Humano Monstro
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Humano Monstro - Ivon Mendes de Barros
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
Figura 1 – Personagens Schilitzie e Cleópatra
Fonte: desenho de Ivon Mendes, autor deste livro.
Dedico esta obra às pessoas que veem beleza em algo ou alguém considerado feio pela maioria; aos indivíduos que percebem que somos todos humanos, exatamente por sermos diversos; aos que buscam exercer a alteridade entre os outros.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao meu orientador, Luiz Vadico, que me acompanhou na caminhada da pesquisa, como um pianista de música experimental. A cada um dos professores e professoras do meu curso de mestrado, pelos preciosos conhecimentos repartidos.
À minha família toda, em especial meu irmão Laan, que me incentivou à vida acadêmica e me orientou no desenvolvimento desta pesquisa; à minha irmã, Aracy, por me acolher em ocasiões de inquietação; à minha sobrinha, Giovanna, ao meu afilhado, Paulo Vitor, e ao meu irmão, Olímpio, por me ajudarem com importantes necessidades práticas; à minha companheira de vida, Andréia, por me ouvir, conversar, abraçar e acompanhar meus estudos.
Sou grato a todos e a todas os/as estudantes que estiveram comigo em sala de aula, pois no exercício do ensino-aprendizagem construímos muito conhecimento.
Ao Gal Oppido, por me autorizar a inserir suas fotos neste livro e por repartir suas ideias comigo, inclusive na entrevista que me concedeu.
Ao Marcelo Denny, que, neste livro, faz-me mais inteiro com seu prefácio.
À Leda Ferreira, que exerceu a alteridade comigo e apreendeu a minha subjetividade ao fazer a revisão deste texto.
Ao Marcelo Guedes, por capturar a foto de orelha, e ao Bruno Makia, por clicar meus desenhos.
Agradeço, também, aos artistas do cinema que realizaram filmes e aos pesquisadores e pesquisadoras que compartilharam suas ideias em textos, aos quais eu tive acesso e com eles pude construir conhecimentos e desenvolver esta obra.
Agradeço à força divina, por ter me dado o dom da vida e a capacidade de pensar e construir ideias. Ideias monstruosas, maneiras de encarar os monstros, que estão no cinema e dentro de mim.
OUTRO MONSTRO
OUTRO EU
EU MONSTRO
EU OUTRO
MONSTRO OUTRO
HUMANO MONSTRO
HUMANO EU
OUTRO HUMANO
EU HUMANO
MONSTRO HUMANO
IDENTIDADE MONSTRO
IDENTIDADE EU
IDENTIDADE OUTRO
MONSTRO IDENTIDADE
ALTERIDADE MONSTRO
ALTERIDADE EU
MONSTRO ALTERIDADE
CORPO MONSTRO
CORPO EU
CORPO OUTRO
QUEM TEM MEDO DO LOBO MAU
QUEM TEM MEDO DO HUMANO MONSTRO
TEMPESTADE DE IDEIAS
NOME DE TURBILHÃO CEREBRAL
NOMEAR A IDENTIDADE
PENSAR ALTERIDADE
VENTANIA NA IPSEIDADE
Ivon Mendes
PREFÁCIO
Esta obra, em que aqui construo um prefácio, pode e deve criar reflexões pertinentes, pois a pesquisa de Ivon Mendes investiga mais do que a caracterização de personagens no cinema, assunto sobre o qual o autor tem vasto conhecimento. Temos, aqui, uma rica análise do poder dos corpos com deficiências e o espanto que eles causaram na puritana América do Norte em 1932, com o filme Freaks, do diretor Tod Browning. Nesse filme, o diretor apropria-se da (cruel) tradição dos freak shows, comuns nos EUA e na Europa naquele período, para narrar as desventuras de uma trupe formada, em sua maioria, por corpos deformados e amáveis. Porém a carga dramática do filme mora na dicotomia e psicopatia entre o preconceito e o medo, que coloca o espectador (como também o leitor deste livro) em xeque, pois o conceito de monstruosidade pode e deve ser revisado a todo o instante. Para tal operação, o filme usa as deformidades corporais reais de algumas personagens versus a monstruosidade do caráter das personagens normais
. Desse embate, o filme nos dá uma angustiante crônica da sociedade corpofóbica da época. Mas também notamos, daqui do século XXI, que, infelizmente, o filme é mais atual do que nunca.
