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Igualdade: Uma Visão Antropológica
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Igualdade: Uma Visão Antropológica
E-book349 páginas4 horas

Igualdade: Uma Visão Antropológica

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Sobre este e-book

Igualdade: uma visão antropológica propõe discutir a questão do igualitarismo em termos teóricos para depois considerar a aplicabilidade do conceito aos grupos sociais que apresentam um perfil consistentemente igualitário, além de observar como, em termos práticos, o igualitarismo é vivenciado no contexto desses grupos. Considera, também, a ideia da igualdade social que vigora no mundo moderno – em sintonia com a ideologia individualista – e que se mostra impossível de ser praticada, uma vez que a ideologia não explicita nem a natureza daquela igualdade nem as metas concretas a serem atingidas com sua aplicação. Quanto às sociedades caçadoras-coletoras igualitárias, observa-se que elas convivem com um tipo de desigualdade que – baseada nos desempenhos dos indivíduos mais competentes, como os bons líderes e os melhores caçadores – é revertida a favor da comunidade. Tal desigualdade é consentida porque é permitida e controlada pela maioria dos indivíduos, o que legitima os privilégios concedidos àqueles que melhor contribuem para os objetivos da sociedade, sem tirarem proveitos indevidos dessas concessões. Sua submissão às normas é fundamental para a manutenção dessa desigualdade consentida que, por resultar fundamentalmente em benefício da coletividade, pode ser considerada, na verdade, uma "desigualdade positiva".

As fontes utilizadas foram as mais variadas, já que o texto recobre áreas afins, tendo como referência a questão da igualdade, focalizando as sociedades primitivas – particularmente, grupos de caçadores-coletores–, mas discutindo também problemas associados que vivenciamos no mundo moderno. "Igualdade" é um tema fundamental no campo antropológico, mas, como a abordagem é ampla, pode interessar também aos estudiosos de Direito, Sociologia, Filosofia, Política e aos que tratam da sociedade em geral. No mundo globalizado da atualidade, a questão da igualdade tem suscitado as mais variadas discussões, como tem acontecido também no Brasil ultimamente, o que pode interessar igualmente a um público não necessariamente acadêmico.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de jul. de 2019
ISBN9788547313371
Igualdade: Uma Visão Antropológica

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    Pré-visualização do livro

    Igualdade - José Sávio Leopoldi

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2018 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    À memória de minha mãe, Espéria Negrão Leopoldi,

    e a Maria Antonieta, Camila, Rafaella

    Tera, Giovanna e Maricy,

    presentes à vida, presentes da vida.

    AGRADECIMENTOS

    Um livro como este, que tem por base uma tese de doutorado apre­sentada à Universidade de São Paulo, não é feito sem a colaboração de várias pessoas, que gostaria de mencionar e às quais expresso meu mais sincero reconhecimento.

    Da área acadêmica, agradeço a Rolf Nelson Kuntz, Renate Brigitte Viertler, Renato da Silva Queiroz, Isidoro da Silva Alves, Vera Sílvia Bussab, Emma Otta e José Carlos Rodrigues, que, de uma forma ou de outra, contribuíram significativamente para que a pesquisa que embasa este livro se desenvolvesse de forma profunda e abrangente e que seu obje­tivo fosse plenamente atingido.

    Algumas pessoas, de variadas maneiras, também colaboraram, com seu estímulo, amizade e atenção, para que a tarefa realizada se tornasse mais agradável e inspiradora: Maria Laurinda Ribeiro de Souza, Marga­rida Moura, Iduína e Artur Chaves, Irene e Paulo Lopes, Sylvia Schiavo, Leonor Zulmira de Azevedo Pires e Ana Cristina Sanches.

    Desnecessário ressaltar a importância das pessoas às quais este livro é dedicado: Maria Antonieta, querida esposa e acadêmica de alto nível, que ajudou também na revisão de parte do texto; Camila e Rafaella – filha e neta – a quem agradeço por todo o apoio e incentivo durante o longo período de trabalho; e a presença sempre estimulante, carinhosa e inspiradora de Espéria, Tera, Giovanna e Maricy – respectivamente, mãe (falecida), irmã, sobrinha e prima – que deram enorme apoio à rea­lização desta obra.

    APRESENTAÇÃO

    O objetivo deste livro é discutir uma questão das mais importan­tes da atualidade, que é o igualitarismo. Colocado como ponto central em vários aspectos sociais e culturais, e amplamente celebrado como uma conquista do mundo moderno, vê-se que a dificuldade de com­preender as várias dimensões do igualitarismo ainda está longe de ser superada.

