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Cinzas do Passado: cultura material, riqueza e escravidão no Vale do Paraopeba/MG (1831/ 1914)
Cinzas do Passado: cultura material, riqueza e escravidão no Vale do Paraopeba/MG (1831/ 1914)
Cinzas do Passado: cultura material, riqueza e escravidão no Vale do Paraopeba/MG (1831/ 1914)
E-book382 páginas4 horas

Cinzas do Passado: cultura material, riqueza e escravidão no Vale do Paraopeba/MG (1831/ 1914)

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Sobre este e-book

Este livro convida o leitor a acompanhar um vigoroso debate entre os historiadores da sociedade escravista mineira em torno da suposta decadência econômica da região aurífera ao final do século XVIII. Estariam aí as causas da futura dispersão econômica da região, o "apego" à mão de obra cativa e as dificuldades de crescimento e modernização vividas já na última década do século XIX? Durante todo o tempo, o leitor se vê diante de um quadro comparativo amplo em que o estudo de caso dialoga com os resultados consolidados de pesquisas sobre outras Províncias. Trata-se ainda de uma narrativa clara e estimulante que, certamente, interessará não só a especialistas, mas também a um amplo público.
IdiomaPortuguês
EditoraEDUEL
Data de lançamento20 de nov. de 2018
ISBN9788572169899
Cinzas do Passado: cultura material, riqueza e escravidão no Vale do Paraopeba/MG (1831/ 1914)

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    Cinzas do Passado - Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez

    Paulo

    Agradecimentos

    Primeiramente, gostaria de mencionar que estou envolvida com a história do Vale do Paraopeba desde 1996, quando, ao final da minha graduação em História, concluída na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), me mudei para Bonfim (MG), com a finalidade de coordenar um projeto subsidiado pela Prefeitura Municipal daquela cidade. Projeto esse que resultou, depois de dois anos de trabalho, na criação da Casa de Cultura e do Arquivo Municipal. A documentação cartorária − principalmente os inventários post-mortem − recolhida dos porões dos cartórios das cidades de Bonfim, Piedade dos Gerais, Crucilândia, Rio Manso e outras localidades circunvizinhas revelou um mundo inimaginável para mim, jovem e recém-ingressa no ofício de historiadora. Toda uma cultura material fortemente alicerçada na escravidão sobressaía das páginas amarelecidas pelo tempo. Fazendas centenárias, sobrados com suas janelas envidraçadas, mobiliários sofisticados (como cantoneiras de mármore, sophas ingleses, canapés), joias e lenços adamascados eram arrolados e avaliados pelos louvados − os avaliadores − paralelamente, ao lado das rodas de fiar algodão, teares, monjolos, engenhos de cana, carros de bois e, claro, das senzalas com seus escravos. É esse mundo material, fortemente marcado pelo ritmo da escravidão, que originou o estudo que ora se apresenta em forma de livro.

    O trabalho intelectual demanda tempo, precisa de maturação. Não se faz uma pesquisa teórica e documental de um dia para outro. Ao lado das inúmeras informações, fontes, documentos, imagens, métodos e teorias, vamos congregando, ao longo da caminhada, amigos e pessoas; se algumas são incorporadas, outras, involuntariamente, partem de nossas vidas. É preciso falar das perdas. Por isso, devo começar meus agradecimentos lembrando-me saudosamente da minha orientadora, a Professora Dra. Eni de Mesquita Samara. Ela orientou e conduziu não só este trabalho, mas toda a minha pós-graduação. O seu falecimento prematuro deixou a todos nós – alunos, orientandos, colegas de trabalho, amigos e familiares – um sentimento de perplexidade e muita consternação.

    Além das preciosas orientações da mestra Samara, tive o apoio do professor Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses, que vem me acompanhando com a indicação de bibliografia e caminhos a seguir. Vânia Carneiro de Carvalho, João Antônio de Paula e Horacio Gutiérrez foram também leitores e arguidores do trabalho e muito colaboraram para que esta pesquisa chegasse ao termo que aqui se apresenta.

    A trajetória acadêmica também me trouxe José Newton Coelho Meneses, que faz o prefácio deste livro. Hoje, além do fascínio pela história do qual partilhamos, nasceu, também, uma bela e sincera amizade. E Vânia Carneiro de Carvalho, leitora crítica de outros trabalhos, apresenta ao leitor comentários e análises que compõem a orelha da obra.

