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De terras índigenas à princesa da serra fluminense: O processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (província do Rio de Janeiro, século XIX)
De terras índigenas à princesa da serra fluminense: O processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (província do Rio de Janeiro, século XIX)
De terras índigenas à princesa da serra fluminense: O processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (província do Rio de Janeiro, século XIX)
E-book488 páginas6 horas

De terras índigenas à princesa da serra fluminense: O processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (província do Rio de Janeiro, século XIX)

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Sobre este e-book

De Terras Indígenas à Princesa da Serra Fluminense... investiga como a cidade em que hoje é Valença/RJ se tornou a "princesinha da serra", terra de grandes Barões do café e de desbravadores de matas até então intocadas. Este livro revisita essa história para recontá-la a partir das disputas travadas por indígenas, agregados, posseiros e senhores pelo direito ao exercício da propriedade da terra. Essa mudança na maneira de olhar para o passado, representa o reconhecimento de que as terras em que se formou Valença e, tantas outras Brasil adentro eram ocupadas por indígenas, antes de serem invadidas pelo colonizador "branco", de que agregados e posseiros tinham seus próprios projetos de vida, que se defrontava com os dos senhores, e que os Barões disputavam entre si e com os representantes do Estado Imperial a expansão de suas fazendas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de out. de 2019
ISBN9788546218806
De terras índigenas à princesa da serra fluminense: O processo de realização da propriedade cafeeira em Valença (província do Rio de Janeiro, século XIX)

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    De terras índigenas à princesa da serra fluminense - Felipe de Melo Alvarenga

    PREFÁCIO

    Eu e Felipe nos conhecemos em meados de 2012, numa atividade de greve realizada na UFRJ. Ele era um menino, recém-chegado no curso de história desta universidade. Naquele momento Felipe, mesmo muito jovem, um pouco inseguro e um tanto prolixo, já nos impressionou por ser ousado, destemido e ter muita iniciativa. Os anos foram passando e me tornei sua professora, depois orientadora de iniciação científica, coordenadora do laboratório de pesquisa do qual ele fez parte, tutora de seu TCC. Mais recentemente, participei das bancas de qualificação e defesa de dissertação de seu mestrado na Unicamp, trabalho de pesquisa consubstanciado neste livro. Acho que, ao final, fui conselheira nas suas escolhas acadêmicas e auxiliei-o nos percursos e escolhas que ele seguiu desde então. Por isso me sinto muito à vontade para contar um pouco do que ele andou pensando, fazendo e escrevendo.

    Primeiro, é com gosto que digo que este livro, mesmo longo, já não tem quase nada de inseguro e prolixo do Felipe adolescente, nos termos de uma erudição inútil ou de descrições de casos infindáveis e sem sentido. Felipe amadureceu e aperfeiçoou sua forma de pensar, pesquisar e escrever ao longo destes anos, e todos vocês verão que este é um texto preciso em relação aos seus objetivos, que dialoga diretamente com seus interlocutores e que defende suas hipóteses com firmeza e clareza. É um texto seguro, de quem sabe onde quer chegar, de quem conhece o campo e tem algo a dizer sobre nossa história agrária. É com muito prazer que vejo um pesquisador se formar, crescer e finalmente se lançar ao mundo da pesquisa histórica de alta qualidade de forma tão firme e segura quanto Felipe o faz.

    Em termos do debate acadêmico empreendido neste trabalho, Felipe se diferenciou enormemente do tipo de pesquisa marcadamente individual, preguiçoso e apressado que, atualmente tem grassado em nossos meios. Estas pesquisas, com diferentes justificativas, acabam não enfrentando o grande número de estudos pregressos e nem dialogando com importantes conclusões já estabelecidas a respeito da história agrária fluminense. Diferente desta média, Felipe resgatou, sistematizou, entendeu e nos apresenta neste livro os trabalhos da Escola do Rio como seus principais interlocutores (mas não exclusivos), dialogando com muita habilidade com a diversidade de objetos, de fontes e de resultados destas pesquisas.

    Para entender o trabalho que Felipe realiza e o campo com o qual dialoga, devemos voltar aos anos 1980, quando se processava a abertura política da ditadura militar, os exilados voltavam ao Brasil e se estruturavam os primeiros programas de pós-graduação em história no Rio de Janeiro. Nesta conjuntura mais promissora foram gestadas muitas dissertações e teses, defendidas nos anos 1980 e 1990. Estes trabalhos foram artífices de uma grande renovação historiográfica nas interpretações sobre as mudanças ocorridas no mundo agrário brasileiro, e criaram o campo a que chamamos de ‘história agrária fluminense’, ou, mais carinhosamente, de ‘Escola do Rio’. Ciro Flamarion Cardoso e Maria Yedda Linhares trouxeram para as pós-graduações fluminenses métodos e técnicas de pesquisa em história que exigiam base experimental sólida, fontes arquivísticas originais e metodologias de tratamento destas fontes, como a estatística e a seriação, além da necessidade de diálogo com a comunidade acadêmica internacional. Essa escola criticou a metodologia pouco científica que orientava a maior parte dos trabalhos acadêmicos na área de história até então. A pesquisa histórica profissional estava engatinhando no Brasil.

