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O quarto de Jacob
O quarto de Jacob
O quarto de Jacob
E-book337 páginas9 horas

O quarto de Jacob

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Sobre este e-book

O quarto de Jacob, de 1922, é o primeiro livro experimental de Virginia Woolf. E as técnicas narrativas aqui utilizadas ainda causam, quase cem anos depois, a mesma estranheza que provocaram no início da segunda década do século passado. Mas é uma estranheza que vem acompanhada das recompensas e prazeres do novo e do inesperado. Está enxertado de pequenos ensaios sobre a ilusão identitária, sobre as mazelas do patriarcado, sobre os horrores da sanha militarista. Mas também há ilhas e remansos de pura poesia, de um lirismo deslumbrante, de um prazer estético radical e cristalino. O livro parece construído de fragmentos desconexos, de fiapos narrativos, de vinhetas isoladas. A narrativa dá pulos; salta, inesperadamente, de um contexto para outro; subverte a linearidade temporal e espacial. O personagem principal nunca é realisticamente revelado, nunca se deixa mostrar inteiramente. Ler O quarto de Jacob é uma experiência, existencial e, literariamente falando, transformadora.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de jun. de 2019
ISBN9788551304549
O quarto de Jacob
Autor

Virginia Woolf

VIRGINIA WOOLF (1882–1941) was one of the major literary figures of the twentieth century. An admired literary critic, she authored many essays, letters, journals, and short stories in addition to her groundbreaking novels, including Mrs. Dalloway, To The Lighthouse, and Orlando.

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    O quarto de Jacob - Virginia Woolf

    I

    Assim, naturalmente, escreveu Betty Flanders, enterrando os saltos do sapato mais fundo na areia, não houve outro jeito a não ser partir.

    Lentamente vertendo da ponta da pena dourada, a tinta azul-clara dissolveu o ponto final; pois ali a pena empacou; seus olhos se fixaram, e as lágrimas lentamente se acumularam. A baía inteira tremeu; o farol oscilou; e ela teve a ilusão de que o mastro do pequeno iate do sr. Connor estava envergando como uma vela de cera ao sol. Ela deu uma ligeira piscadela. Acidentes eram coisas terríveis. Deu outra piscadela. O mastro estava reto; as ondas estavam regulares; o farol estava de pé; mas a mancha se espalhara.

    ... outro jeito a não ser partir, leu ela.

    Bem, se Jacob não quer brincar (a sombra de Archer, o filho mais velho, atravessava o papel de carta e parecia azul sobre a areia, e ela sentia frio – já era três de setembro), se Jacob não quer brincar – que mancha horrível! Deve estar ficando tarde.

    "Onde está esse menino irritante?, disse ela. Não consigo vê-lo. Vá correndo atrás dele. Diga-lhe para vir de uma vez. ... mas, felizmente, rabiscou, ignorando o ponto final, tudo parece satisfatoriamente ajeitado, ainda que estejamos apertados como arenques num barril e obrigados a não fazer uso do carrinho de bebê, que a senhoria muito naturalmente não vai permitir...."

    Assim eram as cartas de Betty Flanders ao capitão Barfoot – com muitas páginas, manchadas de lágrimas. Scarborough fica a mil e duzentos quilômetros da Cornualha: o capitão Barfoot está em Scarborough: Seabrook está morto. Lágrimas faziam todas as dálias do jardim ondular em ondas rubras e a estufa de vidro reverberar em seus olhos, e salpicavam a cozinha de facas brilhantes, e faziam a sra. Jarvis, a mulher do reitor, pensar, na igreja, enquanto a melodia do hino tocava e a sra. Flanders se inclinava sobre a cabeça de seus menininhos, que o casamento é uma fortaleza e as viúvas vagam solitárias pelos campos abertos, juntando seixos, colhendo umas palhas douradas, solitárias, desprotegidas, pobres criaturas. A sra. Flanders estava viúva fazia dois anos.

    Ja–cob! Ja–cob!, gritou Archer.