    Agradeço igualmente à Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP) pelos quatro anos de bolsa, sem os quais a realização da pesquisa documental nos arquivos, museus e bibliotecas de Minas Gerais e São Paulo não teria sido possível.

    Agradeço imensamente aos mestres das duas Universidades que me formaram e contribuíram para que nunca desistisse de ser uma historiadora. Da Universidade Federal de Minas Gerais sou grata, em especial, aos professores Caio César Boschi, Regina Duarte Horta, Clotilde Andrade Paiva e Douglas Cole Libby. Na Universidade de São Paulo, tive a oportunidade de aprender com Laura de Mello e Souza, Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses e Fernando Novais, mestres que, até hoje, são meus guias.

    A minha gratidão pelo atendimento cuidadoso e competente se estende aos funcionários das seguintes instituições: Arquivo Municipal de Bonfim/MG, Arquivo Público Mineiro, Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina/SP (CEDHAL), Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional de Minas Gerais/MG (CEDEPLAR), Museu da Casa Brasileira/SP, Museu Paulista e Museu do Escravo, em Belo Vale/MG.

    Aos colegas do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL)/PR sou grata pela convivência afável e pela amizade, especialmente a Célia Regina da Silveira, Edméia Ribeiro, Cristiano Simon, Zueleide de Paula, Rogério Ivano e André Joanilho.

    A Simone Válio pela revisão atenta e eficiente que se dispôs a fazer em tempo recorde. A Maria das Graças de Freitas Marques agradeço o auxílio na pesquisa realizada com os inventários post-mortem, no Arquivo Municipal de Bonfim.

    À Editora da Universidade Estadual de Londrina (EDUEL) e seus pareceristas, que aceitaram a publicação deste trabalho − alguma validade, acredito, ele há de ter.

    Aos amigos que a vida me deu e o tempo tratou de consolidar: Miriam Hermeto de Sá Motta, Danieli Aramuni Resende, Ismênia Spínola Truzzi Tupy, Fernanda Mendonça Pitta e Roger Domenech Colacios.

    Aos meus pais, Catarina e Geraldo, que são para mim fonte de inspiração e amor − eles me ensinaram a nunca desistir. Ao meu irmão Flávio, a minha cunhada Núbia e a meu sobrinho Flavinho agradeço o afeto seguro.

    Ao Paulo, a presença carinhosa, a troca de ideias e o apoio incondicional foram fundamentais em todos os momentos desta viagem...

    Por fim, não posso deixar de expor uma faceta curiosa que envolve a elaboração deste, agora, livro. Desde minha infância estive a correr pelos vales e montanhas do Vale do Paraopeba. Frequentei fazendas e sítios, nadei em rios... Quase toda a pesquisa foi por lá realizada nos arquivos, bibliotecas e museus já mencionados. No entanto, as páginas que se seguem foram escritas quando eu não mais morava em Minas Gerais. Com a minha mudança para o estado do Paraná, em agosto de 2001, o texto foi alinhavado à distância, fundamentado, evidentemente, nas fontes coletadas, mas marcado pelas reminiscências e, sobretudo, pela saudade. Diante disso, não posso deixar de mencionar Darcy Ribeiro, mineiro como eu, quando ele diz:

    Mais paixão por Minas temos nós, mineiros exportados, do que aqueles que ficaram lá dentro, curtindo e sofrendo a mineiridade. Temos, por isso, mais olhos que eles para ver Minas pintada ou retratada em fotos. Afinal, os mineiros, em Minas, têm a morraria e o casario para lamber com os olhos todo dia, o dia todo. Nós não. (RIBEIRO, 1996)

    Prefácio

    Ao aceitar o convite para prefaciar este livro de Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez, penso ser necessário praticar o exercício (não muito fácil) de conciliar crítica, reflexão teórica e amizade. Quem convida um prefaciador, incita-o a refletir criticamente sobre a produção textual de outro, de forma a evidenciar ao próprio autor novas visões sobre seu texto. O autor, a certa altura, perde-se de seu texto e o prefaciador o acode para achar-se no labirinto de sua própria criação. O leitor do livro, quase sempre, vem de roldão; na expectativa; desconfiado de que o texto do prefácio possa ser apenas um rosário de elogios ou um exercício teórico do autor do prefácio. As opções são segui-lo, como um fio condutor, ou negá-lo, da mesma forma conduzindo-se por essa negação. Às vezes, é mais salutar desistir de lê-lo e ir direto ao texto autoral, neste caso, uma excelente escolha.

