Cotidiano
De Paulo Moura
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Cotidiano - Paulo Moura
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Janela quebrada
Vejo-a deitada sobre a cama com os lençóis desordenados. Seu corpo nu absorve toda pouca luz que transcende a janela quebrada. Seus olhos entorpecidos de uma noite suada e quente. Seus cabelos ainda úmidos de sua água salgada. Em sua boca resta uma mancha vermelha e apagada do que antes foi o rubro negro de um batom.
Passeio pelo quarto com meus olhos e encontro os dela, belos tons de esmeraldas e, com eles, um sentimento de culpa que me afunda. Mas logo se vai quando a observo, novamente, nua. Sua pele branca faz um contraste com os lençóis marrons, ressaltando-a. Desejo tocá-la, mas apenas a observo. Decalco suas curvas e entranças com o olhar. Deleitando-me como um voyeur, pois já a toquei, beijei e amei durante a noite anterior e agora a observo, desfrutando de sua imagem sem máculas.
A pouca luz que antes banhava o seu corpo, agora está se findando, presa entre as nuvens nubladas que lá fora, em instantes, banhará nossa habitação.
Os trovões começam a cantar.
A meia luz que alumiava o quarto partiu. Restam-nos, agora, sons de trovão e o escuro entre os lençóis.
Ouço batidas lá fora. A chuva forte e furiosa joga-se contra a janela e entra sem convite por entre o vidro quebrado. Em poucos segundos, uma poça molhada começa a se formar no chão de madeira, emanando um cheiro úmido e frio. Ela busca refúgio entre os lençóis. Eu amaldiçoo a chuva. Seus olhos culpados são o que restou livre dos lençóis. Não consigo fitá-los.
Acendo um cigarro, baforando fumaça sobre a cama que viaja até o rosto dela e é inspirado por seu nariz. Repito as baforadas, criando uma ponte fluida que leva minha alma para dentro de seu corpo, regozijando novamente o prazer que senti horas atrás.
A poça no chão tomou forma maior, transformando nossa cama numa ilha. Lembro-me, então, de Ulisses preso na ilha de Ogígia com a ninfa Calipso. Mas, ao contrário do herói, eu permaneceria na ilha deleitando do corpo da deusa e da imortalidade da alma.
A chuva cessa.
Silêncio...
Ela se desfaz dos lençóis.
Chama meu nome, movimentando sem som, os lábios.
Rejeito seu convite.
Cravo meus olhos em seu corpo, redesenhando-o.
Vejo o brando som do meu nome em seus lábios mais uma vez.
Em seus olhos verdes, vejo culpa.
A luz retorna, iluminando um dos lados de seu corpo, criando uma sombra no lado oposto. Resisto a sua estonteante beleza.
Apenas a observo.
Deleito-me de sua imagem nua. Sei que é tudo que me restará quando ela sair por aquela porta de volta para meu irmão.
E eu ficarei aqui.
Sozinha.
Resignação
- V ocê está me traindo.
- Claro que não - ela disse e voltou o corpo para outro lado da cama.
-