    Scarborough, escreveu a sra. Flanders no envelope, sublinhando com uma linha grossa; era sua terra natal; o centro do universo. Mas e o selo? Ela vasculhou a bolsa; depois segurou-a com a boca para baixo; depois vasculhou o colo, tudo tão vigorosamente que Charles Steele, de chapéu panamá, deteve o pincel.

    Tal como as antenas de algum inseto irritável, ele nitidamente tremia. Ali estava aquela mulher se mexendo – na verdade, preparando-se para se levantar – que droga! Deu uma ligeira pincelada negro-violeta na tela. Pois a paisagem o exigia. Estava pálida demais – cinzas dissolvendo-se em lavandas, e uma estrela ou uma gaivota branca muito limpidamente suspensa – pálida demais como sempre. Os críticos diriam que estava pálida demais, pois ele era um homem desconhecido fazendo exposições obscuras, o queridinho dos filhos das senhorias, usando uma cruz na corrente do relógio e se dando por muito satisfeito se elas gostassem de seus quadros – o que ocorria com muita frequência.

    Ja–cob! Ja–cob!, gritou Archer.

    Exasperado com o barulho, embora adorasse crianças, Steele remexeu nervosamente nos montículos escuros de sua paleta.

    Vi teu irmão – vi teu irmão, disse, balançando a cabeça, quando Archer passou por ele devagar, arrastando sua pá e fazendo cara feia para o velho de óculos.

    Ali – perto da rocha, resmungou Steele, com o pincel entre os dentes, espremendo o tubo de ocre natural e com os olhos pregados nas costas de Betty Flanders.

    Ja–cob! Ja–cob!, gritou Archer, após um segundo, ainda caminhando devagar.

    A voz era de uma tristeza extraordinária. Purificada de qualquer corpo, purificada de qualquer paixão, soltando-se no mundo, solitária, sem resposta, rebentando contra as rochas – assim ela soava.

    Steele franziu a testa; mas estava satisfeito com o efeito do preto – era exatamente esse toque que aglutinava o resto. Ah, pode-se aprender a pintar aos cinquenta! Vejam Ticiano..., e, assim, tendo encontrado a tonalidade certa, olhou para o alto e viu, horrorizado, uma nuvem sobre a baía.

    A sra. Flanders se levantou, bateu num lado e outro do casaco para tirar a areia e pegou o guarda-sol preto.

    A rocha era uma daquelas rochas tremendamente sólidas, marrons, ou melhor, pretas, rochas que emergem da areia como algo primitivo. Áspera, com rugosas conchas de lapa e esparsamente coberta de mechas de algas secas, um menininho tem que afastar bem as pernas e, efetivamente, sentir-se bastante heroico, antes de chegar ao topo.

    Mas ali, bem no topo, há um buraco cheio de água, com um fundo arenoso; com uma bolha gelatinosa grudada no lado e alguns mexilhões. Um peixe passa disparado. A franja de algas castanho-amareladas tremula, e um caranguejo de carapaça opalina tenta vir à tona —

    Ah, um caranguejo gigante, murmurou Jacob —

    e começa sua jornada no fundo arenoso apoiado em débeis pernas. Agora! Jacob mergulhou a mão. O caranguejo era frio e muito leve. Mas a água estava grossa de areia e, assim, engatinhando no fundo, estava prestes a saltar, segurando o balde à sua frente, quando viu, estirados, inteiramente rígidos, lado a lado, os rostos muito vermelhos, um homem e uma mulher enormes.

    Um homem e uma mulher enormes (era dia de meio-feriado) estavam estirados, imóveis, lado a lado, com a cabeça em cima de lenços, a poucos passos do mar, quando duas ou três gaivotas roçaram graciosamente as ondas que chegavam, indo pousar perto de seus sapatos.

    Os grandes rostos vermelhos deitados em cima das bandanas ergueram os olhos na direção de Jacob. Jacob baixou os seus na direção deles. Segurando o balde com muito cuidado, Jacob então saltou deliberadamente e se afastou em passinhos rápidos, descontraído no começo, mas cada vez mais ligeiro, à medida que as ondas vinham espumando em sua direção e ele tinha que se desviar para evitá-las, e as gaivotas levantaram voo à frente dele e se foram, planando, e pousaram de novo um pouco mais adiante. Uma enorme mulher preta estava sentada na areia. Ele correu na sua direção.

