O jogo: Entre o riso e o choro
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Sobre este e-book
Alcides Scaglia
Professor de educação física,
mestre e doutorando em educação física pela Unicamp
Leia mais títulos de João Batista Freire
Pedagogia do futebol Nota: 5 de 5 estrelas5/5O jogo de bola na escola: introdução à pedagogia da rua Nota: 0 de 5 estrelas0 notasA graça do jogo Nota: 0 de 5 estrelas0 notas
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- Nota: 5 de 5 estrelas5/5De linguagem acessível e incrivelmente reveladora, João Batista Freire trata o jogo nos mais diversos contextos e possíveis significados, de forma leve e instigante para este (a) quem for.
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O jogo - João Batista Freire
fato.
CAPÍTULO • UM
O JOGO INEVITÁVEL
O tempo de brincar nunca passa, lembrando que o humano é sempre criança, e o futuro é o espaço de crescer, de ir adiante. As marcas da idade na pele do rosto não apagam o jovem que sempre teremos que ser. As tristezas contam suas histórias nas rugas da fronte, mas os risos continuam brincando nos vincos profundos ao redor dos olhos e da boca. Passado tanto tempo, as brincadeiras não nos abandonam. O jogo é o humano dos nossos corpos tão vividos e ainda toma conta do nosso destino. Se as pernas nos faltam, não nos falta a imaginação, e continuamos seguindo para aquele adiante que é o inatingível ponto de chegada de todo animal que se fez humano.
Se antes eram os campos de futebol, agora são os tabuleiros, os livros, os vídeos e, principalmente, a imaginação que nos alegram. Mãos e imagens, sempre ágeis, deslocam as peças de mil novos jogos descobertos ou redescobertos pela paciência jovem da velhice. Divertimo-nos relembrando os folguedos de infância, alguns, do tempo em que éramos pouco mais que bebês, extraordinariamente vivos mesmo agora quando a pele um tanto envelhecida do corpo se dobra caprichosamente em sulcos e curvas. Algo extraordinário acontece a muitos de nós nesta idade madura: o mundo arrebatador do jogo, que nos tragava irresistivelmente durante nossa meninice, volta a chamar-nos, mais irresistível que nunca. O Senhor do Jogo procura, aos poucos, ser novamente o senhor dos nossos atos.
O SENHOR DO JOGO
No começo de nossa vida o jogo nos guiava como uma divindade: absoluto, mas pouco percebido. Nem sabíamos que jogávamos. Por pouco não nos esquecíamos de voltar ao mundo real e ficávamos à mercê do Senhor do Jogo para sempre. Nem sei como lhe escapamos. Depois, veio o amadurecimento e o jogo acalmou-se, ficou um tanto morno, meio esquecido, porém, sempre à espreita. E agora, nessa última fase da vida, volta a ser arrebatador, como se não houvesse mais motivos disponíveis para se esquivar de jogar ou de ser jogado.
Há um tempo que passa muito depressa para todas as pessoas. Temos dois tempos na nossa vida, esse que passa muito depressa, que é o tempo das tarefas reais, das coisas novas para aprender, do trabalho para fazer, que é previsível, cronometrado, sempre ajustado, Khrónos, e o tempo do eterno, o tempo sem tempo, em que as coisas do real se perdem, kairos (ALTARRIBA, 1998). Igual quando a gente sonha e parece que sonhou horas a fio, e acorda e vê que dormiu há pouco. E agora, se sonhamos, dormindo ou acordado, é do sonho que não queremos sair, que nem quando criancinha, e só porque alguma coisa muito forte nos puxa para o lado de cá é que ainda escapamos do Senhor do Jogo. E se um dia não voltássemos mais? Pois não foi isso que aconteceu naquele livro chamado A história sem fim? (ENDE, 1985).
O personagem central do livro, Bastian, empenhava-se na tarefa de reconstruir Fantasia, o mundo da imaginação humana, que tinha sido quase completamente destruído pelo Nada, uma peste avassaladora que esvaziava de sonhos e esperanças as pessoas e as controlava depois de vazias. Para levar a cabo sua obra Bastian deveria realizar seus desejos. O que ele desejava, em Fantasia construía-se de imediato. Só que havia um limite para os desejos e era preciso guardar, por último, o de voltar ao mundo humano, de onde ele saíra. Nas suas viagens, passou por uma cidade em que as pessoas se comportavam como loucas, usavam abajures sobre a cabeça e barbeavam espelhos. Ao único ser vivo lúcido que encontrou, um macaquinho, Bastian perguntou o que faziam aquelas pessoas. O símio explicou-lhe que, no princípio, não queriam voltar para seus mundos, mais tarde, não podiam mais. Gastaram todos os desejos. Haviam se esquecido de seu mundo. A sedução de Fantasia tomara-os para sempre.
Quando Bastian finalmente conseguiu voltar para a realidade, usando seu último desejo, teve com o Sr. Koreander, o livreiro que lhe emprestara para ler A história sem fim, a seguinte conversa, depois de lhe contar suas aventuras em Fantasia:
– Então, acredita em mim? – perguntou Bastian.