    Para uma caracterização antropológica do igualitarismo, no sen­tido de esclarecer suas origens e possibilidades, além de uma investi­gação relacionada com a sociedade moderna, aprofundei as pesquisas sobre os grupos mais igualitários de que se tem notícia, ou seja, os caça­dores coletores, particularmente os que praticam uma economia de retorno imediato. O que se observa é que, de modo geral, as desigual­dades sempre existiram, mas, nessas sociedades, elas são, cultural e socialmente, moldadas para que resultem em proveito da coletividade. Sem deixar de reconhecer quem é o melhor indivíduo em qualquer atividade, elas não permitem que ele leve vantagens consideradas indevi­das pelos seus pares. Por isso, esse tipo de desigualdade pode ser, muito convenientemente, denominada desigualdade positiva, uma vez que trabalha, efetivamente, a favor da sociedade.

    Busquei, também, na primeira parte do livro, discutir algumas questões de caráter teórico, deixando evidente a dificuldade de se estabelecer um consenso sobre o conceito de igualdade, uma vez que ele pode ser considerado de diversas perspectivas, aplicado em contextos radicalmente diferentes e levado em consideração em qualquer período, desde os primórdios da humanidade. Na modernidade, a busca de uma compreensão maior desse conceito se deve, particularmente, ao sistema político democrático que tende a abarcar a maioria das nações e que aspira a colocar em prática uma igualdade entre os cidadãos, no sentido de que as desigualdades econômicas, educacionais, políticas e culturais sejam minimizadas. Mas, neste caso, se percebe, com maior vigor ainda, a dificuldade concreta de se compreender o sentido daquele conceito – apesar das enormes discussões que têm sido levadas a efeito – e de fazer com que as sociedades se beneficiem da sua implementação e se tornem mais justas.

    Sumário

    INTRODUÇÃO

    PARTE I

    IGUALITARISMO, INDIVIDUALISMO, DIFERENÇA E DESIGUALDADE

    CAPITULO 1

    A QUESTÃO DO IGUALITARISMO

    1.1 IGUALITARISMO E RELATIVISMO

    1.2 DIFERENÇA E DESIGUALDADE

    CAPITULO 2

    INDIVIDUALISMO, COLETIVISMO; INDIVÍDUO, SUJEITO

    2.1 LIBERALISMO E MODERNIDADE; O INDIVIDUALISMO CONTRA O INDIVÍDUO

    2.2 SOCIEDADE DE CONSUMO E PÓS-MODERNIDADE

    CAPITULO 3

    O INDIVÍDUO NAS SOCIEDADES TRADICIONAIS

    PARTE II

    CAÇADORES-COLETORES: A IGUALDADE POSSÍVEL

    CAPITULO 4

    A IDEOLOGIA DO IGUALITARISMO

    4.1 ECONOMIA E SOCIEDADE

    4.2 ORIGEM DO IGUALITARISMO

    CAPITULO 5

    RELAÇÕES DE GÊNERO: DIFERENÇA E DESIGUALDADE

    CAPITULO 6

    GENEROSIDADE, COMPARTILHAMENTO E PROPRIEDADE

    CAPITULO 7

    LIDERANÇA, PODER E IGUALITARISMO

    CAPITULO 8

    DESIGUALDADE POSITIVA – A VERDADEIRA BASE DO IGUALITARISMO

    CONCLUSÃO

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

    INTRODUÇÃO

    A proposta deste livro é estudar o igualitarismo de uma pers­pectiva antropológica, particularmente abordando sua relação com as chamadas sociedades tradicionais, com destaque para os grupos caçadores-coletores. Inicialmente, procurei explicitar o conceito de igualita­rismo, que parece imerso numa teia de dificuldades, desde que a ideia da igualdade social começou a ser discutida pelas antigas escolas de pensamento. Mas até os nossos dias, a questão tem desafiado os que se envolvem na tarefa de definir o conteúdo, o significado e os limites do conceito, que também se caracteriza por uma boa dose de relatividade. Por um lado, não há sociedade absolutamente igualitária; por outro lado, é sempre possível avaliar o grau de igualitarismo de qualquer sociedade, desde que se estabeleçam padrões adequados para consi­derar a questão na sociedade que se quer investigar. E, dependendo dos ingredientes utilizados para o tratamento do igualitarismo, dos objetivos do estudo ou da definição que se empregue para conceituá­-lo, as sociedades, de modo geral, podem – de uma forma ou de outra – ser consideradas igualitárias. Como a igualdade não pode ser referida simultaneamente a todos os aspectos possíveis de serem levados em conta nem a todos os indivíduos de um determinado contexto social, duas perguntas, segundo Norberto Bobbio, devem ser feitas sempre, e necessariamente, com relação ao estudo de um dado conjunto social: igualdade entre quem?; igualdade em relação a quê?

