um avanço no processo de significação do mundo, ainda não significa o objeto determinado, e sim um traço dele.

    Assim, uma mesma palavra pode representar vários objetos, pois o significado ainda não é estável nesse momento do desenvolvimento. Conforme Luria (idem), a palavra besouro pode se referir à barata, por exemplo. O autor complementa sua ideia colocando que as primeiras palavras que surgem na criança não significam objetos precisos e, por conseguinte, ainda não têm nítida referência material. Tais referências são produtos de desenvolvimento (idem, p. 31) – desenvolvimento este originado nas relações sociais estabelecidas.

    No final do segundo ano de vida, e em condições sociais de desenvolvimento, o caráter difuso das palavras é substituído por uma estrutura diferenciada e, de acordo com Luria (idem, p. 33), as palavras assumem um significado estável mais determinado e começam a designar objetos e ações. O que isso significa para o desenvolvimento linguístico da criança? Significa a ampliação de seu vocabulário, pois ela necessitará agora de um número maior de palavras diferenciadas para designar diferentes objetos. Além disso, o surgimento da palavra morfologicamente¹ diferenciada conduzirá a inserção da criança em um sistema de códigos linguísticos pertencentes ao idioma falado, libertando a palavra dos elementos prosódicos e paraverbais, tais como: situações, gestos, entonação etc.

    Nesse percurso de desenvolvimento da linguagem, chegamos ao momento no qual a criança, por volta de 3-4 anos, demonstra interesse pela forma da palavra, podendo até mesmo inventar novos vocábulos a partir de sua peculiaridade morfológica. Então, temos os interessantes episódios de crianças construindo palavras e conservando os traços concretos do objeto. Como exemplo, resgatamos na literatura brasileira as proposições do personagem Marcelo, da obra de Ruth Rocha (1999), mantendo-se refém dos traços concretos dos objetos ao propor nomes, tais como: sentador para cadeira; cabeceiro para travesseiro; entre outros.

    Destacamos também exemplos reais, como o episódio de uma criança que, ao pedir emprestada a régua de sua mãe, diz-lhe que a devolverá depois de reguar, garantindo, nesse momento, o caráter da ação de medir por meio da conservação morfológica da palavra régua. Ratificando essa ideia, Luria (1994, p. 33) aponta que "é justamente nesse período que surgem palavras infantis, como: aviãodor (em vez de aviador), batelo (em vez de martelo), cachorrãozão (em vez de cachorro grande), etc."

    Segundo Luria (idem), a referência material da palavra e seu significado concreto tornam-se necessidades no processo de assimilação da linguagem pela criança. E, aos 3-5 anos, tem-se como questão central "o fato das palavras continuarem tendo caráter concreto (idem, p. 34). A necessidade da relação das palavras com sua representação concreta conduz a criança à interpretações equivocadas na compreensão do sentido figurado das palavras, conforme exemplo citado por Luria (idem, ibidem): a inesperada reação da criança à expressão ‘ela se deitou com as galinhas’ através da réplica: não, elas beliscam".

    Ou, ainda, exemplos de situações reais ocorridas, como quando uma professora de educação infantil, no início do ano letivo, com o objetivo de mostrar os ambientes existentes na escola, passeia com seus alunos por todos os lugares, conversando sobre quem trabalha em cada local, o que faz, qual o seu nome etc. Ao se depararem com a cozinha, a professora questiona se as crianças saberiam o que estaria escrito no letreiro acima da porta e, imediatamente, sem titubear, elas respondem em coro Suzete! – o nome da merendeira da escola, já conhecida por muitos daquela turma. Contudo, a palavra escrita no letreiro da porta da cozinha era refeitório.

    Outro ponto interessante dessa relação com a concretude representada pela palavra, nas crianças de 5-6 anos, é a constatação das palavras designadoras de objetos concretos como sendo aquelas a serem realmente consideradas, passando depois a levar em conta as ações e, ao dominar a leitura e a escrita, começam a discriminar todos os componentes do discurso. Nas palavras de Luria (idem, p. 34):

    Assim, nas primeiras etapas a criança separa e conta apenas algumas unidades semânticas substantivas ou concretas, omitindo os verbos e as palavras secundárias (por exemplo, na frase mamãe foi ao bosque conta apenas duas palavras: mamãe e bosque); em seguida separa as palavras que designam objetos e ações, mas omite as palavras secundárias (por exemplo, discriminando mamãe – foi–- ao bosque) e somente dominando a arte de ler e escrever começa a discriminar todos os componentes do discurso.

