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Uma Atriz em Cultivo pelas Artes Marciais
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Uma Atriz em Cultivo pelas Artes Marciais
E-book362 páginas5 horas

Uma Atriz em Cultivo pelas Artes Marciais

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Sobre este e-book

O livro Uma atriz em cultivo pelas artes marciais traz um novo olhar sobre as artes marciais no contexto do treinamento de atrizes e atores de teatro. Praticante e instrutora de Kung Fu e Tai Chi Chuan, a autora-atriz propõe um mergulho na Cosmologia, na corporeidade e na ética da arte marcial, vivendo-a como um método de cultivo capaz de transformar seu espírito e seu modo de criação cênica. Esta obra é uma inspiração para aquelas e aqueles que buscam se aprimorar nos estudos da atuação cênica e das artes marciais.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de abr. de 2021
ISBN9786558208808
Uma Atriz em Cultivo pelas Artes Marciais

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    Uma Atriz em Cultivo pelas Artes Marciais - Débora Zamarioli

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO

    Às minhas famílias de sangue, de matrimônio e de Kung Fu, por suas preciosas e distintas maneiras com que me ensinam sobre ética, compaixão e autodesenvolvimento.

    AGRADECIMENTOS

    Este livro não é o resultado de uma trajetória individual. Pelo contrário, ele só foi possível graças ao amor e ao trabalho ininterrupto de muitas pessoas pelas artes marciais chinesas e pelas artes cênicas. As reflexões que trago aqui são acompanhadas pela ancestralidade, pela convivência e pelo meu profundo respeito por professoras(es), colegas de treino e alunas(os), tanto das artes da cena, quanto das artes marciais.

    Agradeço a todos os mestres e a todas as mestras por transmitirem o Kung Fu ao longo da história e da geografia e nos permitirem o crescimento e a transformação pessoal e coletiva. Meus sinceros agradecimentos a toda família da International Traditional Kung Fu Association, em especial ao mestre Marco Serra, à mestra Marcia Serra, ao mestre Daniel Tomizaki, à sifu Steffani Tomizaki e ao mestre Alexandre Mazzoni. Tê-los como mestres e aprender com vocês é uma honra. Vocês são a inspiração e o exemplo para a minha jornada no Kung Fu e na vida.

    Agradeço especialmente ao meu companheiro, Tiago Lucas Spagnuolo, a quem eu tenho a felicidade de ter como professor. Obrigada por todo amor e cumplicidade com que você cultiva nossa jornada juntos.

    Gratidão à minha querida mestra da cena, Verônica Fabrini, pelo ensino amoroso e espiritual do ofício da atuação e pelo cuidadoso e tocante prefácio.

    À artista e grande amiga Clara de Cápua, pelas delicadas ilustrações.

    Meus agradecimentos à Maria Brígida de Miranda, pelas provocações essenciais ao desenvolvimento desta obra. Às pesquisadoras Sandra Meyer, Daiane Dordete, Nara Keiserman e ao pesquisador Cassiano Quilici, pelas ricas reflexões.

    Ao amigo e terapeuta holístico Alex Wong, pela sensibilidade com que sempre me cuidou.

    Muito obrigada Priscila Padilha, Marília Carbonari, Rodrigo Garcez e Vicente Mahfuz, pela constante e incansável parceria na jornada de cultivo da pesquisa em artes.

    Agradeço aos meus alunos e às minhas alunas das Artes Cênicas e do Kung Fu, que muito me ensinam a compreender os caminhos do cultivo de uma pedagogia cuidadosa, amorosa, diversa e emancipadora.

    É inevitavelmente a partir de nossos hábitos mentais que abordamos o pensamento chinês, mas estará ele por essa razão condenado ao exotismo, a uma pura exterioridade? Por maior que seja nosso desejo de conhecer esse pensamento, o importante - e o mais difícil - é aprender a respeitá-lo em sua especificidade: interrogá-lo, mas também saber calar para ouvir sua resposta - ou até, antes mesmo de pressioná- lo com perguntas, pôr-se à sua escuta (CHENG, 2008, p. 24).