    A questão do igualitarismo deve ser também apreciada em con­sonância com a ideologia individualista dos tempos modernos, que tem na igualdade entre os indivíduos sua celula mater. Quanto a esse ponto, observa-se que, se por um lado, essa ideologia tem no indivíduo a mola mestra da sociedade moderna, por outro, volta-se contra ele, enquanto indivíduo real, enquanto ser vivente, enquanto sujeito da vida cotidiana. Contrapondo-se à abstração do conceito de indivíduo, esse sujeito concreto vem sendo cada vez mais empurrado para a periferia da sociedade capitalista moderna, que o toma essencialmente como um ator consumidor.

    A tese aqui defendida é que o indivíduo, referido pela ideologia igualitária do mundo ocidental, existe como abstração, como ser idea­lizado, como um bom selvagem da modernidade, enquanto o sujeito concreto, o ser individuado perde, na realidade, importância, acabando por tornar-se quase um mito da ideologia individualista e igualitária. Assim, indivíduos abstratos são muito bem tratados por essa ideo­logia, mas não se pode dizer o mesmo dos sujeitos. Na medida em que aqueles são considerados iguais, particularmente perante as leis, o mesmo não acontece com esses sujeitos, submetidos a leis feitas e interpretadas por sujeitos teoricamente a serviço daquela igualdade, mas na prática subjugados por outros sujeitos que têm poder político, social ou econômico, e dos quais também se poderia dizer que são mais iguais do que a maioria.

    A igualdade da ideologia capitalista moderna aparece, assim, como uma ilusão porque, distinguindo um indivíduo de todos os outros pela sua individualidade radical, estimula todos eles a encetarem uma competição econômica que impossibilita na prática a vivência igualitária em termos de resultados, que parece ser o fim mais justo propugnado pela ideologia igualitarista. Mas é fácil perceber que o extremado valor atribuído ao indivíduo na sociedade moderna contradiz peremptoriamente qualquer tentativa de estabelecimento de uma sociedade igualitária naqueles termos. Na realidade, aquela ideologia prepara o cenário onde vicejam as maiores desigualdades, apesar do discurso igualitarista que tanto crédito parece conceder aos valores e objetivos da sociedade moderna.

    Por outro lado, também se pode considerar como mito o fato de que nas sociedades tradicionais o que conta é a coletividade, e não o indivíduo em si, o sujeito isolado. A ideia de que essas sociedades tem uma ideologia holista radical, sem espaço para o valor individual, deve ser rediscutida para que se reconheça a importância que o indivíduo sempre teve e continua tendo nelas. Uma das propostas deste livro é mostrar que o sujeito das sociedades tradicionais é, ao contrário do que a antropologia tem assinalado, um objeto mais do que importante em sua sociedade e, como tal, valorizado também em termos ideológicos.

    Com essas observações pretendo abrir espaço para a discussão das desigualdades nas sociedades tradicionais, na medida em que o agente social constitui um sujeito individualizado, que entra em conflito e competição com seus pares e quer ser o melhor porque a sociedade o estimula nesse caminho. Com isso, os indivíduos que reúnem maiores qualidades, sem pretender exercer um poder indevido sobre os seus pares, acabam se tornando mais importantes do que os outros, mas num quadro de desigualdade moderada, consentida e controlada pelo grupo. Assim, atuando em conformidade com os padrões esta­belecidos pela coletividade, tais indivíduos são vistos como modelos a serem seguidos. Não podem, no entanto, fazer do status e prestígio que angariam uma fonte de arrogância, orgulho, soberba e poder; e os que se arriscam a desafiar a norma pagam um elevado preço pela ousadia, se continuarem vivos.