    A Escola do Rio discutiu diretamente com os cânones da história econômica daquele momento, onde predominavam as teses de Caio Prado Jr, atualizadas por Fernando Novais, sobre o ‘sentido da colonização’ para a estrutura do ‘antigo sistema colonial’ brasileiro, e a falta de sentido de tudo o que não fosse ligado a este circuito. No campo da economia, a grande tese de Celso Furtado sobre a formação econômica do Brasil e as possibilidades da superação do subdesenvolvimento continuavam em voga. Ambas as correntes, na economia e na historiografia, corroboravam a visão paulistocêntrica de que os fatores e processos econômicos necessários para o processo de transformação de uma economia arcaica, de tipo colonial, para uma nova, de tipo moderno ou capitalista, estiveram presentes no caso da formação histórica da região paulista, o que lhe conferiria caráter exemplar para a história brasileira. Segundo essa visão, o que não havia acontecido em São Paulo (apenas em outras regiões) estava fora das possibilidades de desenvolvimento de um capitalismo a brasileira, consistindo em obstáculos, desvios, ou mesmo na negação deste desenvolvimento.

    A pretensão modelar que o caso paulista assumiu para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, com o consequente apagamento de processos diversos e de resultados históricos muito reais, mas que não cabiam neste modelo, embaçou o olhar dos pesquisadores, diminuiu a curiosidade sobre a diversidade, acomodou as pesquisas na simples testagem de modelos de desenvolvimento pré-concebidos e, finalmente, empobreceu o conhecimento que tínhamos sobre nossa história real, muito mais diversificada e complexa. Rompendo com esses hábitos, os pesquisadores da Escola do Rio foram instados a rever a versão paulistocêntrica perguntando o que havia efetivamente acontecido na província fluminense a partir da Lei de Terras de 1850, do fim do tráfico de escravos e da decadência produtiva da plantation cafeeira, sentida já em 1870. Ao se preocupar em descobrir os impactos regionalmente diferenciados de macro fatores de nossa história nacional, como a Lei de Terras de 1850, a imigração estrangeira e a abolição da escravidão, a Escola do Rio trouxe para o debate acadêmico o que efetivamente aconteceu nos brasis não paulistas, e isso representou uma grande alteração para o campo da economia e da história econômica brasileiras. A partir de então, sabemos que outros elementos, processos e resultados históricos merecem ser descobertos, analisados, sumariados e cotejados com o caso paulista, para que se tenha maior acuidade, precisão e clareza ao se tratar do processo histórico de desenvolvimento capitalista no Brasil.

    Nas novas pesquisas irromperam agentes da história bastante diferentes dos protagonistas paulistas: portugueses refugiados nos trópicos mas ciosos em garantir seu modo de pensar, de ganhar a vida e de governar nestas novas paragens; mineiros enriquecidos no comércio de abastecimento ciosos em conseguir mais lucros com a proximidade do centro de decisões do império português; comerciantes da praça do Rio de Janeiro ciosos em ampliar o tráfico de escravos africanos e outras redes comerciais sob seu controle; famílias sem longos costados aspirando por brasões e privilégios aristocráticos; comunidades nativas buscando se defender da onda expropriatória sobre suas terras e seu modo de vida; comunidades escravizadas buscando ampliar sua margem de autonomia frente ao regime escravista que lhes massacrava; homens livres e pobres buscando se equilibrar nas fímbrias que lhes restavam de uma estrutura econômica, social e política que de forma alguma os favorecia; arrendatários, foreiros, agregados e sitiantes que buscavam manter ou ampliar seus direitos de acesso e uso de recursos naturais, numa conjuntura em que a propriedade privada da terra se mostrava cada vez mais agressiva na destruição de outros direitos.