    APRESENTAÇÃO

    Desde o século XX, artistas da cena ocidentais fascinam-se com a corporeidade de práticas orientais, incorporando princípios práticos e filosóficos em seus próprios trabalhos, a exemplo de Constantin Stanislávski e o Yoga, Antonin Artaud e o Teatro de Bali, Bertolt Brecht e o Teatro Chinês. Nesse processo, as artes marciais orientais tiveram grande influência no treinamento de atrizes e atores ocidentais.

    Ao iniciar minha jornada pelas artes marciais chinesas, especificamente pelo Kung Fu estilo Choy Lay Fut, deparei-me com uma rotina de treinamento que, aos poucos, transformava não só o meu corpo, como também minha mente, minhas emoções, meu espírito e minha forma de pensar a vida e o treinamento cênico. Esta obra surge do desejo de compartilhar uma nova perspectiva sobre os possíveis diálogos entre treinamento em atuação e Kung Fu, ancorando-se na Cosmologia, na terapêutica e na ética da prática marcial.

    O Kung Fu é o protagonista da pesquisa. Minha provocação nesta escrita dá-se pela reunião de quatro suposições: 1) as artes marciais chinesas possuem pensamentos filosóficos, medicinais e políticos intrínsecos às suas práticas; 2) o deslocamento intercultural de estéticas artísticas realizadas pelo ocidente, no geral, tende a generalizações e romantizações das artes marciais orientais; 3) o Kung Fu estilo Choy Lay Fut é um método de cultivo que busca o treinamento da mente pelo treinamento do corpo, fundamentado em preceitos éticos, corporais e espirituais; 4) e, por fim, engajar-se celularmente em um método de cultivo borra as fronteiras entre arte, vida, cotidiano e criação em arte.

    O processo de pesquisa entrelaça-se ao meu processo pessoal de treinamento em variadas técnicas: dança, teatro, educação somática e Kung Fu. Todas essas experiências e pontos de vista sobre a prática articulam as questões e os argumentos teóricos sobre o treinamento da(o) artista marcial e o treinamento da(o) artista da cena. Esta narrativa constrói-se a partir da contextualização teórica da jornada de transformação das minhas identidades como atriz-pesquisadora, bailarina, educadora do movimento e docente de Artes Cênicas dentro do treinamento da arte marcial chinesa tradicional estilo Choy Lay Fut. Nesta obra, acompanharemos a experiência cultivada em mim pelo Kung Fu estilo Choy Lay Fut para o entender como um organismo vivo com a potência de transformar o espírito e a personalidade da(o) atriz(ator)-praticante.

    Débora Zamarioli

    Prefácio

    O cultivo da Flor de Ouro

    Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

    (Clarice Lispector, Amor)

    Uma atriz em cultivo pelas artes marciais. A preposição pelas poderia ser um detalhe, mas oculta, em sua simplicidade semântica, o coração que move esta narrativa de 13 anos de cultivo. Treze anos que fazem brotar uma flor de ouro, frágil-forte como a personagem Ana do conto Amor, de Clarice Lispector, ou forte-frágil como Beatrix Kiddo, personagem do filme Kill Bill, criado por Quentin Tarantino e pela atriz Uma Thurman. A autora tem um pouco dessa singular mistura, Ana e Beatrix Kiddo... ela é flor e metal.

    Li o livro da atriz como se lê um romance de formação, acompanhando seus passos desde o encantamento infantil pelo Esquadrão Relâmpago Changeman ou Jaspion até sua metamorfose em artista marcial e, depois, em outra pessoa. Nesse caminho, que começa com um deslocamento cultural, brilha como uma chama de vida a profundidade e o imenso senso ético desse amadurecimento, desse florescimento. O que a faz florescer é justamente a entrega a um deslocamento radical para a alteridade, pois não é ela quem cultiva as artes marciais, ela é cultivada pelas artes marciais. Aí está seu tesouro e a grande beleza do livro. Ela se desloca do ocidente ao oriente, da bailarina e atriz à artista marcial, de si ao outro, do corpo denso, mapeado pela anatomia mecânica do ocidente, ao quasi-corpo.

