Páscoa Vieira diante da Inquisição: Uma escrava entre Angola, Brasil e Portugal no século XVII
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Sobre este e-book
A partir de uma pesquisa histórica baseada no processo inquisitorial de Páscoa Vieira, conservado há trezentos anos nos arquivos eclesiásticos de Portugal, e em uma série de outras fontes de época, o livro oferece um impressionante panorama das sociedades escravistas do Atlântico sul – do Brasil e de Angola –, revelando o incisivo papel da Igreja nesses contextos.
Com vasto conhecimento sobre o Brasil colonial, a historiadora francesa Charlotte de Castelnau-L'Estoile narra, antes de mais nada, o destino de uma africana que enfrentou,com valentia, as violências impostas pela escravidão. Nesse caminho, o que se destaca é a voz de Páscoa Vieira, que mesmo presa nos porões inquisitoriais, submetida ao medo e a repetidas sessões de interrogatório nunca se dobrou frente aos juízes da Inquisição. É, portanto, uma trajetória de força e resistência que descobrimos neste livro.
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Páscoa Vieira diante da Inquisição - Charlotte de Castelnau-L'Estoile
Aos 7 dias do mês de Julho deste presente ano, nesta Cidade do Salvador Bahia de Todos os Santos, em pousadas de Antão de Faria Monteiro, Comissário do Santo Ofício de Lisboa adiante assinado, apareceu presente Francisco Álvares Távora, Tabelião Público nesta dita Cidade, e por ele me foi dito, que por temer a Deus, e desencarregar sua consciência, denunciava, como por esta denúncia, de uma escrava sua do Gentio de Guiné por nome Páscoa, por haver cometido o crime de bigamia, sendo vivo seu primeiro marido em Luanda, Reino de Angola, e se recebeu nesta Cidade com Pedro, escravo dele denunciante, o que sabe ele denunciante por lhe dizer seu primo Luiz Álvares Távora, vindo do mesmo Reino de Angola e outrossim o Capitão Antônio Machado de Brito, que veio do mesmo Reino (...). E logo no mesmo dia e hora, declarou ele denunciante que o marido da dita escrava no Reino de Angola se chamava Aleixo e era escravo de Pascoal da Motta Teles, morador na Vila de Massangano e mais não disse.¹⁴
Esse é o ponto de partida de todo o caso: uma denúncia por bigamia feita ao comissário da Inquisição de Lisboa em Salvador, em julho de 1693. O denunciante, um notário daquela cidade, delatou sua própria escrava Páscoa. O escrivão do comissário que recolhera o depoimento se designou na primeira pessoa no documento. Os quatro personagens importantes da cena, a saber, o comissário da Inquisição de Lisboa, o denunciante e as duas testemunhas, assinaram duas vezes o documento: abaixo da primeira parte da denúncia e depois da segunda parte. As oito assinaturas numa só página comprovam, assim, o caráter oficial e bastante solene daquela declaração. Denunciar uma pessoa à Inquisição era um ato grave, que geralmente se fazia em nome de um interesse superior, a luta contra a heresia, e não por maldade ou por vingança. Francisco Álvares Távora, o denunciante, foi movido pelo sentimento de medo
; medo de Deus e da Inquisição. Essa denúncia de uma escrava ao Tribunal do Santo Ofício, feita por seu próprio senhor, nos faz mergulhar a fundo tanto na mecânica inquisitorial, quanto no âmago das relações entre senhores e escravos na capital da colônia do Brasil, no final do século XVII.
O medo da Inquisição
A Inquisição foi uma instituição medieval criada no século XIII para lutar contra a religião dos cátaros, considerada pela Igreja uma heresia, ou seja, um desvio da fé católica.¹⁵ Em princípio, a Inquisição perseguia apenas os cristãos batizados que se afastaram dos preceitos da Igreja e eram por ela condenados por praticarem crimes qualificados como heréticos. Na época moderna, o tribunal da Inquisição passa por uma refundação, primeiro na Espanha, em 1478, no reino de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, que fizeram da unificação religiosa de seus territórios o principal objetivo de sua política e de seu poderio. A Inquisição teve então como alvo essencial os conversos, católicos de origem judaica, que eram numerosos na Espanha depois das grandes perseguições do século XIV e frequentemente suspeitos de serem falsos cristãos que continuavam praticando os ritos da lei de Moisés. Em 1492, depois da queda do reino de Granada, último território muçulmano da Península Ibérica, a população que permanecera judia foi obrigada a deixar a Espanha ou aceitar a conversão. No mesmo ano, Cristóvão Colombo descobriu a América em nome de Isabel de Castela. A grandeza da Espanha brilhava com fulgor aos olhos da cristandade, e os dois soberanos receberam do papa, em 1496, o título de reis católicos
.
Portugal, outro reino da Península Ibérica, ligava-se à mesma história, embora fosse independente e estivesse fortemente empenhado, na segunda metade do século XV, na descoberta das rotas marítimas para a Índia. O país havia igualmente sofrido a invasão árabe, mas finalizara a reconquista dos reinos muçulmanos bem mais cedo, em 1249. No fim do século XV, havia ainda uma população muçulmana em Portugal, bem como uma importante comunidade judaica, reforçada pela chegada de vários judeus da Espanha a partir de