    O alcance de um prefácio é limitado, na maioria das vezes. Creio que serve mais ao prefaciador, como exercício de crítica sintética, que ao autor e aos leitores. De alguma forma, entretanto, possibilita um sobrevoo curto sobre a obra e um olhar de relance sobre as interpretações e as perspectivas de análises autorais. Um bom prefácio é breve; é prelúdio, prenúncio, iniciação. Não pode ter a pretensão maior da verticalidade; deve se ater à superfície e permitir ao leitor os mergulhos.

    Este prefácio, então, pretende-se curto, como uma apreciação rápida de leitor atento que aflora uma possibilidade de leitura. O livro que a seguir se apresenta tem densidade conceitual, pesquisa acurada, crítica documental perspicaz, análises dialogadas e maturidade interpretativa. Desvela uma realidade local do Vale do Paraopeba, problematizando uma questão histórica relevante para uma amplitude espacial maior. O problema da autora instiga outros autores e ela, então, se abre a discuti-lo amplamente. Está apresentado, assim, o rosário elogioso. O prefácio tentará, ao largo dessa discussão que o leitor acompanhará no livro, problematizar a leitura feita e as perspectivas que sensibilizaram o prefaciador no cômputo geral de sua leitura.

    I

    Cinzas do passado! Cinzas do tempo! Tempo da História, de historiador! A História é disciplina ambígua, cambiante e o título do presente livro nos remete à complexidade dessa dinâmica do fazer histórico. Se a um tempo pressupõe desfazimento, perdas, mudança de patamares de riqueza em direção à pobreza, em outro nos apresenta a dinâmica temporal de uma Minas diversa com importâncias relativas de categorias sociais que compõem o jogo coletivo e se apegam à sobrevivência e à construção de poderes e de hierarquias móveis, renovadas e novas. O tempo desfaz e o tempo faz!

    As cinzas não se perdem ao vento! Ao contrário, são o sal da terra! Alimentam a produção de novas configurações sociais, novos padrões de materialidade. As cinzas são como no ritual católico de iniciação à Quaresma, a materialização do que foi e do devir.

    À primeira leitura, cinzas do passado podem denotar decadência, riqueza que se esvai, memórias que se perdem. Cláudia Marques Martinez toma cinzas como a não reivindicação de oferta de verdades sobre o passado paraopebense ou mineiro. Muito menos se acerca de certezas sobre a economia oitocentista das Gerais. O título da sua obra, assim, denota, mas não desvela, toda a economia; problematiza uma consistente amostra de riquezas locais que mudam, ressaltando um tempo que passou. A rigor, então, sob o olhar acadêmico, o título poderia suscitar críticas por sua ambiguidade; mas, ao contrário, ardilosamente estimula a dúvida e convida o leitor a acompanhar uma grande pesquisa, a crítica às fontes documentais e as interpretações feitas pela pesquisadora.

    No Vale do Paraopeba, dois tempos se apresentam em um: o tempo da produção local. Consolidado em um escravismo cristalizado, mudam-se formas de viver e de instrumentalizar a produção econômica porque a escravidão virou cinzas do passado. O homem do trabalho torna-se livre e a liberdade incorpora novas formas de produzir riquezas, que, no entanto, vêm acompanhadas de lembranças, de memórias do tempo escravista.

    II

    A riqueza dos homens e a escravidão de homens são elementos fulcrais no tratamento que a autora quer dar à singularidade da economia de Minas Gerais, quando comparada às outras províncias do Império brasileiro. Tal singularidade, no entanto, não se apresenta como uma distinção a-histórica, ao ponto de afastar a Província (e depois o Estado) da realidade contextual da qual ela é parte. A escravidão e a produção de riqueza não se fazem insulares, são parte de um contexto nacional, historicamente eivado de diversidade. Neste ponto é importante ressaltar o diálogo que Cláudia Marques Martinez faz com a produção historiográfica das últimas décadas no Brasil: o chamado apego à escravidão, por arcaísmo aristocrático ou pela inconsistente acumulação de capital, é reconsiderado de forma a apresentar a dinâmica econômica escravista mineira como uma possibilidade de estabilidade produtiva. E qual sociedade agrária, por excelência, abandonaria as chances de equilíbrio e permanência?