    É a escrita de uma atriz que sabe que, para viver uma personagem, não basta trazê-la para si, apropriar-se dela, pois se trata de um encontro. Tem-se que ir ao encontro, deslocar-se para ela. Para tanto, não se trata de colher para si bons conselhos úteis para o ator apropriando-se de outras culturas, mas se deixar transformar pela Diferença, submergir nela e emergir transformada. Nada aqui é pronto para o uso, tomado de um contexto cultural e transportado para outro. O percurso pelas artes marciais é feito por todas suas camadas: técnicas, simbólicas, históricas, culturais, sociais, filosóficas e espirituais. De modo respeitoso, cuidadoso, apaixonado e apaixonante, com elegância crítica, a autora coloca em jogo as tensões implicadas nas práticas interculturais nas quais a subjetividade assume uma dimensão tanto poética e ética, quanto política.

    É a escrita de uma bailarina que mergulhou até a profundidade das células, deslocando a consciência até o limiar da quase dissolução do corpo em vibrações, num grande cosmos de energias em fluxo. Para que nós, leitores, possamos mergulhar com ela, o livro é entremeado de convites que engajam nosso corpo/coração/imaginação na leitura. Viajamos do interior dos ossos à leveza do céu, da delicadeza das folhas do chá que se abrem na água quente até as montanhas da China, da roupa que cobre nosso corpo até às mãos de quem transformou tecido em traje, das vozes de nossos/nossas mestres/mestras que ouviram de outros e de outros e de outros, até formar o nosso saber e este se transformar em ação no mundo. A autora tece fios entre o micro e macrocosmo, absorvendo a seiva ancestral do Choy Lay Fut de suas raízes rurais, construindo um ethos de cultivo que ultrapassa o antropoceno e anuncia, ou melhor, atualiza e encarna o cultivo taoísta e sua concepção de integração entre o ser humano e a natureza. Na minuciosa e delicada passagem pelo corpo, pelo interior da matéria, seu conhecimento somático encontra ressonância nos princípios antiquíssimos da medicina tradicional chinesa, desfazendo a muralha ocidental que separa natureza e cultura. Afinal, a própria palavra cultura é dependente da Terra, vem de cultivar, ou seja, entrar em acordo de colaboração com a Natureza, afinal somos apenas uma das Dez mil Coisas.

    Há um campo de afinidade entre cultura, cultivo e cuidado. Nesse sentido, é uma escrita de mulher, pois tem a força do cuidado, o cuidado necessário para o acordo com o aspecto marcial de uma luta mortal. Como no quadro de Vênus e Marte, de Botticelli, o amor vence a guerra. Vênus coloca Marte para dormir enquanto pequenos sátiros brincam com suas armas, relembrando que sua força vem da natureza, assim como no Choy Lay Fut, os movimentos são inspirados nos movimentos da serpente, da garça, da pantera, do tigre e do dragão. Em algumas versões (pois também o ocidente tem seus mitos ancestrais) do amor dos dois nascem Eros e Harmonia, o Amor e Paz. Se há toda uma erótica do corpo, do movimento, da luta, há, também, uma leitura venusiana do Wude, o código de ética do Choy Lay Fut, traçando o caminho de construção desse cuidado-cultivo de paz e compaixão o qual, página a página, revela-se como autopoiesis. Ocidente e Oriente encaixam-se num abraço redondo, como o símbolo do TAO.