    Considero que um dos grandes méritos deste livro é resgatar os achados e pensados pela Escola do Rio de maneira crítica e rigorosa. Essa não foi uma tarefa fácil para Felipe, posto que muitos desses são trabalhos acadêmicos não publicados em livros nem na rede mundial de computadores; alguns foram produzidos em faculdades pequenas, algumas já desaparecidas, cujos acervos foram desmantelados; outros são fruto de pesquisas empreendidas por pessoas que, por várias razões, não seguiram carreira acadêmica e, com isso, não buscaram dar visibilidade aos seus trabalhos; a maioria destas investigações não é citada, discutida e nem faz parte dos programas dos cursos de história econômica; e, por fim, parte significativa delas foi perdendo impacto mesmo no campo historiográfico fluminense desde os anos 1990, quando boa parte dos historiadores deixou as investigações no campo econômico, social e agrário e migrou para o campo da história cultural, das ideias e dos conceitos. Na contramão desse processo, realizando uma busca quase arqueológica destes trabalhos, os reabilitando no seu enorme potencial de inovação teórica e metodológica, e exercitando, na sua própria pesquisa, as ferramentas propostas pela Escola do Rio, sobretudo na busca e sistematização de fontes arquivísticas inéditas, Felipe nos ensina a fazer história com competência, seriedade e profissionalismo, mas também com humildade e respeito intelectual ao que de bom já foi construído.

    Mas, se eu parasse por aqui, o leitor poderia pensar que o trabalho de Felipe se insere comodamente no campo da história agrária fluminense. Ledo engano. Mesmo conhecendo e dominando com maestria essa temática, Felipe se apoiou nos ombros de seus antecessores para ver além deles. Ele pensou outros problemas em relação ao seu objeto de pesquisa que não haviam sido colocados anteriormente. Felipe fez a opção de dialogar com o campo da história social da propriedade e com as discussões nele travadas, majoritariamente, fora do Brasil, nos apresentando, basicamente, as reflexões do jurista italiano Paolo Grossi e da historiadora catalã Rosa Congost. Paolo Grossi escreve desde os anos 1970, mas só a partir de 2006 algumas de suas obras foram traduzidas para o português, mesmo assim permanecendo bastante restritas ao campo da história do direito. Congost desde 1997 organiza e publica inúmeras obras em catalão, espanhol e inglês, individuais e coletivas, mas nenhuma delas foi vertida para o português, e quase nada foi apropriadamente discutido no Brasil. Portanto, a discussão que Felipe propõe sobre a realização da propriedade cafeeira no Vale do Paraíba fluminense no século XIX é original e ousada, pois dialoga com conceitos, estudos de caso e hipóteses do campo da história social da propriedade ainda muito distantes dos nossos debates.

    O baixo impacto que as reflexões de Grossi e Congost surtiram na historiografia econômica, social e agrária brasileira até agora indica a dificuldade que ainda temos de ultrapassar os termos colocados pela escola dos Annales e pela história social britânica produzidas até os anos 1990, e incorporar em nossa agenda uma pluralidade maior de teorias, objetos e hipóteses de trabalho fora do eixo França-Inglaterra, nos inserir em redes de pesquisa em funcionamento no século XXI e dialogar com interlocutores vivos. Quem sabe essa dificuldade merecesse alguma atenção e devesse ser objeto de maiores preocupações... mas esse não é seguramente o objetivo deste prefácio.

    Aqui gostaria de frisar que Felipe faz a sua parte e corajosamente inicia esse diálogo internacional, tão necessário, a respeito dos meandros da construção da propriedade privada da terra no Brasil. Ele traz desse campo inspirações ousadas, dentre as quais eu destacaria as seguintes: primeiro, investigar as condições de realização da propriedade privada, deixando de encarar esse processo como algo natural e inexorável. Segundo analisar a atuação real de proprietários práticos na defesa de seus direitos de propriedade, mesmo que não fossem proprietários de fato. Em terceiro lugar, ver a historicidade da legislação sobre propriedade e a volatilidade das determinações legais, construídas ao sabor das disputas do momento. Em quarto lugar, ele buscou compor o campo de forças com diversos interesses em disputa em torno da ratificação, ou não, de determinados direitos de propriedade vigentes, em detrimento de outros.

    Essa tarefa é particularmente importante quando se trata de entender as ações dos supostos legítimos proprietários (que, no caso, eram os barões do café) em defesa de seus supostos legítimos direitos de propriedade. A memória local os elevou à condição de proprietários sérios, patriarcas de grandes famílias, gestores responsáveis de suas fazendas escravistas. Ela nos diz que, através da exportação de café, eles foram os maiores construtores da riqueza nacional à época, e por isso receberam honrarias do Imperador. Ainda que limitado pela recorrente falta de fontes (como a destruição dos arquivos da Câmara Municipal de Valença), Felipe combate essa memória local com vigor. Ele mostra as ações destes indivíduos como proprietários práticos, interessados em destruir direitos de outrem para aumentar os seus próprios, na lei ou na marra. Felipe mostra como fizeram isso no meio da floresta, nos aldeamentos indígenas, na beira dos rios, na porteira da fazenda, nas emboscadas, mas também na câmara de vereadores, no tribunal, nos cartórios, nas delegacias e nas cadeias. A manipulação de instrumentos locais de poder, como a política, a justiça e a polícia, foi uma arma muito utilizada por eles. Felipe acrescenta, como novidade, a forma com que as câmaras municipais expropriaram os índios e, finalmente, como os decadentes barões tentaram se aproveitar dos contratos agrários de parceria como forma de substituir o trabalho compulsório que definhava.