    Babá! Babá!, gritou, as palavras saindo, soluçadas, no ápice de cada arquejo.

    As ondas chegavam ao redor dela. Ela era uma rocha. Estava coberta com algas que estalam quando apertadas. Ele estava perdido.

    Ali ele se plantou. O rosto se recompôs. Estava prestes a berrar quando, caída no meio dos gravetos pretos e da palha, sob o penhasco, ele viu uma caveira completa – a caveira de uma vaca, talvez, uma caveira ainda com os dentes, talvez. Soluçando, mas distraído, ele correu para longe, cada vez mais longe, acabando por tomar a caveira nos braços.

    Ali está ele, gritou a sra. Flanders, contornando a rocha e cobrindo a distância toda da praia em poucos segundos. O que é que ele pegou? Larga isso, Jacob! Põe no chão agora mesmo! Alguma coisa horrível, tenho certeza. Por que não ficou perto de nós? Garotinho danado! Agora larga isso. Agora venham, vocês dois, e ela se virou ligeiro, pegando Archer por uma mão e buscando o braço de Jacob com a outra. Mas ele escapuliu e pegou a queixada da ovelha, que estava solta.

    Sacudindo a bolsa, agarrando firme o guarda-sol, segurando a mão de Archer e contando a história da explosão de pólvora na qual o coitado do sr. Curnow perdera o olho, a sra. Flanders subiu às pressas a íngreme ruazinha, consciente o tempo todo, nas profundezas de sua mente, de algum desconsolo sepultado.

    Ali, na areia, não muito longe dos amantes, jazia a velha caveira da ovelha sem a queixada. Lavada, branca, varrida pelo vento, polida pela areia, não havia pedaço de osso mais impoluto em toda a costa da Cornualha. O cardo-marítimo brotaria pelos buracos dos olhos; ela se desfaria em pó, ou algum jogador de golfe, golpeando a bola nalgum dia bonito, levantaria alguma poeira – Não, mas não em casa alheia, pensou a sra. Flanders. É uma grande aventura vir com crianças para tão longe. Não há homem nenhum para ajudar com o carrinho de bebê. E Jacob tão difícil de lidar; tão obstinado já.

    Jogue fora, querido, por favor, disse, ao chegarem na estrada; mas Jacob se esquivava dela; e com o vento que se levantava, ela tirou o alfinete da touca, olhou para o mar e voltou a espetá-lo. O vento se levantava. As ondas mostravam aquele desconsolo, como algo vivo, persistente, à espera do açoite, de ondas antes de uma tempestade. Os barcos de pesca adernavam à beira da água. Uma pálida luz amarela se projetou pelo mar púrpura; e se extinguiu. O farol fora aceso. Venham, disse Betty Flanders. O sol ardia no rosto deles e dourava as enormes amoras que tremulavam pelo meio da sebe e que Archer tentava colher enquanto passavam.

    Não fiquem para trás, meninos. Vocês não têm nenhuma muda de roupa sobrando, disse Betty, levando-os de arrasto e observando com incômoda emoção a terra tão luridamente exposta, com súbitos lampejos de luz dos viveiros dos jardins, com uma espécie de variação entre o amarelo e o negro, contra esse ardente pôr do sol, essa espantosa agitação e vitalidade da natureza, que mexia com Betty Flanders e fazia com que pensasse em responsabilidade e perigo. Ela segurou forte a mão de Archer. E foi em frente, arrastando-se ladeira acima.

    O que foi que eu pedi para você lembrar? perguntou.

    Não sei, respondeu Archer.

    Bom, nem eu, disse Betty, com humor e simplicidade, e quem pode negar que esse esquecimento, quando combinado com exuberância, bom senso, crendices da vovó, atitudes imprevisíveis, momentos de espantosa ousadia, humor e sentimentalismo – quem pode negar que, sob esses aspectos, qualquer mulher é melhor do que qualquer homem?

    Bem, Betty Flanders, para começar.