A recepção de Freaks, na época de seu lançamento, foi de medo e apavoramento geral, o que pressionou o estúdio produtor a banir o filme das telas. Décadas depois foi redescoberto e configurou-se em um clássico do cinema norte-americano. Até hoje a película de Browning provoca estranheza: um claro sinal de que ainda não estamos resolvidos com a aparência de nossos corpos diferenciados, mesmo que, atualmente, mais do que nunca, tais corpos ganham força e lugar de fala na importantíssima luta de reinvindicações de direitos, assim como escrevem novos capítulos das lutas afirmativas de corpos que insistem e forjam sua resistência e existência. Nesse sentido, o filme e o estudo aqui publicado dialogam muito com um tema dos mais caros da arte contemporânea: o corpo.
O corpo é, sem dúvida, um dos principais temas das artes na atualidade e é nele que, desde o começo da história da humanidade (nas diversas culturas), as discussões ideológicas, estéticas e políticas se deram. A partir dele, com ele e sobre ele, estabeleceram-se e ainda são estabelecidos normas, tabus, proibições, ritos e juízos de valores acerca da beleza, do poder, da saúde etc. Modelos e cânones estético-políticos que variam segundo a época e o lugar, mas que sempre regem o comportamento/conduta do corpo.
Entretanto, durante o século XX, o corpo é tomado de assalto pelos artistas contemporâneos como forma de expandir a imagem biológica e mecanizada que lhe fora imposta. Certamente, o corpo sempre foi de interesse da arte, contudo é na arte contemporânea que a representação do corpo é mais tensionada, pois os artistas exercitam extremar os limites impostos pelo télos da norma. Nesse caminho, empreendido pela arte e radicalizado desde a década de 1950 por novas emergências e (re)arquiteturas, o corpo transforma-se em uma matéria mais flexível, translúcida e expressiva. Assim, o corpo ergue-se como conteúdo da obra e passa a ser mais que o suporte da arte para ser a própria arte.
Pode parecer que a escolha por lançar luz sobre um filme da primeira metade do século XX seja meramente uma curiosidade museológica, mas não é. Por trás das palavras do autor, esconde-se um grito de atenção muito maior. Esse grito talvez esteja ainda ecoando desde daquela remota década de 1932 até os dias sombrios de hoje. A leitura do texto de Ivon Mendes nos desperta a pensar sobre o lugar do corpo e põe em xeque conceitos como: monstro, monstruosidade, ética, valor, identidade, beleza, feiura etc. Hasteia uma bandeira em direção à reflexão acerca de nossos corpos e nossas doenças sociais, o que, não distante, faz-nos confrontar o efeito Górgona em nossos dias. Nas antigas lendas do mito grego, ao ser encarada, a Medusa poderia mostrar, em seus olhos, o que de pior e mais monstruoso cada um tinha em si, e criava a petrificação do corpo; hoje, nosso medo das monstruosidades do corpo acaba revelando um curioso espelho social, em que o apavoramento é sinal de identificação. Ler este estudo e rever o filme é confrontar com as idiossincrasias dos EUA e do mundo dos homens, é expandir a leitura de corpo e (por que não?) de política: da política dos corpos diferenciados! É pensar as potências do corpo como forma de recriar-se para além das construções e dos comportamentos gestados e impostos pelas normas vigentes.
A partir dessas premissas, o texto situa o corpo no centro da atenção, não como um modelo a ser reproduzido, mas como o habitat de um indivíduo e como um suporte capaz de (re)apresentar uma das temáticas e experiências artísticas mais radicais do século XX: o monstruoso. Nesse contexto, o corpo cotidiano se expressa em suas potências subjetivas, ao mesmo tempo que redesenha e expande novas formas de percepção.