    A estas preocupações caras à história social da propriedade, Felipe acrescenta outras, referentes a uma nova história indígena. Ele faz isso quando alça os índios Puris e Coroados a sujeitos da história que viveram, sem romantizá-los nem vitimizá-los, mas também sem deixá-los jazer como objetos passivos das iniciativas empreendidas apenas pelos brancos. Felipe nos mostra ações destes índios no sentido de pressionar as estruturas vigentes em busca da efetivação de seus direitos à terra, ou, se isso não era mais possível, no sentido de não se conformar aos direitos cada vez mais restritos que passavam a lhes caber. Os índios peticionaram à monarquia portuguesa, aliaram-se com homens poderosos, incendiaram fazendas, fizeram emboscadas contra seus agressores, tudo isso com o objetivo claro de lutar para garantir seus direitos coletivos. O resultado infeliz dessa história, em termos de sua massiva expropriação territorial e dizimação física, não deve obscurecer o fato de que pensaram, de que agiram, de que tentaram, de que eram homens e mulheres ativos lutando com as (poucas) armas que possuíam contra a realização da propriedade nos termos genocidas e etnocidas que ela se apresentava à época. O fato que as atuais gerações de indígenas continuem nesta mesma luta nos dias de hoje deve nos indicar a importância da resistência de seus antepassados para a consolidação dos direitos indígenas que temos, mesmo sob constante ameaça de desconstrução.

    Finalmente, outro grande mérito do trabalho de Felipe foi aliar a história social da propriedade à história vista de baixo. Ele se preocupou em desvendar a ação de homens livres e pobres na defesa dos direitos de propriedade que exerciam e que consideravam justos, mas que estavam apenas em parte protegidos pela legislação da época. Para fazer isso, Felipe precisou trabalhar duro na reinterpretação de fontes oficiais, sobretudo processos judiciais, posto que estes tendem, no mais das vezes, a criminalizar e condenar as ações daqueles que não são os privilegiados nem pela lei, nem pelos bens, nem pelos interesses políticos da época. Felipe conseguiu nos mostrar parte da micropolítica cotidiana de acesso à terra e aos recursos naturais nas fazendas cafeeiras de Valença, indicando que formas de acesso aos recursos e direitos de propriedade se construíam num cotidiano de reciprocidades, embates e conflitos, no momento das derrubadas, da construção de cercas, das queimadas, no conserto de estradas e pontes, no acesso aos rios, na venda do café, no eito, nos casamentos e testamentos, enfim, o tempo todo, e não apenas quando mudavam as leis. Uma micropolítica fora da grande política, não formalizada em leis e poucas vezes registrada em fontes, mas efetiva e absolutamente necessária para a sobrevivência de grande parte da população rural da época.

    Por fim, sem esquecer das motivações da história agrária fluminense, Felipe também quis entender como grupos sociais diferentes se comportaram frente à mudança política advinda da Lei de Terras de 1850, à mudança social advinda do fim do tráfico internacional de escravos africanos, e à decadência ecológica e econômica sentida fortemente nas fazendas de café do Vale a partir de 1870. Mas, se as preocupações antipaulistocêntricas permanecem em pauta, o olhar de Felipe se volta para outros elementos esgrimidos pelos agentes sociais para fazer face a estas mudanças: os direitos de propriedade sobre a terra, a produção agrícola e os recursos naturais.

    Aí reside o grande mérito da sua pesquisa. A partir do domínio profundo do campo da história agrária fluminense, e, ao mesmo tempo, do interesse por conceitos e problemas de um novo campo – a história social da propriedade – ele buscou trazer questões desta nova escola para avançar nas proposições daquela. As disputas pela transformação dos direitos de propriedade passam, a partir de agora, a compor o rol de variáveis para compreender as motivações, os meios e os resultados das mudanças no sistema econômico brasileiro. A partir de trabalhos como os de Felipe, podemos concordar que direitos de propriedade são cruciais para a realização, ou não, dos objetivos de todos os participantes de um sistema econômico, no sentido de que definem as possibilidades de exploração do trabalho, de acesso aos meios de produção, as formas autorizadas de apropriação dos resultados do trabalho, sua distribuição e seus rendimentos. Podemos concordar também que estes direitos se constroem não apenas nos códigos legais, mas a partir de práticas sociais miúdas, difíceis de detectar e analisar, mas que efetivamente construíram, ou dificultaram a construção, do que temos hoje em termos de direitos de propriedade sobre a terra. Por fim, podemos concordar que esse livro é uma excelente pesquisa e que pode inspirar novos trabalhos no campo da história social da propriedade no Brasil. Boa leitura.