    Ela estava com a mão na cancela do jardim.

    A carne! exclamou, baixando a tranca.

    Esquecera a carne.

    Ali estava Rebecca à janela.

    O despojamento da sala de entrada do quarto da frente da sra. Pearce ficava inteiramente à mostra às dez horas da noite quando um potente lampião a óleo era posto no meio da mesa. A impiedosa luz derramava-se sobre o jardim; atravessava todo o gramado; iluminava o balde de brinquedo e um áster púrpura e atingia a sebe. A sra. Flanders deixara sua costura em cima da mesa. Ali estavam seus grandes carretéis de algodão branco e seus óculos de aro de aço; o agulheiro; a lã marrom enrolada em volta de um velho cartão postal. Ali estavam os juncos e os exemplares da Strand; e o linóleo cheio de areia dos sapatos dos meninos. Um pernilongo disparou de uma ponta à outra da sala e esbarrou no globo do lampião. O vento fustigava a janela com certeiros golpes de chuva, que reluziam prateados ao atravessarem a luz. Uma folha solitária batia apressadamente, persistentemente, na vidraça. Havia um furacão no alto-mar.

    Archer não conseguia dormir.

    A sra. Flanders inclinou-se sobre ele. Pense nas fadas, disse Betty Flanders. Pense nos lindos, lindos pássaros, acomodando-se em seus ninhos. Agora feche os olhos e veja a velha mamãe-pássaro com uma minhoca no bico. Agora vire-se e feche os olhos, murmurou, e feche os olhos.

    A casa parecia cheia de gorgolejos e correntezas; a cisterna transbordava; a água borbulhava e chiava e corria pelos canos e escorria janela abaixo.

    O que é toda essa água correndo?, murmurou Archer.

    É apenas a água do banho escoando, disse a sra. Flanders.

    Alguma coisa estalou lá fora.

    Mas aquele navio não vai afundar?, perguntou Archer, abrindo os olhos.

    Claro que não, disse a sra. Flanders. Já faz tempo que o capitão foi dormir. Feche os olhos, e pense nas fadas, dormindo profundamente debaixo das flores.

    Pensei que ele não ia adormecer nunca – com um furacão desses, sussurrou para Rebecca, que se inclinava sobre uma espiriteira no quartinho ao lado. O vento soprava forte lá fora, mas a pequena chama da espiriteira queimava silenciosamente, um livro em pé servindo de anteparo entre ela e o berço.

    Ele tomou bem a mamadeira?, murmurou a sra. Flanders, e Rebecca fez que sim com a cabeça, indo até o berço e ajeitando a coberta, e a sra. Flanders se inclinou sobre o bebê e o contemplou ansiosamente, vendo que dormia, mas com a testa franzida. A janela sacudia, mas Rebecca se esgueirou como um gato, travando-a com um calço. As duas mulheres murmuravam por sobre a espiriteira, tramando a eterna conspiração do psiu e das mamadeiras limpas, enquanto o vento se enfurecia e dava um puxão repentino nas tramelas baratas.

    As duas se viraram para dar uma espiada no berço. Seus lábios estavam contraídos. A sra. Flanders atravessou o quarto, indo até o berço.

    Dormindo?, sussurrou Rebecca, espiando o berço.

    A sra. Flanders fez que sim com a cabeça.

    Boa noite, Rebecca, murmurou a sra. Flanders, e Rebecca chamou-a de senhora, embora elas fossem conspiradoras tramando a eterna conspiração do psiu e das mamadeiras limpas.

    A sra. Flanders havia deixado a espiriteira queimando na sala da frente. Ali estavam seus óculos, sua costura; e uma carta com o carimbo postal de Scarborough. Ela também não havia fechado as cortinas.

    A luz irradiava sua chama pelo gramado; derramava-se por sobre o baldinho verde das crianças com a listra dourada em volta e o áster que tremulava violentamente ao seu lado. Pois o vento se lançava ao longo da costa, arremetia contra os montes e saltava, em súbitas rajadas, para o alto de seu próprio dorso. Como se esparramava pelo vilarejo no vale! Como as luzes pareciam piscar e tremular diante de sua fúria, luzes no porto, luzes nas janelas dos dormitórios lá no alto! E, revolvendo ondas negras à sua frente, se precipitava pelo Atlântico, sacudindo para cá e para lá as estrelas sobre os navios.