– É claro! – respondeu o senhor Koreander – Qualquer pessoa sensata acreditaria em você.
– O senhor é muito simpático – comentou Bastian – Nunca pensei.
– Há pessoas que não podem ir a Fantasia – disse o senhor Koreander – e há pessoas que podem, mas ficam lá para sempre. Porém há outros que vão a Fantasia e regressam. Como você, Bastian. E são esses que devolvem a saúde aos dois mundos [ENDE, 1985, p. 390].
Há o risco, mas é justamente aí que reside boa parte do prazer de jogar aquele jogo de ir e voltar de Fantasia. E, de qualquer maneira, podemos conhecer o segredo de não nos perdermos de vez por lá: basta saber quando se esgotam os desejos e conservar o último para regressar. Há mais prazer nesse ir e vir que em ficar de vez em um dos lados. E, além disso, podemos sempre acreditar no Sr. Koreander: os dois mundos, o real e Fantasia, dependem de gente que joga, como todos nós que nunca abdicamos disso, para continuar existindo. Assim como Bastian, podemos correr o risco de ir cada vez mais longe em Fantasia.
A grande diferença entre o agora e nossa meninice é que, atualmente, quase sempre sabemos que estamos jogando e quando meninos, quase nunca sabíamos que jogávamos. Hoje, de posse da racionalidade que não possuíamos como crianças, podemos fazer também das lembranças de nossa infância um jogo.
Depois de descobrir que podemos resistir ao Senhor do Jogo se conservarmos alguma lembrança do mundo real e mantivermos intacto o desejo de retornar, podemos passar a dedicar nossas vidas ao que mais gostamos de fazer, desde que nascemos: jogar.
Não sei dos jogos de vocês, nem dos de hoje nem daqueles de suas infâncias. Sei dos meus e dos que posso observar, principalmente nas crianças. Claro que, para exemplificar as coisas que digo, usarei da minha experiência, tanto a que tenho como jogador obsessivo, como a que me deu a vida de professor. Mas insisto: tomem o tempo de suas vidas mais maduras jogando, conhecendo o Senhor do Jogo e arriscando-se a ser seduzidos por ele.
QUANDO ME ADIANTEI AO TEMPO
Um dos jogos que mais me divertem é imaginar-me novamente criança brincando daquelas brincadeiras de fazer de conta ou de jogar bola, sozinho ou com meus colegas de infância.
A mãe e o pai ficavam cismados quando eu contava as histórias do tempo em que tinha sido moleque. Entre os outros moleques da rua eu usava calça curta e boné listrado, andava de carrinho de rolimã ladeira abaixo e empinava pipa, dizia palavrões e brigava de tirar sangue do nariz dos outros. A mãe olhava-me como se olha para um doido, mas logo se recuperava e dizia que era coisa de criança, e mandava-me parar de falar bobagens, eu só tinha três anos e ela nunca deixaria que ficasse moleque daquele jeito. Era difícil entender que os adultos não acreditassem numa coisa tão verdadeira. Pois se eram tão vivas as lembranças daquele tempo em que eu já havia sido moleque!
Tão pequeno ainda, tão convencido de que dizia a verdade, era como se estivesse totalmente à mercê do Senhor do Jogo. Indefeso ante a sedução do jogo, era de espantar que voltasse ao mundo real em que moravam meus pais. Com menos de três anos de idade, não havia racionalidade consistente ainda para me manter ancorado à realidade. E, no entanto, não vemos crianças loucas, mas apenas crianças que fazem coisas como eu fazia quando afirmava ter sido moleque e que eram encaradas como bobagens pelos mais velhos. Fossem os adultos fazer em público as coisas que os pequenos fazem e seriam presos ou internados como insanos. Mas se eu não possuía dispositivos para estar ancorado por conta própria ao real, havia pessoas à minha volta que o faziam para mim e me chamavam de volta para a realidade. Ao longo do tempo, tive de criar tais dispositivos, para não ser aprisionado de vez pelo Senhor do Jogo.
Se me perguntassem se aquilo que dizia era um jogo, ou melhor, se era de mentirinha, certamente diria que não, pois tratava-se de uma coisa séria. A percepção, mais que a racionalidade, que distingue o jogo de outras atividades humanas, ainda é incipiente nos mais pequenos. Eles demoram algum tempo até fazer alguma distinção a respeito disso. A alternância entre aparência e realidade, essa …modalidade de vaivém só se manifestaria numa fase tardia da infância (aos 4 anos), quando ocorre uma transição do
jogo interpretativo para o
jogo representativo" (BUYTENDIJK, 1974, p. 67), e quando a criança sabe distinguir as ilusões e as fantasias da realidade.
As crianças maiores e, principalmente, os adultos, distinguem com relativa facilidade quando uma pessoa está jogando, bastando observá-la. Não nos enganamos quanto a isso, apesar de ser tão complexo explicar o que é o jogo (e não só o jogo). É notável nossa capacidade de percepção das coisas a um simples olhar. Somos capazes de, numa multidão de pessoas tão diferentes umas das outras, afirmar que são todas seres humanos. Saber não é necessariamente saber