    A partir do momento de assimilação do significado da palavra em sua referência material, ocorrem processos complexos de desenvolvimento interno da estrutura semântica da palavra, bem como complexos processos de desenvolvimento do psiquismo infantil, à medida que a linguagem é apropriada. Tais processos são, conforme Vigotski (VYGOTSKI, 1995), eminentemente sociais, passando pela aquisição do vocabulário por meio dos domínios articulatórios e semânticos das palavras.

    Portanto, podemos afirmar a importância da aprendizagem da linguagem para o desenvolvimento do pensamento, pois a palavra inclui as coisas do mundo em uma relação conceitual para além da percepção, em concordância com Luria (idem, p. 35):

    Cada palavra de uma língua evoluída oculta um sistema de ligações e relações nas quais está incluído o objeto designado pela palavra e de que cada palavra generaliza e é um meio de formação de conceitos, noutros termos, deduz esse objeto do campo de imagens sensoriais e o inclui no sistema de categorias lógicas que permitem refletir o mundo com mais profundidade do que o faz nossa percepção. Ao dizermos faca, introduzimos esse objeto na categoria de instrumentos; ao dizermos árvore, designamos um sistema de ligações do qual esse objeto faz parte.

    Diante dessas afirmações, enaltecemos a estrutura semântica da palavra carregada de conceito, pois este, por sua vez, movimenta o pensamento enquanto aprofunda e amplia as próprias relações semânticas. Daí decorre a importância do ensino como propulsor de desenvolvimento pela transmissão de um conjunto de conhecimentos dentro de um sistema de relações lógicas – relações estas integrantes do complexo desenvolvimento da humanidade como um todo, devendo ser alcançado por todos os representantes do gênero humano. Então, segundo Luria (idem, p. 37), se nas etapas inferiores de desenvolvimento predominam no homem as relações direto-figuradas, nas etapas mais desenvolvidas de desenvolvimento cabe posição determinante aos complexos sistemas de relações lógicas. A esse respeito, o autor destaca:

    Eis por que nas crianças de idade pré-escolar predominam nitidamente as reações figurado-emocionais latentes na palavra, predominando nos alunos do primário relações diretas concreto-figuradas e circunstanciais, e relações lógicas complexas nos alunos do curso superior e nos adultos. Assim, a palavra venda ou mercearia suscita na criança de idade pré-escolar várias emoções (pão quente, bombons gostosos), na criança de idade escolar, uma situação prática direta (tipo de casa comercial, balconistas, prateleiras com mercadorias, estabelecimento, compradores que entram e saem), provocando na pessoa adulta e bem-preparada os conceitos de produção e distribuição, às vezes o conceito de sistema capitalista e socialista, etc. Esse fato sugere a profunda mudança da estrutura do significado da palavra (conceitos) [idem, ibidem].

    Como pudemos observar, a evolução intelectual é resultado de mudanças profundas na aquisição e uso da estrutura semântica lógico-verbal, produzindo transformações qualitativas na relação do homem com o mundo. Ainda, de acordo com Luria (idem, p. 38), o homem reflete e toma consciência do mundo de diferentes modos em cada etapa do desenvolvimento. Isso significa a relação direta entre a estrutura do significado da palavra e a estrutura da consciência. Aprendemos a entender o mundo e a agir nele por meio da consciência, estruturada semanticamente de maneira direto-figurada (prática) ou lógico-verbal (abstrata).