    Houve um clique na sala da frente. O sr. Pearce apagara a espiriteira. O jardim apagou. Não passava de um terreno escuro. Cada centímetro estava encharcado de chuva. Cada fiapo de grama estava dobrado pela chuva. Pálpebras tinham sido cerradas pela chuva. Deitando-se de costas não se veria nada a não ser desordem e confusão – nuvens dando voltas e voltas, e alguma coisa sulfurosa e tingida de amarelo na escuridão.

    No quarto da frente, os meninos tinham deixado os cobertores de lado e estavam deitados debaixo dos lençóis. Estava quente; muito úmido e abafado. Archer estava todo estendido, com um braço jogado por cima do travesseiro. Estava com o rosto vermelho; e, quando a pesada cortina se agitou um pouco, ele se virou e meio que abriu os olhos. Na verdade, o vento remexeu a toalhinha da cômoda, deixando entrar um pouco de luz, de modo que a aguda quina da cômoda se tornou visível, estendendo-se reta até o topo, onde uma forma branca sobressaía; e uma listra prateada mostrou-se no espelho.

    Na outra cama, junto à porta, Jacob jazia adormecido, profundamente adormecido, profundamente inconsciente. A queixada da ovelha com os grandes dentes amarelados jazia a seus pés. Ele a tinha jogado, com um pontapé, contra a guarda de ferro da cama.

    Lá fora a chuva caía a prumo e com mais força à medida que o vento diminuía nas primeiras horas da manhã. O áster caíra por terra. O balde de brinquedo estava cheio até a metade com a água da chuva; e o caranguejo de carapaça opalina circulava lentamente pelo fundo, tentando, com suas débeis patas, subir pela lateral inclinada; tentando mais uma vez, e caindo, e tentando uma vez e outra mais.

    II

    A sra. FlandersPobre da Betty FlandersQuerida BettyEla ainda é muito atraenteEstranho não ter se casado de novo! Tem o capitão Barfoot, claro – vem em visita toda quarta-feira, tão certo quanto um relógio, e nunca traz a esposa.

    Mas é culpa da Ellen Barfoot, diziam as senhoras de Scarborough. Ela não se importa com ninguém.

    Um homem gosta de ter um filho – todo mundo sabe.

    Alguns tumores têm que ser extirpados; mas o tipo que minha mãe teve suporta-se por anos a fio, sem que nunca lhe sirvam sequer uma xícara de chá na cama.

    (A sra. Barfoot era inválida.)

    Elizabeth Flanders, da qual isso e muito mais que isso se tem dito e seria dito, era, é claro, uma viúva na flor da idade. Estava a meio caminho entre os quarenta e os cinquenta. Entre eles, anos e tristeza; a morte de Seabrook, o marido; três meninos; a pobreza; uma casa num dos arrabaldes de Scarborough; o irmão, o pobre do Morty, sua ruína e possível falecimento – pois onde estava ele? o que ele era? Protegendo os olhos com a mão, buscou pelo capitão Barfoot ao longo da estrada – sim, ali estava ele, pontual como sempre; as atenções do capitão – tudo amadurecia Betty Flanders, alargava-lhe a figura, tingia-lhe o rosto de alegria e inundava-lhe os olhos talvez três vezes ao dia por nenhuma razão que se pudesse perceber.

    Sim, não há nenhum mal em chorar pelo marido, e a lápide, embora simples, era uma peça sólida, e nos dias de verão, quando a viúva trazia os meninos para ficarem um pouco por ali, as pessoas sentiam compaixão por ela. Chapéus eram erguidos mais alto do que de costume; esposas pegavam no braço do marido. Seabrook jazia sete palmos abaixo da terra, morto durante todos esses anos; encerrado num caixão triplamente revestido; as fissuras lacradas com chumbo, de tal forma que, se terra e madeira fossem vidro, sem dúvida se veria até o rosto lá embaixo, o rosto de um homem jovem, de suíças, bem talhado, que saíra para caçar patos e se recusara a trocar de botas.