    Se sua escrita é magnética e nos toma por inteiro (corpo, mente e alma) é porque assim foi vivido e escrito por ela – e é sobre isso que se trata: a integração de múltiplas dimensões, humanas e não humanas, integração que é fluxo em constante mutação e que abraça e honra as Dez Mil Coisas. Em Arte e responsabilidade, Bakhtin afirma: Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com minha vida para que o todo vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos. Para esse pensador, a unidade interna de sentido de uma obra brota da unidade da responsabilidade do sujeito que incorpora esse todo artístico à sua vida. Esta é uma obra bakhtiniana e, ao findá-la, sentimos que alguma coisa começa a brotar secretamente em nós. Assim como Ana de Clarice, Débora atravessou os portões do Jardim Botânico, e se fez, nela, um trabalho secreto, o cultivo da flor de ouro.

    Veronica Fabrini

    Professora do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp

    Sumário

    INTRODUÇÃO 19

    1

    O MÉTODO DE CULTIVO COMO PESQUISA ARTÍSTICA 27

    1.1 HISTÓRICO DA RELAÇÃO ENTRE ARTES MARCIAIS ASIÁTICAS E TREINAMENTO EM ATUAÇÃO 27

    1.1.1 Universalismo e Orientalismo como mecanismos de deslocamento 27

    1.1.2 As artes marciais asiáticas como treinamento psicofísico 32

    1.1.3 Experimentos com técnicas de artes marciais no teatro no Brasil 36

    1.1.4 Estudos interculturais sobre a relação entre artes marciais e artes cênicas 38

    1.2 A PROPOSTA DE VISUALIZAÇÃO MICROSCÓPICA DO CHOY LAY FUT 40

    1.3 GENEALOGIAS DE SI E PRÁTICAS DA CENA 47

    1.3.1 Articulações entre o cuidado de si e as pedagogias teatrais 47

    1.3.2 O conceito oriental de cultivo articulado ao treinamento nas artes performativas 51

    2

    O TECIDO POLÍTICO DO CULTIVO MARCIAL 59

    2.1 BASES PARA O CULTIVO NAS ARTES MARCIAIS CHINESAS 59

    2.1.1 O Kung Fu mediado pela televisão e pelo cinema em solo brasileiro 61

    2.2 O CULTIVO POLÍTICO: A ARTE MARCIAL TRADICIONAL E A ARTE MARCIAL MODERNA 68

    2.3 O CULTIVO NA ARTE MARCIAL CHINESA TRADICIONAL CHOY LAY FUT 70

    2.3.1 Narrativa de origem do estilo Choy Lay Fut 70

    2.3.2 As células políticas da tradição no Choy Lay Fut 74

    2.4 O CULTIVO DA TRADIÇÃO NO CHOY LAY FUT PRATICADO NA ITKFA 81

    3

    O TECIDO ÉTICO DO CULTIVO MARCIAL 89

    3.1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DO PAPEL DAS ARTES MARCIAIS NA TRANSFORMAÇÃO DA PERSONALIDADE 89

    3.2 O TREINAMENTO PELA RITUALIDADE MARCIAL 92

    3.2.1 A Ritualidade em Faixas, Hierarquia e Linhagem 92

    3.2.2 Ritualidade na estrutura de treinamento 100

    3.3 CORPORALIZAÇÃO DAS VIRTUDES 104

    3.3.1 Autorregulação 104

    3.3.2 Virtudes 107

    3.3.3 Wude, código de ética marcial 110

    4

    O TECIDO CORPORAL DO CULTIVO MARCIAL 117

    4.1 ALGUNS PARALELOS E DIFERENÇAS ENTRE A ABORDAGEM CORPORAL DA RACIONALIDADE MÉDICA CHINESA E DA BIOMEDICINA OCIDENTAL 117