    Conservadorismo na dinamicidade econômica! A sociedade diversa, fortemente assentada em contingente escravo numeroso pela importação, pela reprodução natural e pela estabilidade na formação de famílias escravas estáveis, é capaz de miscigenar-se e, sobretudo, de produzir e comercializar produtos internamente, intraprovincialmente e externamente. Essas capacidades a habilitam para as mudanças de 1888.

    III

    O Vale do Paraopeba é espaço típico de uma Minas diversa; parte constituinte dela e assertivamente corrobora as interpretações das Gerais nos anos oitocentos. À produção de abastecimento interno, por si só produtora de riquezas, acresce-se uma capacidade comercial para fora, em contato de dupla mão que estimula o consumo e aquece o mercado.

    Economia agrária que não se basta a si, a mineração, as atividades mecânicas, o comércio, os serviços domésticos, as funções administrativas têm crescimento constante, o que, de certo modo, dá uma dimensão uniforme e específica ao quadro econômico relativo ao período na Província de Minas. O Vale do Paraopeba tem, assim, na opção conservadora pelo escravismo, total aderência à realidade do Brasil. Em suas especificidades, comunga da essência geral do qual faz parte.

    Nesse Vale, nos Oitocentos, as fiandeiras beneficiam o algodão e manufaturam tecidos, em associação simbiótica com os agricultores que abastecem de alimentos o mercado local e estimulam o comércio de gêneros no regional. Como Douglas Libby percebe em relação a Minas Gerais, a economia paraopebense tem dinâmica relacionada com um contexto maior que ela. Obviamente a Abolição da escravatura vai marcar essa economia que não é de subsistência; é comercial e escravista, é conservadora e busca o equilíbrio e a mudança lenta. Diante de 1888, das cinzas da escravidão surge uma forma de mudar memorialisticamente marcada pelos anos da economia com mão de obra cativa.

    IV

    O arame farpado cerca o que o muro de pedra, presente em resquícios e ruínas, também, busca cercar. Um e outro demarcam propriedade e espaços limites da produção. Demarcam tempos díspares. A mão do trabalhador continua a debulhar o milho que o debulhador americano desfaz com maior produtividade: a máquina necessita da mão livre para manivelar seu funcionamento; o instrumento de ferro batido substitui a mão escrava ao escravizar a mão livre. Mudança de tempos documentada pelas coisas. Permanência de práticas instrumentalizadas por outras coisas.

    A cultura material é tomada por Cláudia Marques Martinez, como quer Braudel, aderida a uma realidade da produção de sobrevivência. No entanto, a percepção dessa aderência é pouco para um bom historiador da materialidade, e Cláudia, como Daniel Roche, toma os elementos materiais da cultura como bons documentos que possibilitam pensar além da produção e do consumo: são essenciais para a compreensão dos fatos sociais. Como Arjun Appadurai, aquilata que para entender esses fatos é preciso mais que inventariar a cultura material: é necessário pensar sobre a materialidade em sua construção social. Como quer Vânia Carvalho, Martinez vê o artefato como documento, compreendido como um repertório de enunciados para os sentidos e os valores que instrumentalizam as práticas. Enfim, como Daniel Miller, não vê as coisas materiais apenas sob a perspectiva semiótica, em que elas denotam a economia, mas as toma como produtoras de uma economia específica. A cultura faz as coisas e as coisas fazem a cultura!

    Concebidos, pois, como matéria da História, as coisas, os elementos materiais da cultura, tornam-se, na pesquisa e no texto de Cláudia Marques Martinez, objeto de estudo e de análise, de forma a permitir compreendê-los e explicá-los integrados e conformados nas relações socioculturais da realidade paraopebense, na passagem das temporalidades escravistas e de supressão da escravidão.