    Nesse sentido, urge-nos planejar o ensino de conceitos aptos a assegurarem o desenvolvimento do pensamento lógico-verbal. Essa é uma prerrogativa dos conceitos científicos. Trata-se de introduzir as crianças em um sistema de categorias lógicas mais genéricas, a fim de não apenas descreverem o entorno, mas explicá-lo, entendê-lo e, por consequência, transformá-lo de maneira crítica e com criatividade. Contudo, para se conseguir esse avanço é necessário começar desde cedo, ou seja, na educação infantil, com a construção de uma relação consciente da criança com a linguagem, sendo esta realizada na oralidade e na escrita, bem como com o cálculo, para a efetivação de fato de um ensino desenvolvente. O que se coloca em foco não é outra coisa senão os vínculos existentes entre o desenvolvimento do psiquismo, tanto no plano filogenético quanto ontogenético, e o desenvolvimento das capacidades de leitura e escrita. A esse respeito, Vigotski forneceu contribuições ímpares sobre as quais versaremos nos itens que se seguem.

    2. O desenvolvimento psíquico em suas relações com a apropriação de signos

    As abstrações alcançadas com a apropriação da palavra – tanto falada quanto escrita – a tornam representante e portadora de transformações infindáveis no modo como pensamos o mundo. O signo linguístico, especialmente na significação trazida pelo significado, une pensamento e linguagem, transformando-se em fator irrefutável de qualificação de nossas funções psíquicas. Diante dessas considerações e da importância da apropriação da linguagem, anuentes com Petrovski (1985 apud MARTINS, 2009, p. 65), declaramos:

    A linguagem é um sistema de signos verbais, decisivamente operante na atividade intelectual, uma vez que dele depende o desenvolvimento das funções psicológicas superiores (percepção, memória, pensamento, etc.). A consciência humana é primordialmente linguística, dado fundante da afirmação vigotskiana segundo a qual todo pensamento é verbal, ou seja, da proposição da linguagem como instrumento essencial do pensamento.

    Decorrem dessas considerações questões de ordem teórica e didática em relação ao ensino da leitura e da escrita:

    •Qual o melhor método para alfabetizar uma criança?

    •Qual a relação entre pensamento e linguagem?

    •Como ensinar a leitura e a escrita em toda a sua complexidade, assegurando sua unidade fonológica e semântica?

    •Quais tarefas geram a necessidade da leitura e da escrita e tornam-se motivos para aprendê-las?

    Essas e outras indagações têm sido objeto de preocupação, estudo e pesquisa por parte de muitos educadores. Além disso, há o compromisso da escola com o desenvolvimento integral e integrado da criança, assegurando-lhe o domínio, entre outros saberes, da leitura e da escrita como instrumentos de poder social, mas também como instrumentos de transformação de seu psiquismo.

    Nessa direção, elegemos a teoria soviética da escola de Vigotski a fim de aclarar o desenvolvimento psicológico da criança, pois, de acordo com Mukhina (1995, p. 1), essa vertente teórica se apoia na tese marxista acerca da ‘herança social’ das qualidades e faculdades psíquicas. Tal visão está fundamentada no materialismo histórico-dialético, exaltando a experiência social humana e sua condicionalidade no desenvolvimento dos indivíduos. Trata-se, portanto, do reconhecimento de que os homens se produzem como seres humanos nas relações sociais estabelecidas, sendo criadas as condições necessárias à edificação de suas mais complexas capacidades. Mas, da mesma forma, produzindo também inúmeras situações impeditivas para que tais capacidades se tornem representativas de todos os indivíduos, incluindo o pleno domínio da leitura e da escrita.

    Sobre esse domínio, partimos de uma questão mais ampla: a escrita e sua apropriação pela criança mantêm estreitas e dependentes as relações com a natureza da linguagem, e essa é, antes de tudo, uma função psíquica das mais complexas, cujo funcionamento se relaciona com outras funções psíquicas, especialmente com o pensamento. Acerca dessa questão, Martins (2013, p. 168) esclarece:

    Segundo Vygotski (1995), o desenvolvimento da linguagem representa, antes de tudo, a história da formação de uma das funções mais importantes do desenvolvimento cultural, na medida em que sintetiza o acúmulo da experiência social da humanidade e os mais decisivos saltos qualitativos dos indivíduos, tanto do ponto de vista filogenético quanto do ontogenético.