    Para aprofundar a reflexão sobre a questão prática da igualdade, volto-me para a análise de como a antropologia vê a questão do igualitarismo nos grupos tribais, particularmente entre os caçadores-coletores. Existe uma ampla discussão na literatura antropológica em torno do igualitarismo nessas sociedades, e o consenso é de que os grupos de caçadores coletores com tecnologia mais primitiva e que, por isso, praticam a chamada economia de retorno imediato, são os mais igua­litários que se conhece. As pesquisas e as discussões em torno desses grupos servem para caracterizar o quadro econômico e a teia de relações sociais que o modo de vida em torno da caça e da coleta implica. A orga­nização familiar é observada de perto, uma vez que fornece material interessante para o estudo das relações de gênero e também para se avaliar a posição – e as desigualdades sociais – de homens e mulheres dentro e fora do âmbito familiar. Atenção especial, contudo, será dada às lideranças entre os caçadores-coletores, objetivando vislumbrar o tipo de poder que desfrutam, considerando particularmente a relação desse poder com a propriedade e com valores simbólicos, como o pres­tígio e o status que possuem e que os diferenciam, nem sempre mini­mamente, dos demais membros da comunidade.

    Este livro leva à comprovação da existência de óbvias desigual­dades sociais nas sociedades tradicionais, como também – e aqui está embutida a originalidade da formulação desenvolvida com base em extensa pesquisa – demonstra que, particularmente entre os grupos caçadores-coletores mais igualitários, elas têm um sentido positivo. Isso porque essa desigualdade não se faz presente com o objetivo de favorecer o indivíduo como tal; ela existe, com o consentimento da coletividade, como um instrumento para beneficiar a sociedade como um todo. Pode ser chamada, portanto, de desigualdade consentida, ou melhor, desigualdade positiva, porque, mantida sobre o controle rígido do conjunto social, configura um modelo baseado nas qualidades supe­riores dos melhores indivíduos, que compartilham o resultado do seu trabalho com a coletividade.

    Essa desigualdade reverte, portanto, para a sociedade a eficácia e a competência dos indivíduos mais bem-dotados. E todos são esti­mulados a perfazer esse modelo. Em contrapartida, esses indivíduos recebem louvores, regalias e privilégios da coletividade, enquanto se comportam como as leis determinam, isto é, com comedimento, generosidade e modéstia, sem tirar proveito pessoal da posição que desfrutam e do poder advindo particularmente da prática da poliginia que lhes é facultada. A desigualdade nessas sociedades caçadoras-coletoras, portanto, não deve se resumir – como é comumente referido nas pesquisas sobre o tema – a uma quantificação das diferenças de status, poder e prestígio para mostrar que tais sociedades são as mais igua­litárias que existem, uma vez que aquelas diferenças são muito redu­zidas quando comparadas a sociedades desigualitárias. As desigual­dades não precisam necessariamente se reduzir a um mínimo porque, como se procura demonstrar, a sociedade não atua no sentido de buscar uma igualdade radical entre seus agentes sociais.

    Isso acontece, primeiro, porque a sociedade sabe que isso não é factível – afinal, as desigualdades decorrem das inegociáveis diferenças individuais em termos de qualidade, capacidade, desempenho e efi­cácia –, depois, porque ela manipula a desigualdade a seu favor, fazendo com que os melhores indivíduos revertam o resultado do seu trabalho para o conjunto da sociedade, sem angariar com isso qualquer poder ilegítimo que fatalmente colocaria em risco a ordem social. Por isso, tais indivíduos são constantemente enquadrados pela coletividade, não obstante o fato de não desejarem romper esse enquadramento porque é o comportamento de submissão às normas sociais que os valoriza perante seus pares, os quais lhes concedem em troca regalias, recom­pensas e privilégios de que são julgados merecedores.

    A desigualdade positiva entre os caçadores-coletores com perfil igualitário consiste em conviver com as inevitáveis desigualdades – mantidas sempre dentro de limites razoáveis – que emergem das capa­cidades individuais, de modo a torná-las positivas para a coletividade, num procedimento que a nosso ver, na linha inspirada pelos trabalhos de Marcel Mauss, configura a troca original feita entre a coletividade e os indivíduos superiores. Original porque é fundadora da sociedade, num processo de fusão entre a biologia, a psicologia (categorias marcantes das diferenças individuais), o social e o cultural (instâncias que propõem os caminhos eficazes – vale dizer, normas, valores, padrões de compor­tamento – tendo em vista os objetivos da sociedade), que resulta em benefício da coletividade. A desigualdade positiva, portanto, ancorada na diferença individual inerente a cada sujeito como expressão de sua singularidade, possibilita, nas sociedades caçadoras-coletoras mais igualitárias, a vivência social em termos de uma igualdade possível, que se coloca, dessa maneira, a favor da comunidade como um todo e de todos os indivíduos como sujeitos particulares.