    A autora, então, atenta-se para a água encanada dentro da casa, para o lavatório e o guarda-roupas, mais frequentes no espaço doméstico, para a diminuição do número de rocas de fiar algodão e de teares, para a cada vez maior presença dos fogões de ferro, ao mesmo tempo em que percebe a dispersão da riqueza e o fracionamento da terra. No entanto, esses achados, documentados com riqueza e rigor, não se apresentam isolados; são vistos em diálogo entre ausências e presenças, entre o antigo e o novo, passado e presente. Por isso, não há decadência, estagnação ou economia pobre: há mudança dentro da tradição produtiva.

    V

    Cláudia coloca cinzas de um passado que ela quer sejam lidas. E a leitura que se segue é fácil, guiada por bom texto, por maturidade reflexiva. O percurso da autora deste livro é parte de caminhos que ela já percorre há tempos e, dessa forma, está segura do trajeto. O Vale do Paraopeba é parte de Minas e Bonfim é parcela do Vale. A experiência anterior da autora, ao desvelar a riqueza de seu torrão escravista, toma, aqui, dimensão e consistência espacial que lhe permitem apresentar interpretações motivadoras de indagação. Aí, a autora estimula nuances e contornos distintos para suas conclusões analíticas, sem, no entanto, deixar de apresentar ao leitor dados concretos do Vale que ela toma como objeto.

    Este chão é de Cláudia. Ela o domina. Tem poder sobre ele.

    Cláudia Marques Martinez quer que o passado desse seu chão, vivido entre as cinzas das coivaras e das senzalas e o verdor dos campos e a liberdade dos cativos, seja lido e questionado pelo leitor. E isso se faz com prazer e gosto.

    José Newton Coelho Meneses

    Belo Horizonte, verão de 2013.

    Introdução

    O Vale do Paraopeba, margeado por rios e riachos, contornado por montanhas e serras que outrora forneceram ouro para a Coroa portuguesa, constitui a paisagem principal deste livro.¹ Plantações de milho, feijão, mandioca (o pão cotidiano) e outros alimentos cresceram nas terras férteis de suas fazendas e sítios. Da mesma maneira, o comércio, a circulação e a troca de mercadorias marcaram a tônica das vilas e cidades oitocentistas. Nos campos e pastos, animais como bois, cavalos, porcos e galináceos proviam alimento para as famílias e fomentavam os negócios entre as regiões, a capital Ouro Preto e a Corte do Rio de Janeiro. Da mesma forma, engenhos de cana, alambiques, tendas de ferreiro, moinhos e monjolos compuseram, juntamente com enxadas, foices e enxós, os principais equipamentos de trabalho. Era por meio de tais objetos que se podia extrair da natureza o sustento diário da população e dos animais domésticos.

    Com teares e rocas, fabricaram-se tecidos com o algodão local ou exportado de outras localidades como, por exemplo, Minas Novas, situada no norte da província. A produção de queijo, doce e rapadura (açúcar dos pobres), permanentemente apontada nas fontes cartorárias, era uma tarefa diária e lucrativa, pois grande parte do excedente era comercializada. Também os tecidos de algodão e diversos gêneros alimentícios eram conduzidos à praça carioca e, quando as tropas de burro retornavam, traziam de lá tecidos importados, artefatos de luxo, como pianos, flautas, chapéus, cantoneiras de mármores, bacalhau, vinho do Porto; uma gama variada de artigos e artefatos que o mundo do interior não possuía. Viajantes estrangeiros, como o francês Auguste de Saint-Hilaire, presenciaram o intenso trânsito das tropas carregadas de mantimentos e tecidos.² Ainda pelos caminhos de Minas era comum encontrar comboios de escravos vindos do Rio de Janeiro com destino às vilas e fazendas.

    O cenário descrito nestas páginas iniciais constitui uma das facetas da cultura material e da economia, mais precisamente aquela que se configurou no século XIX escravista. A despeito das especificidades encontradas para a região estudada, é preciso destacar que outras partes do Brasil, voltadas para o abastecimento interno, também viveram realidade semelhante, comercializaram seus excedentes, acumularam fortunas e grandes plantéis de escravos.