    Manoela Pedroza

    Professora no departamento de História da UFF, campus Niterói.

    Niterói, 7 de julho de 2019.

    Introdução

    Segundo conta a tradição (...) respirando profundamente a pureza dos ares da serra valenciana, encantado com a graciosidade da cidade (...) D. Pedro II exclamou, num assomo de espontaneidade: ‘– Esta é, realmente, a Princesa das Serras Fluminenses’, frase esta que gerou a expressão pela qual é conhecida Valença: ‘A Princesa da Serra’.¹

    Na edição de 5 de dezembro de 1875, foi publicado no jornal Echo Valenciano algumas características do que seria um bom lavrador, a saber: cultivar a terra, manejar um arado e criar o gado útil à sua fazenda. Segundo o artigo, o verdadeiro lavrador poderia ser muito versado nos trabalhos do campo, dar conselho aos inteligentes, sem por isso executar a coisa por si mesma, ou seja, não seria necessário o trabalho realizado pelas próprias mãos, mas era mister que tenha trabalhado e que saiba, sendo-lhe preciso, ensinar a prática aos que estão a seu serviço.² Mesmo que não tenha tido ampolas nas mãos e a pele endurecida, o bom lavrador era aquele que conhecia os procedimentos de cultivo e do trato com a terra. Não seria preciso que por vaidade ele estenda sua lavoura além das suas forças: um bom lavrador, para cuidar de suas terras, deve deitar-se o último e levantar-se o primeiro, dedicando todas as atenções para com a gente a seu serviço, tratando-as da melhor maneira possível.³

    Ao recorrermos à visão do memorialista de Manoel Eloy dos Santos Andrade (1872-1948), identificamos que a imagem do bom lavrador também foi bastante caudatária desta apresentada no jornal valenciano, sinal de que ela era bastante disseminada nos círculos senhoriais oitocentistas. Segundo ele, o bom lavrador era aquele que tinha amor à profissão agrícola e à terra que herdara de seus pais ou adquirira em mata virgem (...) tinha prazer em progredir, ver aumentada a produção, de ano a ano, não tanto pelos lucros que dela proviessem, mas por seus próprios esforços e boa administração.⁴ Nada se perdia na fazenda, tudo era aproveitado. Nenhuma praga afetava as terras do lavrador. É, em resumo, o que sabe dispor todos os trabalhos agrícolas.⁵ Além disso, os próprios escravos deveriam ter suas roças, vendiam suas colheitas e eram sadios, porque se alimentavam bem e recebiam tratamentos médicos regulares.

    Estas representações bucólicas foram muito disseminadas em Valença, município localizado na parte Ocidental do Vale do Paraíba fluminense, que conheceu grande abastança no século XIX com a produção do café, gênero comercial que dinamizou a economia do Império brasileiro no Oitocentos.⁶ Na Princesa da Serra, diversas fazendas cafeeiras foram instaladas. Muitos fazendeiros ficaram conhecidos por seus extensos patrimônios rurais, recebendo regalias e promoções sociais do imperador, naturalizando-se a figura dos Barões do Café como representativa de toda aquela opulência.⁷

    Foi o caso de Domingos Custódio Guimarães – o Visconde do Rio Preto –, reconhecido pela historiografia local de Valença como o exemplo mais representativo do bom lavrador apresentado anteriormente. Construiu um imenso patrimônio rural na cidade de Valença, com destaque para a sua Fazenda Paraíso, considerada uma fazenda modelo na Princesa da Serra.⁸ Lá, os escravos recebiam assistência média periódica e eram todos uniformizados.⁹ Segundo Rogério da Silva Tjader, havia até bandas de músicas compostas por estes escravos que se encontravam impecavelmente fardados, portadores de um instrumental afinado e bem polido.¹⁰ O trato com a mão de obra livre e escrava era considerado justo e exemplar por outros senhores de Valença.