    4.1.1 A alteração da percepção sobre meu corpo em experiência terapêutica 121

    4.2 O CORPO TÉCNICO-CULTURAL NO KATI 129

    4.3 O CORPO ENERGÉTICO DO CHI KUNG 141

    4.4 A NÃO-MENTE DA MEDITAÇÃO 145

    5

    SER TECIDA NO TREINAMENTO DE CHOY LAY FUT 151

    5.1 UM DIA DA JORNADA DE 14 ANOS DA MINHA FORMAÇÃO NO CHOY LAY FUT 151

    5.1.1 Preâmbulo: a Teoria do Corpo, de Yuasa Yasuo 151

    5.1.2 O treinamento 154

    CONCLUSÃO 171

    REFERÊNCIAS 177

    APÊNDICE A 189

    APÊNDICE B 217

    ÍNDICE REMISSIVO 235

    INTRODUÇÃO

    Esta obra problematiza os mais frequentes empregos do papel das artes marciais asiáticas no treinamento psicofísico de atores e atrizes ocidentais. No processo de deslocamento das artes marciais para a área de treinamento em atuação, houve pouca ênfase ou pouca atenção dada aos pensamentos filosóficos, medicinais e políticos intrínsecos a essas práticas. Por deslocamento, este trabalho considera as argumentações do pesquisador em estudos interculturais, Min Tian, de que o deslocamento intercultural de estéticas artísticas do Outro é realizado mediante às prerrogativas estéticas do Eu que desloca¹. Isto é, funções, formas e sentidos de estéticas artísticas do Outro são colocadas e reposicionadas a partir do imperativo do Eu do presente, sem necessariamente as vincular com o conhecimento profundo do Eu em relação ao Outro e vice-versa.

    Os argumentos desta pesquisa reexaminam, principalmente, as funções pré-expressiva e extracotidiana formuladas pela Antropologia Teatral² sobre as artes marciais, em específico as artes marciais chinesas Kung Fu, em treinamentos teatrais ocidentais. À luz do escopo filosófico, medicinal e político próprio das artes marciais chinesas, este trabalho evidencia o vínculo entre treinamento marcial e treinamento em atuação enraizado na transformação ética, política, corporal e espiritual da atriz ou do ator que treina artes marciais.

    O processo de pesquisa entrelaça-se ao meu processo pessoal de treinamento em variadas técnicas: dança, teatro, educação somática e Kung Fu. Todas essas experiências e pontos de vista sobre a prática articulam as questões e os argumentos teóricos sobre o treinamento da(o) artista marcial e o treinamento da(o) artista da cena. Esta narrativa constrói-se a partir da contextualização teórica da jornada de transformação das minhas identidades como atriz-pesquisadora, bailarina, educadora do movimento e docente de Artes Cênicas dentro do treinamento da arte marcial chinesa tradicional estilo Choy Lay Fut.

    Treino esse estilo de arte marcial desde 2007. Iniciei meu treinamento no Centro de Treinamento Kung Fu Shaolin na cidade de São Paulo, sob a supervisão do mestre Alexandre Mazzoni³ e do professor Tiago Lucas Spagnuolo⁴. De lá pra cá, participei de competições nacionais e internacionais, dentro e fora do Brasil; cursos de técnicas respiratórias (Chi Kung) e meditação; sessões de acupuntura; formação em Wu (Hao) Tai Chi, e palestras sobre a cultura chinesa. Em 2015, fundei junto ao meu esposo, o professor Tiago Lucas Spagnuolo, a Mui Fa Escola de Kung Fu Shaolin, em Florianópolis/SC, onde sou instrutora e disseminadora dos estilos Choy Lay Fut e Wu (Hao) Tai Chi. Em 2017, fui graduada faixa preta 1.º grau.

    Toda a minha vivência no Choy Lay Fut está condicionada ao vínculo com a família ou a linhagem marcial seguida pela International Traditional Kung Fu Association (ITKFA), fundada em 2009 por: mestre Daniel Tomizaki⁵, sifu Steffani Tomizaki⁶, mestre Marco Aurelio Serra⁷ e mestra Marcia Serra⁸. Fazer parte de uma família marcial é fazer parte de uma linhagem ancestral de transmissão de conhecimento e de tradição, como veremos ao longo deste livro.