    Comerciante desta cidade, dizia a lápide; embora a razão pela qual Betty Flanders decidira chamá-lo assim quando, como muitos ainda lembram, ele ocupara um escritório apenas por três meses, e antes disso domara cavalos, fora obcecado por cães de caça, cultivara uns poucos campos e vivera meio sem rumo – bem, ela tinha que chamá-lo de alguma coisa. Um exemplo para os meninos.

    Não fora ele, então, nada? Uma questão irrespondível, pois mesmo que não fosse hábito do agente funerário cerrar os olhos dos mortos, a luz muito cedo se vai deles. No começo, parte dela própria; agora um dentre muitos, ele se fundira à grama, à íngreme encosta, às mil e tantas pedras brancas, algumas tortas, outras retas, às coroas em decomposição, às cruzes de estanho esverdeado, às estreitas trilhas amareladas e aos lilases que murchavam em abril, com um cheiro como o do quarto de um inválido, no muro do cemitério da igreja. Seabrook era agora tudo isso; e quando, com a saia repuxada, dando de comer às galinhas, ela ouvia o sino bater anunciando alguma função ou funeral, aquilo era a voz de Seabrook – a voz dos mortos.

    O galo era conhecido por subir no seu ombro e bicar-lhe o pescoço, por isso ela agora carregava uma vara ou levava uma das crianças com ela quando saía para dar de comer às aves.

    A senhora não gostaria de usar o meu canivete, mãe?, perguntou Archer.

    Soando ao mesmo tempo que o sino, a voz do filho mesclava vida e morte, inextricavelmente, arrebatadoramente.

    Que canivete enorme para um menino tão pequeno!, disse ela. Ela o pegou para agradá-lo. Então o galo saiu voando do galinheiro, e, gritando com Archer para fechar o portão que dava para o quintal, a sra. Flanders espalhou a comida no chão, chamando aos cacarejos as galinhas, caminhou apressada pelo pomar e foi vista, do outro lado, pela sra. Cranch, que, batendo seu capacho contra o muro, manteve-o suspenso no ar por um instante enquanto comentava com a sra. Page, da casa ao lado, que a sra. Flanders estava no pomar com as galinhas.

    A sra. Page, a sra. Cranch e a sra. Garfit conseguiam ver a sra. Flanders no pomar porque o pomar era um pedaço cercado de Dods Hill, a colina; e Dods Hill dominava o vilarejo. Não há palavras que consigam exagerar a importância de Dods Hill. Dods Hill era a terra; o mundo contra o firmamento; tem-se uma melhor ideia da quantidade de olhares para os quais ela era o horizonte quando se considera as pessoas que viveram toda a sua vida no mesmo vilarejo, deixando-o apenas uma vez para lutar na Crimeia, tal como o velho George Garfit, agora debruçado sobre o portão de seu jardim, fumando seu cachimbo. O movimento do sol era medido por ela; a tonalidade do dia era contrastada com ela para poder ser julgada.

    Agora ela está subindo a colina com o pequeno John, disse a sra. Cranch para a sra. Garfit, sacudindo o capacho pela última vez, e entrando apressada em casa.

    Abrindo a portinhola do pomar, a sra. Flanders caminhou até o topo de Dods Hill, segurando John pela mão. Archer e Jacob corriam à frente ou ficavam para trás; mas eles estavam na fortaleza romana quando ela chegou lá, anunciando aos gritos quais navios podiam ser vistos na baía. Pois havia uma vista magnífica – atrás os urzais, o mar à frente, e Scarborough inteira, de uma ponta à outra, estendendo-se plana, como um quebra-cabeça. A sra. Flanders, que estava ficando corpulenta, sentou-se na fortaleza e olhou à sua volta.