O que se espera de uma boa análise fílmica é poder notar os ecos, atentar-se aos sinais que a obra cinematográfica pode nos ensinar ainda hoje. Dessa forma, esta pesquisa instala uma problemática: a ressignificação do corpo para além do sentido instrumental e biológico, na direção de seus significados e representações. Nesse sentido, o corpo deformado das personagens passa a ser o palco de tensionamento de temas complexos (a sexualidade, a religião, a morte, a dor, a identidade, as obsessões) como forma de desconstruir discursos homogeneizadores. A humanidade não é homogênea; somos seres diversificados. Nenhuma pessoa ou instituição é merecedora de estabelecer uma única norma ou um padrão do que é normal. A norma deve ser a percepção de que não há um único padrão. O Outro é sempre diferente do Eu. No filme, corpos insólitos são apresentados primeiro como cordiais, depois como monstros, e no final são amáveis: uma clara reviravolta dessas trágicas personagens. Sendo assim, podemos apontar que tanto o diretor do filme de 1932 quanto Ivon provocam-nos na possibilidade de o corpo tornar-se um suporte de contrapoder.
Do mesmo modo, interroga-se a arte e a sociedade acerca das possibilidades de expansão da fronteira do corpo para além dos limites historicamente impostos. Tanto no filme quanto nas análises e discussões sobre Freaks nesses quase 90 anos de sua estreia, as fronteiras são rompidas. Essas quebras atiçam, instigam e provocam borramentos na forma, na compreensão, no comportamento e no arranjo do corpo, os quais são transcendidos como modo de dissolver certezas e significados, antes almejados e solidificados.
De natureza humanista, a pesquisa também observa o conceito de alteridade, por meio de estudos sobre a poética da produção e sobre a recepção do filme Freaks. O texto investiga a qualidade que se constitui pelo contraste: distinção e diferença com o Outro, numa sociedade regida por padrões estéticos inflexíveis. Nesse sentido, a referida pesquisa lança luz sobre processos antropológicos, na esteira das relações de alteridade, criando tensão entre os fatos históricos (recepção violenta ao filme em sua estreia e o fato de ele se tornar um cult atualmente) e a obra audiovisual (relações entre as personagens opostas). Isso nos provoca a pensar e desdobrar leituras múltiplas sobre a interação e dependência com o Outro. Essa fricção aparece tanto na provocação do filme estudado quanto na leitura aqui e agora. Por esse motivo, o leitor tem a chance de pensar nos reflexos de que sua identidade individual
só poderá existir pelo contato com o Outro. Filme e pesquisa inquietam, acabam por criar um campo pertinente de indagação sobre possibilidades de mudanças na visão sobre o Outro. Afinal, o Outro só se faz monstro pelo olhar de alguém.
Prof. Dr. Marcelo Denny
Professor no Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.
Pesquisador da cena contemporânea, diretor cênico,
curador, cenógrafo, artista plástico e diretor de arte.
APRESENTAÇÃO
Esta obra examina o que pode ser visto como monstruoso nas personagens do filme Freaks (Tod Browning, 1932), em especial na aparência – seja nos intérpretes com deficiências físicas ou mentais seja nos que têm corpos belos ou dentro do que é mais comum. Uma análise fílmica com o objetivo de observar as representações da monstruosidade na caracterização visual das personagens. Tal caracterização, aqui examinada, é o design da aparência do ser ficcional e engloba o perfil físico do intérprete, os figurinos, os cabelos, as maquiagens e os adereços, assim como a gestualidade e a expressão facial e corporal da pessoa que encarna a personagem, somados à iluminação, aos enquadramentos e aos efeitos de câmera e de edição. Nesse caminho, a caracterização imprime, na imagem, representações que revelam características da personagem e as situações que ela vivencia na trama. Essas representações podem significar ou simbolizar variadas coisas, e este texto observa os sinais da monstruosidade. Aqui se entende o monstro como um ser ameaçador e cruel, que existe em oposição à humanidade, o outro
do ser humano.
Em 1932, quando Browning lançou seu filme, ainda existiam exibições públicas em que pessoas com deficiências físicas eram apresentadas como monstros humanos, e vários intérpretes do filme eram atrações desse tipo de exibição. Na maior parte do filme, enquanto duas personagens com corpos comuns assumem atitudes moralmente monstruosas, os incomuns apresentam uma prática cotidiana cordial e uma caracterização semelhante aos outros; apenas no final da trama, os incomuns passam a apresentar uma visualidade mais monstruosa. Na aparência das personagens de Freaks, Browning confronta princípios morais da plateia e semeia reflexões sobre a diversidade humana, a identidade de cada pessoa e o exercício da alteridade.