    Teoricamente, contextualizo a minha experiência de treinamento de Kung Fu estilo Choy Lay Fut dentro da genealogia filosófica oriental dos métodos de cultivo⁹. Nesses métodos, o filósofo japonês Yuasa Yasuo (1925-2005) argumenta que o treinamento do corpo é executado sob paradigmas específicos e rigorosos com a finalidade de treinar a mente. Apesar de Yuasa não ter discutido especificamente os métodos de cultivo nas artes marciais chinesas, amplio o conceito de cultivo para pensar o treinamento da mente através do treinamento do corpo no Choy Lay Fut. Dentro dessa perspectiva, as artes marciais chinesas compreendem e treinam a relação corpo-mente à luz de processos específicos, ressignificando a experiência do sujeito frente à realidade cotidiana.

    O performer e pesquisador brasileiro Cassiano Sydow Quilici pondera que os métodos de cultivo, articulados ao treinamento nas artes performativas, escapam do momento de treinamento para transformar o próprio viver cotidiano em uma arte do despertar¹⁰. Quilici, além de extensa produção acadêmica na área das artes performativas, é praticante do Budismo Theravada e fundador da Casa de Dharma Sanata Dharma Saranam, um Centro Leigo Budista Theravada, localizado no município de São Paulo, desde 1991. As pesquisas sobre performance de Quilici estabelecem precedentes de diálogos entre métodos de cultivo e a formação do(a) artista da cena. Nesta pesquisa, parto das pesquisas performativas de Quilici, articuladas à sua profunda experiência com a filosofia Budista, para ampliar o papel das artes marciais para além das aplicabilidades funcionais frequentemente utilizadas na área de treinamento em atuação. Nesse sentido, interrogo sobre a necessidade de adaptar ou transformar o treinamento marcial em treinamento em atuação.

    O Capítulo 1 apresenta os precedentes teóricos da pesquisa e introduz os campos epistemológicos envolvidos. A começar pela influência do método de educação do movimento Body Mind Centering (BMC) na abordagem do tema. Articulo o BMC para visualizar microscopicamente o Choy Lay Fut como um organismo vivo, identificando seus tecidos celulares e integrando o conhecimento de suas células no meu processo de transformação como ser humano criador. A partir dessa abordagem somática, proponho uma forma de deslocamento entre as áreas marcial e cênica, com o objetivo de colocar-me à escuta do pensamento próprio do método de cultivo em questão. Investigo o Choy Lay Fut como o treinamento de um modo de existência, e articulo as genealogias das práticas de si ocidentais¹¹ e dos métodos de cultivo orientais¹² com os discursos de treinamento e formação do(a) artista da cena.

    O Capítulo 2 aprofunda-se na visualização microscópica das camadas políticas do Choy Lay Fut. Verifico que, ao longo da história, as artes marciais chinesas foram inseridas em diferentes projetos políticos, corporalizando, através do cultivo, diferentes propostas de transformação do sujeito. Por meio da análise de material historiográfico, bem como das narrativas sobre os métodos de cultivo das artes marciais chinesas nos filmes e na corporeidade dos atores Bruce Lee (1940-1973) e de David Carradine (1963- 2009), reflito sobre as correspondências entre ficção e realidade nos discursos acerca da tradição e da modernidade que, atualmente, envolvem as artes marciais chinesas.

    Demonstro que a tradição, longe de ser pura ou original, informa a identidade de um conjunto de práticas e de artistas marciais. No caso da historiografia do estilo Choy Lay Fut, a tradição é a própria resistência ao processo de modernização da China, preservando os valores cosmológicos rurais chineses na técnica marcial. Na realidade brasileira, no século XXI, dentro da ITKFA, o tradicional foi reinventado nas formas de ensino-aprendizagem e na intersecção com a ciência ocidental, criando uma proposta de cultivo que visa a rememorar a tradição chinesa, a ciência marcial ou o Wu Tao.