    Além disso, o Visconde do Rio Preto estabeleceu ótimas relações com a boa sociedade valenciana: foi provedor da Santa Casa de Misericórdia de Valença, espaço de sociabilidade da nobreza local, e participou das discussões políticas na Câmara Municipal de forma assídua. Sua morte em 1868 foi lamentada por muitos e apareceu noticiada em vários jornais publicados em Valença e na Corte do Rio de Janeiro.¹¹ O edifício do Palacete do Visconde do Rio Preto, um casarão luxuoso construído em 1858 para servir como sua residência na zona urbana de Valença, continua lá até hoje. Atualmente, o prédio é ocupado pelo Colégio Estadual Theodorico Fonseca, localizado na Praça Visconde do Rio Preto (Jardim de Cima).¹²

    Figura 1. Palacete do Visconde do Rio Preto

    Disponível em: http://bit.ly/32SsaCL. Acesso em: 27 fev. 2019.

    A historiografia confirmou que a instalação da plantation cafeeira no Vale do Paraíba fluminense se deu a partir de uma inversão do capital mercantil acumulado na praça comercial da cidade do Rio de Janeiro em investimentos rurais, o que permitiu a atualização do modo de produção escravista-colonial em uma zona periférica e com uma oferta elástica de terras a serem apropriadas mediante concessões de sesmarias.¹³ O instituto de sesmarias criou um grupo de privilegiados que mantinha a sua autoridade à custa dos grandes latifúndios, muitas vezes com grandes extensões de terras abandonadas, prejudicando os interesses gerais da população.¹⁴

    O processo de formação das fazendas cafeeiras foi bastante violento no Vale do Paraíba. Os historiadores identificaram dois processos de expropriação: o primeiro que vitimou a população indígena que já vivia naquelas terras e o segundo que expropriou os pequenos e médios posseiros que se instalaram na Serra Fluminense depois da decadência da produção aurífera nas Minas Gerais, na virada do século XVIII para o século XIX. Com a formação dos cafezais, o Vale se tornou o principal centro econômico do Império, tendo o território valenciano e vassourense destaque nesta empreitada.¹⁵

    No entanto, acreditamos que é preciso preencher algumas lacunas sobre o processo de formação e de reprodução das fazendas cafeeiras. Acreditamos que as contribuições do campo da História Social da Propriedade¹⁶ nos revelam alguns caminhos para focalizarmos os diversos conflitos em torno dos direitos de propriedade ao longo de todo o Oitocentos. Este trabalho busca, desse modo, identificar algumas descontinuidades no processo de construção da propriedade cafeeira, entendida aqui como uma relação social de propriedade que foi permeada por conflitos envolvendo diversos atores históricos. Até porque a realidade da formação e da reprodução destas fazendas no Vale não foi nada tranquila e esteve longe daquela representação do jornal local que apresentava uma unidade de produção que funcionava perfeitamente. Isto é, a propriedade cafeeira não foi instalada numa região sem conflitos, com uma vizinhança equilibrada, que não estendia suas plantações para além de suas forças, e com uma mão de obra totalmente controlada, que tinha seu interesse combinado com os do bom lavrador que, por sua vez, ensinava a seus subordinados o amor à profissão agrícola.

    Não existiu um ambiente harmônico na instalação e na administração destas fazendas. Por este motivo, a representação do bom lavrador¹⁷ foi uma estratégia política criada pela classe senhorial local para externar uma imagem otimista e fortalecer uma memória coletiva¹⁸, atualizada até os dias de hoje, que apaga a trajetória de outros atores sociais que lutaram por seus direitos de propriedade no espaço, no entorno, ou no interior da fazenda cafeeira. Isto fortaleceu aquilo que Thompson denominou como a memória do paternalismo – uma representação do mundo social visto de cima – que silencia a história dos de baixo.¹⁹

    Neste sentido, o objetivo desta dissertação é analisar o processo de realização da propriedade cafeeira em Valença durante o século XIX, nos termos teóricos de Rosa Congost. Segundo a autora, as relações de propriedade são, na verdade, relações sociais que devem ser observadas desde uma pluralidade de ângulos. Analisar as condições de realização de propriedade é uma estratégia analítica que busca compreender o conjunto de elementos relacionados às formas diárias de acesso aos recursos e às práticas de distribuição social da renda que condicionam e são condicionadas pelas diferentes maneiras de desfrutar dos direitos de propriedade. Isto é, trata-se de ampliar o escopo da pesquisa na tentativa de entender quais foram as diversas formas de ser proprietários²⁰; além dos Barões do Café, que outros indivíduos exerceram direitos de propriedade na Valença oitocentista?

    A escolha do município de Valença, localizado na parte sudoeste da Província do Rio de Janeiro, não foi aleatória. Pertencente à região do Vale do Paraíba Ocidental, ela sofreu os impactos do avanço de uma frente pioneira de colonos brancos desde meados do século XVIII²¹ e a expansão e crise da cultura cafeeira no século XIX.²² Originalmente ocupada pelos índios bravios do Vale, Valença foi considerada área de sertão bruto e perigoso. Sua fronteira agrícola era fechada justamente pelo elemento indígena que não permitia a livre ocupação daquelas terras. No entanto, se tornou um dos municípios cafeeiros mais representativos do Império brasileiro em meados do século XIX.