Durante o desenvolvimento desta análise fílmica, surgiram vários questionamentos que resultaram em diversos parágrafos, capítulos e reflexões. A introdução apresenta a construção da pesquisa, o referencial teórico e a estrutura desta obra. O primeiro capítulo reflete sobre o que é caracterização de personagens; o segundo sobre o que é o monstro; o seguinte sobre a nomenclatura mais adequada para pessoas com deficiência. Essa parte inicial dá suporte à análise fílmica, que compreende o centro da obra. Os capítulos 5 e 6 aprofundam o exame, observando a caracterização dos monstros no cinema dos anos 1930 e nos filmes do Tod Browning, os freak shows e a exibição do corpo incomum no cinema, na fotografia e na internet. O sétimo capítulo repensa a pesquisa com o olhar focado no conceito de Outro e na questão da alteridade. Ainda, no apêndice, a entrevista realizada com o fotógrafo Gal Oppido. A conclusão reflete sobre o que representa monstruosidade, sobre a diversidade de corpos dentro da humanidade, sobre a possibilidade de percebermos a unidade humana, de exercitarmos a alteridade e encontrarmos uma harmonia no convívio com os outros, mesmo vislumbrando as diferenças. O filme Freaks acende essas reflexões. Afinal, quem são os monstros que estão no título do filme?
O texto deste livro apresenta uma versão revista e bastante ampliada do meu estudo de mestrado. Continuei pesquisando. Agreguei outras referências, ideias de mais pesquisadores, fiz ajustes e acréscimos. Em vez de usar imagens dos filmes que o texto aborda, fiz alguns desenhos para colocar aqui, realçando, visualmente, o que está escrito. Tais desenhos são meramente ilustrativos, não uma reprodução fiel. Vale assistir aos filmes para conferir as cenas e detalhes analisados neste livro, em especial Freaks, de Tod Browning.
Ivon Mendes de Barros
Sumário
INTRODUÇÃO 21
CAPÍTULO 1
O QUE É A CARACTERIZAÇÃO VISUAL DE PERSONAGENS 37
CAPÍTULO 2
O QUE É UM MONSTRO 51
CAPÍTULO 3
COMO NOMEAR A PERSONAGEM OU A PESSOA INCOMUM 63
CAPÍTULO 4
ANÁLISE FÍLMICA DE FREAKS (TOD BROWNING, 1932):
EM BUSCA DA MONSTRUOSIDADE NA CARACTERIZAÇÃO
DAS PERSONAGENS 83
4.1 SEMELHANÇAS NA CARACTERIZAÇÃO DOS COMUNS E DOS INCOMUNS 87
4.2 SINAIS DE MONSTRUOSIDADE NA CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS 104
4.3 A MONSTRUOSIDADE NA INTERAÇÃO DA CARACTERIZAÇÃO COM
A NARRATIVA 123
CAPÍTULO 5
CARACTERIZANDO MONSTROS NAS DÉCADAS DE
1920 E 1930 137
5.1 OS CARACTERIZADORES E AS POSSIBILIDADES TÉCNICAS 138
5.2 A CARACTERIZAÇÃO DOS MONSTROS NOS FILMES DE TOD BROWNING 146
CAPÍTULO 6
A REPRESENTAÇÃO DA MONSTRUOSIDADE NA EXIBIÇÃO DO CORPO INCOMUM 159
CAPÍTULO 7
O OUTRO E A ALTERIDADE 181
CONCLUSÃO 197
REFERÊNCIAS 203
APÊNDICE
Entrevista com Gal Oppido sobre fotografar o corpo incomum 219
ÍNDICE REMISSIVO 225
INTRODUÇÃO
A análise fílmica consiste em um dos segmentos mais instigantes dos estudos de comunicação audiovisual. E é nesse âmbito temático que esta obra se insere, ao abordar uma pesquisa que teve como principal objeto de estudo o filme Freaks,¹ produzido pela MGM e dirigido por Tod Browning. O filme, lançado em fevereiro de 1932, causou grande impacto no público e na crítica, o que levou a