    A gama inteira de variações dessa vista devia ser de seu conhecimento; seu aspecto no inverno, na primavera, no verão e no outono; que as tempestades vinham da direção do mar; que os urzais tremulavam e brilhavam enquanto as nuvens passavam no alto; ela devia ter notado a malha vermelha onde as villas estavam sendo construídas; e o entrelaçado de linhas que dividiam os lotes de plantio; e a cintilação como de diamante das estufas de vidro ao sol. Ou, se detalhes como esses lhe escapassem, ela podia deixar a imaginação se divertir com o tom dourado do mar ao pôr do sol e fantasiar sobre como suas ondas se desfaziam em moedas de ouro sobre o cascalho. Pequenos barcos de passeio eram empurrados para o meio dele; o braço negro do píer o recolhia. A cidade inteira estava colorida de rosa e ouro; abobadada; cercada de bruma; ressonante; estridente. Banjos eram arranhados; o calçadão cheirava a piche, que grudava nos saltos dos sapatos; cabras puxando suas carrocinhas se metiam de repente pelo meio da multidão. Comentava-se que a prefeitura tinha feito dos canteiros de flores uma maravilha. De quando em quando um chapéu de palha voava ao vento. Tulipas queimavam ao sol. Inúmeras calças axadrezadas se dispunham em fileiras. Toucas púrpuras envolviam rostos flácidos, arroxeados, queixosos, recostados sobre almofadas em cadeiras de rodas. Cartazes triangulares eram empurrados, sobre rodinhas, por homens vestidos de casaco branco. O capitão George Boase pegara um tubarão enorme. Um lado do cartaz anunciava isso em letras vermelhas, azuis e amarelas; e cada linha terminava com três pontos de exclamação de cores diferentes.

    Assim, essa era uma razão para descer ao Aquário, onde as persianas descoradas, o cheiro penetrante do ácido muriático, as cadeiras de bambu, as mesas com os cinzeiros, o peixe indo e vindo, a atendente tricotando atrás de seis ou sete caixas de chocolate (ficava quase sempre muito sozinha com o peixe por horas a fio), permaneciam na cabeça como parte do enorme tubarão, ele próprio não passando de um flácido receptáculo amarelo, como uma maleta de médico vazia dentro de um tanque. Ninguém jamais se divertira com o Aquário; mas os rostos dos que saíam de lá perdiam muito rapidamente sua expressão sombria, desanimada, ao perceberem que bastava entrar numa fila para ter direito à entrada no píer. Após ter passado pela borboleta, todo mundo caminhava ligeiro por um metro ou dois; alguns se deixavam ficar nesta barraca; outros, naquela. Mas era a banda que, afinal, atraía a todos; inclusive os pescadores, assumindo seus postos, no último píer, ao alcance da música.

    A banda tocava no coreto mourisco. O número nove subiu no quadro. Era uma valsa. As mocinhas pálidas, a velha viúva, os três judeus hospedados na mesma pensão, o dândi, o major, o negociante de cavalos e o cavalheiro que vivia de rendas, todos exibiam a mesma expressão vaga e entorpecida, e, pelas frestas das tábuas a seus pés, podiam ver as verdes ondas de verão bamboleando calmamente, amavelmente, em volta dos pilares de ferro do píer.

    Mas houve um tempo em que nada disso existia (pensava o jovem encostado no parapeito). Reparem na saia da mulher; a de cor cinza se presta ao caso – acima das meias de seda cor-de-rosa. Ela se modifica; cobre os tornozelos – anos noventa; então se alarga – anos setenta; agora ganha um lustre vermelho e se alarga sobre uma crinolina – anos sessenta; um pezinho preto em meias de algodão branco mal se mostra. Ainda sentada ali? Sim – ela ainda está no píer. A seda é agora estampada com raminhos de rosa, mas de alguma forma já não se vê mais tão claramente. Não há nenhum píer sob nossos pés. A pesada carruagem pode disparar pela estrada em que se paga pedágio, mas não há nenhum píer onde ela possa estacionar, e como é cinza e turbulento o mar do século dezessete! Vamos ao museu. Balas de canhão; pontas de lanças; taças romanas e um fórceps esverdeado pelo azinhavre. O reverendo Jaspar Floyd desenterrou-os às suas próprias custas no começo dos anos quarenta

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