    Nas décadas anteriores à promulgação da Lei de Terras, uma violenta apropriação de terrenos, públicos e/ou privados, se materializou no espaço valenciano, fruto da fronteira que foi aberta no início do século XIX, pela conjugação de interesses particulares e do Estado.²³ Os lavradores mobilizaram diversas estratégias para expandir seus direitos de propriedade à revelia dos seus confrontantes, e isso aconteceu até mesmo durante a década de 1850, quando já havia sido promulgada a Lei de Terras que fiscalizaria o apossamento em terrenos alheios e/ou devolutos. De qualquer forma, a rápida ocupação territorial foi tão expressiva a ponto de, nas primeiras décadas da segunda metade do Oitocentos, já se fazerem presentes os primeiros sinais de fechamento da fronteira agrícola, com a crescente diminuição das matas virgens.²⁴

    Escolhemos este município porque ele representou, exemplarmente, a dinâmica do processo histórico de formação das fazendas de café no Oitocentos. De sertão inóspito à região desgastada pelo desmatamento, Valença nos pareceu ser uma boa oportunidade para analisar a turbulenta construção da propriedade. Representou uma espécie de laboratório histórico para investigarmos aquelas condições de realização da propriedade cafeeira no conjunto da Província fluminense: uma oportunidade ímpar para identificarmos as descontinuidades do processo de estabilização da propriedade, visibilizando os conflitos que a originaram. Além disso, esta localidade nos serviu para nuançar a hegemonia de Vassouras como exemplo para tudo o que acontecia no Vale.²⁵

    Em Valença, vários atores históricos exerceram diversos direitos de propriedade, o que revelou diferentes maneiras e projetos para se lidar com a terra no momento de instalação e de reprodução das fazendas de café no século XIX. Muitos deles lutaram por seus direitos de propriedade a despeito de não serem conhecidos como grandes fazendeiros e de não possuírem os respectivos títulos sobre as terras. Por isso, é necessário compreender um pouco mais sobre os conflitos em torno dos direitos de propriedade para não naturalizarmos aquela imagem engessada do bom lavrador apresentada anteriormente: a fazenda cafeeira vai ser analisada como um espaço vivo e dinâmico, onde vários personagens sociais estiveram presentes. Portanto, ela não foi o resultado da ação individual dos Barões do Café.

    Como, de um sertão desabitado por brancos, Valença foi transformada numa das principais localidades exportadoras de café, gênero comercial bastante cotado no mercado internacional oitocentista? Quais foram as principais transformações em torno dos direitos de propriedade no espaço da Serra Fluminense? Como foram instaladas as fazendas de café na primeira metade do século XIX? Quem trabalhava na formação destas fazendas? Como foram reproduzidos os direitos sobre a terra destes trabalhadores na segunda metade do século, logo depois da promulgação da Lei de Terras de 1850 que, supostamente, criou a noção de uma propriedade privada no Brasil? Estas e outras perguntas serão respondidas ao longo do texto. Por ora, apresentaremos, com mais detalhes, o quadro teórico-metodológico construído para analisar nosso objeto de pesquisa e, por fim, a estrutura dos capítulos contidos neste livro.

    * * *

    O nosso título, com o seu premente apelo ao ‘próprio’, ao ‘meu’, não deve vendar nossos olhos e nos fazer considerar exclusiva uma paisagem jurídica pela razão simplista de que ela nos está próxima e é familiar.²⁶

    A relação que se forma entre um sujeito-humano e um bem-coisa é um dos problemas jurídicos mais espinhosos da História. Segundo Paolo Grossi, a história do pertencimento é marcada por um universo cultural bastante complexo que define comportamentos, regras e direitos sobre a coisa possuída numa determinada sociedade. Não é à toa que, para o autor, a propriedade do bem é, sobretudo, mentalidade, e que o Direito, instância ordenadora do pertencimento e das relações jurídicas sobre as coisas, lida com esse pano de fundo sociocultural.²⁷

    Acontece que, com o advento liberal, uma nova solução foi criada para arbitrar esta relação: a noção de propriedade exclusiva. A relação de pertencimento foi assim caracterizada pela simplicidade, pela unicidade do sujeito que detém o domínio do bem (neste caso, da terra) a despeito das outras relações anteriormente construídas na vida em sociedade. A propriedade, de dimensão das coisas, tornou-se característica exclusiva do agente proprietário, sujeito moderno representado pela noção do eu/meu jurídico, que legitima sua propriedade como poder direto e imediato sobre a coisa possuída, sobre o bem tutelado pelo ordenamento na maneira mais intensa.²⁸