    PARTE I

    IGUALITARISMO, INDIVIDUALISMO, DIFERENÇA E DESIGUALDADE

    CAPITULO 1

    A QUESTÃO DO IGUALITARISMO

    A desigualdade parece ser uma característica inevitável da condição humana.

    (Lloyd Fallers, 1966, p. 144)

    Nas sociedades que existiram historicamente, nunca todos

    os indivíduos foram livres ou iguais entre si. A sociedade de livres

    e iguais é um dado hipotético, apenas imaginado,

    (Norbert Bobbio, 1997, p. 8)

    Em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau avança a hipótese de que – à parte as óbvias diferenças biológicas que sempre distinguiram os seres humanos – eles viveram originalmente um período pré-societário de franca igualdade e convivência fraterna, ancorados num sentimento de bondade natural que empolgava igualmente todos os homens. A partir, porém, do momento em que eles se reuniram para viver em grupamentos e se beneficiar da vida em coletividade, particularmente em termos de segurança e provisão, as diferenças individuais deram ensejo à emer­gência de habilidades socialmente valorizadas, o que resultou num processo desagregador das qualidades humanas originais. Logo, o que constituía um paraíso de relações amistosas e igualitárias foi se modi­ficando – no embalo das rivalidades, competições e confrontos –, para fazer emergir um universo cada vez mais complexo, conflituoso, indi­vidualista e, por assim dizer, desumano. Acima de tudo, um mundo marcado pela desigualdade.

    O tema da igualdade, desde Platão aos nossos dias, tem sido considerado com bastante vigor, particularmente no campo da filosofia. Discussões sobre o seu significado, alcance, conteúdo, bem como sobre sua aplicação prática nos diferentes contextos políticos, sociais e econômicos, têm proliferado com crescente intensidade. O ideal igualitário, ainda que essa expressão esteja longe de oferecer um consenso científico, é moeda corrente na atualidade, particularmente no chamado mundo ocidental.¹ A tendência no sentido de uma igualdade cada vez maior [...] é irresistível, observa Norberto Bobbio. A igualdade entendida como equalização dos diferentes é um ideal permanente e perene dos homens vivendo em sociedade. (BOBBIO, 1997 p. 43). E o inverso se pode dizer da desigualdade, elevada à condição de inimigo público por excelência, cuja permanência desafia a imaginação dos mais ardentes igualitaristas.

    A retórica igualitária, aliás, tem provocado uma variada gama de reações, que vão desde os que consideram o igualitarismo apenas um exercício, visando a marcar uma postura politicamente correta, àqueles que veem nela uma forma que exprime, ainda que diluída, uma espécie de obsessão por uma causa fundamentalmente justa, a favor da qual a opinião – tanto de leigos como de iniciados – parece beirar a unanimidade. E isso acontece mesmo levando em conta que um signi­ficado mais preciso da igualdade é sistematicamente descartado de uma discussão aprofundada, face à obviedade que o termo neces­sariamente parece implicar. Mas à medida que se acerca do tema, que o nível de abstração se reduz e se levanta a questão do igualitarismo, quer em termos de uma definição mais precisa, quer em termos dos ingredientes que se devem considerar para que a ideia de igualdade seja permeada por um sentimento de justiça, quer ainda visando à aplicabi­lidade do igualitarismo numa dada realidade concreta, o problema se complica enormemente.

    Em instigante artigo intitulado Against equality, J. R. Lucas considera que:

    A demanda por Igualdade torna obsessivo todo nosso pensa­mento político. Nós não temos certeza do que ela significa [...] mas temos certeza de que, seja o que for, nós a queremos muito: e enquanto estamos preparados para conviver com a frustração, a injustiça ou a violência com tolerância, como se fizessem parte da ordem natural das coisas, nós manifestamos a mais profunda indignação e revolta à simples menção da Desigualdade. No que me concerne, acho deplorável a atual obsessão com a Igual­dade. (LUCAS, 1997, p. 104-105).

    E buscando deixar patente a dificuldade de se pensar o igualitarismo de maneira verdadeiramente igualitária, Lucas ainda observa:

    Legalidade, justiça, imparcialidade, equidade e humanidade, produzem Igualdade em algumas ocasiões e em certa medida, mas a medida nunca é exata e nenhuma delas é essencialmente igualitária. A Igualdade que pretende ir além disso, a igualdade a que todos aspiramos, é inatingível e, para mim, indesejável. (...) Nunca seremos capazes de evitar algumas desigualdades; nunca poderemos evitar uma desigualdade de poder, como não podemos evitar uma desigualdade de prestígio. [...] Pode­mos propiciar Igualdade em certos aspectos a membros de cer­tas classes para certos propósitos e sob certas condições, mas nunca, e necessariamente nunca, igualdade em todos os aspec­tos a todas as pessoas para todos os propósitos e sob todas as condições. O igualitarista está condenado a uma vida não ape­nas de lamento e duradoura inveja, mas de perpétuo e inevitável desapontamento. (LUCAS, 1997, p. 109, 110, 111).