    Conforme Vigotski (VYGOTSKI, 1995)², para além de a escrita ser tratada, equivocadamente, como um hábito motor complexo ou como um problema de desenvolvimento muscular das mãos e limitar-se ao traçado das letras, ela constitui-se como um sistema especial de símbolos e signos cujo domínio significa uma mudança crítica em todo o desenvolvimento cultural da criança (idem, p. 183-184). O autor ainda complementa sua ideia afirmando que: o domínio da linguagem escrita significa para a criança dominar um sistema de signos simbólicos extremamente complexos.

    Dessa forma, a apropriação da escrita pela criança não se limita à aprendizagem de sons e letras, como simples soletração, devendo ser compreendido o seu processo histórico, a sua origem na humanidade e as suas relações para converter-se nesse poderoso meio cultural. Bajard (2012, p. 11) enaltece essa perspectiva, validando tal processo de apropriação como a conquista de uma nova linguagem, e não como o domínio de um código de transposição recíproca entre letras e fonemas.

    Nesse sentido, concordamos com as proposições desse autor, ao afirmar em seu trabalho a proposição da exploração, pela criança, de toda a extensão do território da escrita, levando em conta todos os seus códigos, mesmo aqueles sem correspondência na oralidade, por exemplo, os espaços em branco, a caixa dupla (minúscula e maiúscula) ou a pontuação (idem, p. 12).

    Além disso, a escrita precisa ser entendida como um processo de aprendizagem de um amplo sistema de desenvolvimento das funções psíquicas ao longo do percurso histórico-cultural da criança. Nessa direção, precisamos levar em conta a necessidade de expressão e comunicação da criança, pois, conforme enfatiza Martins (2008, p. 51), é fundamental que toda e qualquer linguagem aconteça, de fato, como busca de expressividade pessoal, e não como adequação a estereótipos.

    Sobre esse processo, a referida autora destaca o trabalho dos adultos no oferecimento de recursos condizentes com a necessidade de expressão da criança, ora adiantando-se a elas, para motivar sua aprendizagem, ora correspondendo a seus anseios, na medida em que as crianças perguntam como se escreve isto, como se escreve aquilo (idem, p. 21).

    Todavia, para entendermos o processo de desenvolvimento psíquico, é necessário compreender a relação do homem com a natureza que, segundo Leontiev (s/d.), radica na experiência histórico-social acumulada pela humanidade. Tal experiência, conforme acrescenta, é resultado do papel criador, construtor e transformador do mundo circundante. Segundo o autor, a linguagem apresenta-se como uma criação da humanidade a partir de necessidades historicamente produzidas: a necessidade de domínio sobre outro, de comunicação, de assimilação da experiência histórico-cultural e de instrumento do pensamento com o objetivo de estabelecer relações sociais para o atendimento de tais necessidades – e essas derivaram do trabalho coletivo dos homens, dando origem à linguagem, reconfigurando o cérebro humano (ENGELS, 1986).

    Nesse sentido, o trabalho, consubstanciado pelas relações sociais, como atividade ligada às necessidades históricas aqui antes relacionadas, conduz o homem a não subordinação e adaptação ao meio, e sim, ao contrário, produz possibilidades de transformá-lo criativamente (LEONTIEV, 1978). Para esse autor (idem, p. 270), o homem se emancipa, não por adaptação individual, mas sim pela reprodução, nas propriedades do indivíduo, das propriedades e aptidões historicamente formadas da espécie humana, constituindo-se como processo de interiorização humana. Assim, ao se apropriar das objetivações sociais, cada indivíduo adquire instrumentos para a transformação da realidade.

    Nesse processo de transformação da natureza, por meio da atividade e do trabalho, são estabelecidos vínculos entre os homens, produzindo condições sociais de vida específicas. Assim, cada criança, ao nascer, depara-se com instrumentos materiais (objetos circundantes, prédios, máquinas etc.) e psicológicos (linguagem, ciências, arte etc.) já objetivados pelo seu entorno, colocando-se, dessa forma, sempre adiante da natureza. Disso decorre o fato de o psiquismo humano buscar compreender a realidade ao seu redor, apropriando-se dos objetos e conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade. Esse fato se dá por

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