    Ao longo do livro, trabalhou-se com a perspectiva de que o fim do trabalho cativo (1888), a mudança da capital mineira (1897) e as novas relações sociais e políticas que se configuraram a partir do final do oitocentos definiram contornos diferenciados para a economia e a cultura material. Diferenças que se manifestaram na composição da riqueza, na reorientação das fortunas, no sentido da pobreza, na qualidade e valor das terras e propriedades rurais. As análises desenvolvidas apontaram, entre tantas outras questões, distintos padrões culturais, traduzidos, por exemplo, na posse de determinados objetos do cotidiano e sua distinta relação com a sociedade.³

    A problemática histórica que se configurou entre os dois períodos – pré e pós-escravista – orientou, portanto, as análises e a pesquisa documental trabalhada, principalmente aquela concretizada com um conjunto de inventários post-mortem. Listas nominativas, censos demográficos, relatos de viagem, periódicos e demais fontes primárias também compuseram o rol dos documentos pesquisados.

    Dentre as questões propostas, destacam-se as seguintes: por que os grandes escravistas do Vale do Paraopeba, que dispunham de quantias consideráveis para a importação de africanos, não procuraram diversificar as atividades econômicas ou introduzir outras formas de trabalho perante o inevitável fim da escravidão? Quais as consequências que tais fatos produziram na realidade socioeconômica daquela circunscrição geográfica? Em outros termos, por que uma região tão materialmente abastada sofreu um claro revés no encerrar do século XIX? Quais as transformações, alterações, rupturas e continuidades ocorridas na riqueza e na cultura material antes e depois da escravidão? Quais as semelhanças e diferenças entre, por exemplo, a realidade do Vale do Paraopeba em Minas Gerais, o Vale do Paraíba e outras partes do país? É possível pensar conjuntamente outras regiões da Província mineira e, também, demais localidades do Brasil oitocentista onde estudos dessa natureza já foram realizados?

    A partir de um conjunto de dados cartorários composto de 761 inventários post-mortem, foi possível identificar as principais mudanças no padrão de riqueza e pobreza, bem como as principais alterações na composição da cultura material estabelecida antes e depois do fim do trabalho cativo. Em decorrência da temática, das problemáticas levantadas e do conjunto documental pesquisado, o livro estruturou-se em cinco capítulos.

    O primeiro, Cultura Material, riqueza e escravidão: historiografia, fontes e metodologia, analisa, a partir do contexto internacional e nacional, a bibliografia produzida sobre os temas relacionados à cultura material e à riqueza. O fim da escravidão e o pós-Abolição foram tratados como uma problemática histórica, enfocando, para isso, os principais autores e estudos que abordam essas questões.

    O conceito adotado para analisar a cultura material e a riqueza nas fontes cartorárias ganhou espaço privilegiado nesse capítulo. A base teórica apoia-se principalmente nos estudos desenvolvidos por Daniel Roche, Joel Cornette, Laurent Bourquin e Jean-Pierre Hardy. Os autores mencionados apresentam uma concepção particular, e compartilhada neste livro, ao abordar os objetos do cotidiano e da riqueza material dos grupos sociais. Ainda na primeira parte, procura-se explicitar o banco de dados e as categorias de análise utilizadas para pensar as fontes cartorárias, bem como os outros documentos utilizados.

    O capítulo 2, O Vale do Paraopeba: história, população e espaço geográfico, traça um panorama histórico da região estudada, localizando e identificando suas principais características e singularidades historiográficas. Nessa parte, encontra-se um estudo detalhado das suas principais ocupações, comparando os resultados encontrados com os de outras localidades de Minas Gerais no século XIX. Destaque especial foi dado às fiandeiras e tecedeiras, que exerceram forte influência na economia e naquela sociedade. O último tópico apresenta um estudo preliminar que permite problematizar o movimento da população mineira antes e depois do fim da escravidão.

    O terceiro capítulo, A arquitetura da riqueza, constitui o alicerce das análises aqui proferidas. Inicia problematizando a representatividade da sociedade inventariada perante a população geral e os resultados encontrados sinalizam que tal relação pode ter uma dimensão mais significativa daquilo que foi aventado pela historiografia até o momento. A questão da dispersão da riqueza no período pós-escravista é analisada com a preocupação de comparar os resultados aferidos com os de outras províncias, como, por exemplo, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Bahia, o Sertão Pernambucano e outras localidades de Minas Gerais e do Brasil. Para isso, o banco de dados foi segmentado

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