    As críticas que se fazem a considerações como as feitas por Lucas buscam destacar, antes de tudo, a forma radical e, portanto, pouco proveitosa de tentar perceber o igualitarismo. Afinal, poder-se-ia argu­mentar que, ainda que não se possam criar condições para se tornar efetiva uma igualdade absoluta, deve-se trabalhar no sentido de se chegar o mais próximo dela. Ou seja, ainda que a igualdade seja neces­sariamente relativa, nada impede que se procure acionar mecanismos no sentido de minimizar as inevitáveis desigualdades.

    Dois pontos surgem dessas observações. Primeiro, qualquer con­texto em que se permite o exercício da desigualdade pode sempre ser visto como iníquo, vale dizer, moralmente condenável e reclamante de justiça. Por menor que seja a diferença entre os desiguais, ao nível da realidade empírica a desigualdade parece sempre revelar uma desar­monia entre os agentes sociais, via de regra percebida como injusta, perversa e degradante, essencialmente contrária à igualdade que deve prevalecer entre aqueles que são iguais pela natureza comum da sua humanidade. Depois, ao se admitir uma desigualdade – ainda que incipiente na visão de alguns –, não se poderia mais falar em contexto formalmente igualitário. A questão se afastaria, portanto, de uma dis­cussão sobre igualitarismo para dar lugar a considerações sobre uma maior ou menor desigualdade vigorante em dado contexto. Estar-se-ia admitindo, portanto, como fato consumado, a não existência de con­dições para a emergência de um contexto igualitário, qualquer que seja o universo considerado. Em consequência, não haveria muito sentido em se discutir o igualitarismo, mas os diferentes aspectos referentes à desigualdade, admitida, então, como irrecorrível, em qualquer con­texto social. E nesse caso, as críticas a J. R. Lucas teriam que ser revistas em alguma profundidade.

    No campo da antropologia social, Louis Dumont é seguramente quem mais contribuiu para a discussão de temas como o individualismo, hierarquia e igualdade em variados contextos sociais. Dumont constata também a existência de uma onda igualitária de feição politicamente correta, chegando mesmo – ao se referir ao simplismo e à abstração que frequentemente se associam à ideia de igualdade – a cunhar a expressão fé ingênua no igualitarismo. Mostrando que, para compreender de maneira ampla o sistema de castas – objeto de estudo de sua celebrada obra Homo hierarchicus –, é preciso desobstruir a visão do homem moderno, deformada pela lente igualitarista, Dumont, que estudou o sistema de castas indiano, enfatiza que a ideologia desse sistema:

    É diretamente contradita pela teoria igualitária de que participamos. E é impossível compreender uma, enquanto a outra – a ideologia moderna – for tomada como verdade universal, não só enquanto ideal moral e político – o que constitui profissão de fé indiscutível –, mas também como expressão adequada da vida social, o que é um julgamento ingê­nuo. [...] A chave de nossos valores é fácil de ser encontrada. Nossas ideias cardinais chamam-se igualdade e liberdade. Elas supõem como princípio único e representação valorizada a ideia do indivíduo humano: a humanidade é constituída de homens, e cada um desses homens é concebido como apre­sentando, apesar de sua particularidade e fora dela, a essência da humanidade. [...] Esse indivíduo é quase sagrado, absoluto; não possui nada acima de suas exigências legítimas; seus direi­tos só são limitados pelos direitos idênticos dos outros indivíduos. (DUMMONT, 1992, p. 52, 53 – grifo meu).

    Segundo Dumont, o traço moderno que se opõe mais imedia­tamente ao sistema de castas [é] a igualdade. O ideal de liberdade e de igualdade se impõe a partir da concepção do homem como indivíduo. (DUMONT, ibidem, p. 59)

    A discussão em torno da igualdade tem destacado amplamente a dificuldade de se atribuir ao conceito um conteúdo preciso, com con­tornos bem delimitados. E o que tem homogeneizado a postura dos que tratam o igualitarismo de maneira menos generalizada

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