    Neste caso, perceber a pluralização proprietária é sinônimo, para Grossi, de historicização: ao recuperarmos o devir das coisas, numa espécie de libertária instância relativizadora, conseguiríamos extrair outros direitos de propriedade, já que uma refinada ideologia projetou o singular – a propriedade – no pináculo mais alto de um templo sacro.²⁹ O dever do historiador, para o autor, é o de assumir a descontinuidade: historicizar a propriedade na história da humanidade, acrescentando que aquilo que nos parece natural é, todavia, historicamente relativo. Não devemos projetar, indiscriminadamente, a resposta moderna ao problema do pertencimento no seio de outras experiências históricas. A propriedade privada foi fruto de uma transformação de um tempo e de um espaço bem demarcados, resultado de uma sagaz estratégia da classe burguesa que individualizou as regras jurídicas a uma ordem de juristas empenhada em fixar e categorizar a ideia abstrata que se tornou absoluta.³⁰

    Para escapar desta visão da propriedade, congelada nos códigos legislativos liberais do século XIX e sacralizada em nossas mentes, Rosa Congost propôs uma inversão analítica: é necessário deslizar nosso olhar daquela propriedade-metáfora, isto é, daquela propriedade enquanto ideia abstrata, projetada pelos liberais, e compreender a propriedade-realidade histórica. Até porque a mutabilidade da realidade social interfere nas relações de propriedade, para além dos princípios legais e dos marcos institucionais que estariam referendando a noção de uma propriedade liberal, absoluta e perfeita.³¹ Para realizar uma análise deste tipo,

    Devemos nos livrar das concepções nominais da propriedade, demasiado abstratas e rígidas, e examinar as condições reais que determinam em cada sociedade a conformação e materialização dos direitos de propriedade num enfoque de uma perspectiva comparativa. É sempre preferível a expressão direitos de propriedade, assim como perguntar-se sempre: quem têm os direitos de propriedade? Ao contrário da pergunta simples: quem é o proprietário? Já que partimos da natureza plural do problema.³²

    Esta foi a estratégia que a autora mobilizou para dessacralizar a noção de propriedade privada da terra, criada pelas revoluções liberais do século XIX, substituindo a reivindicação do natural no Direito pelo social. Direcionando sua análise para as chamadas condições de realização da propriedade, Congost nos forneceu subsídios para desnaturalizarmos a ideia jurídica abstrata por sua avaliação prática na realidade, haja vista que muitos direitos de propriedade foram construídos/desconstruídos a despeito dos códigos legislativos que formulassem a noção de propriedade.³³

    Acreditamos que esta perspectiva analítica tem muito a contribuir com o avanço do conhecimento a respeito da questão agrária no contexto brasileiro, principalmente se levarmos em conta o debate com aqueles estudos que focalizaram suas interpretações no texto da Lei de Terras, promulgada em 18 de setembro de 1850, e em sua aplicação na realidade em nível local/regional. Tratou-se do primeiro código legislativo sobre a questão fundiária do país já independente e que tinha como principais objetivos ordenar a propriedade da terra e disciplinar a apropriação territorial.³⁴

    Durante algum tempo, a historiografia sobre a Lei de Terras de 1850 afirmava que foi necessária a promulgação de uma legislação agrária no Brasil, principalmente quando a pressão da abolição do tráfico de africanos escravizados começou a se tornar uma questão para a Nação. Utilizando os debates legislativos e os relatórios dos Ministérios do Império, a historiografia tradicional ficou presa na relação umbilical entre a política fundiária e a política de imigração.³⁵ As determinações da Lei quanto às novas formas de pertencimento foram remetidas para o futuro, isto porque o tratamento da questão da mão de obra e da transição do trabalho escravo para o livre estava na ordem do dia.³⁶

    A síntese destas teses está condensada na seguinte frase de José de Souza Martins: Se no regime sesmarial, o da terra livre, o trabalho tivera que ser cativo; num regime de trabalho livre a terra tinha que ser cativa.³⁷ Tais interpretações que se debruçaram sobre o texto da Lei, ao que parece, tomaram como ponto fundamental o entendimento do seu primeiro artigo, pelo qual ficavam proibidas as aquisições de terras devolutas que não fossem efetivadas através da compra.³⁸ Para Emília Viotti da Costa, a instituição da noção moderna de propriedade foi materializada com esta deliberação: a terra passou a ser uma mercadoria, que poderia ser somente

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