    O Capítulo 3 visualiza microscopicamente a função dos rituais e do Wude, o código ético de virtudes marciais, na transformação do espírito e da personalidade. Focalizado na exploração dos preceitos éticos, o capítulo questiona a função do engendramento do corpo contido na estrutura de treinamento marcial (sistema de faixas, hierarquia e linhagem). Desloco a ideia de sujeição dos corpos à disciplina marcial para compreender o treinamento da mente através das ações rituais e da corporalização das virtudes. Ao treinar as ritualidades como caminho de transformação da personalidade, a artista ou o artista marcial escolhe transformar seu modo de existência, tornando-se responsável pela transformação do espírito.

    O Capítulo 4 visualiza microscopicamente o conhecimento das camadas das técnicas envolvidas no treinamento de Choy Lay Fut: o estudo dos kati; o Chi Kung; e a meditação. Os kati são sequências codificadas de movimento para o estudo do combate; o Chi Kung é o trabalho com a respiração; e, a meditação é o processo de conhecimento de nossos pensamentos. Na escuta atenta desses três aspectos da prática, escutaremos a concepção corporal da Racionalidade Médica Chinesa¹³ estruturada na circulação de qi¹⁴.

    O Capítulo 5 promove o encontro entre os corpos (físico, mental, emocional, energético e espiritual) na situação de treinamento de Choy Lay Fut. O capítulo estuda os processos de integração do corpo-mente à luz dos processos de integração entre consciência e inconsciência propostos no método de cultivo marcial. Inspirada por Constantin Stanislávski¹⁵e Denis Diderot¹⁶, aventuro a escrita desse capítulo como um diálogo teatral. Articulo os conceitos tratados anteriormente ao longo desse trabalho com a teoria do corpo de Yuasa para compreender os processos da consciência e da inconsciência durante uma aula ficcional de Choy Lay Fut. Estou presente nessa aula fictícia, ministrada por mestre Serra, e acompanhada por Yuasa, como uma espécie de mentor filosófico que me conduz pelo exercício de compreensão da unidade corpo-mente no Choy Lay Fut.

    Esse capítulo tem o intuito de oferecer uma visão mais próxima da experiência e do fenômeno da realidade de treinamento. O detalhamento da situação de treinamento esmiúça os encontros entre as ritualidades regulatórias, os kati, as camadas da consciência e da inconsciência e a organização espiritual por meio dos Wude. Nesse conjunto, concluo que o método de cultivo do Choy Lay Fut aprimora o espírito e a personalidade, transformando a integração do corpo-mente em uma porta de vaivém entre os processos da consciência e da inconsciência em fluxo com as Mil e Uma Coisas¹⁷.

    Ao longo do livro, a leitora e o leitor encontrarão convites para pausar os processos do intelecto e deixar-se guiar, também, por outros saberes do corpo-mente. As instruções contidas nos convites servem mais como guias do que como regras para um exercício. Aceitar, recusar, adaptar ou adiar os convites são escolhas que competem ao leitor ou à leitora. Para aproximar a leitura da experiência, a obra expande-se com materiais audiovisuais disponibilizados por Qr code, em que poderão ser visualizados vídeos e fotos de vivências na China e das dinâmicas de treinamento. Para finalizar o trabalho, estão inclusas as vozes da sabedoria dos mestres em duas entrevistas: uma com o mestre Marco Serra e outra com a mestra Marcia Serra, líderes da ITKFA no Brasil.

    Nesta obra, adotei a transcrição de termos chineses chamada pinyin, a mais usada atualmente. No entanto, por serem mais conhecidos entre nós brasileiros e por estarem mais próximos da realidade oral da família marcial que esta obra se insere, irei utilizar os termos Kung Fu e Chi Kung (em pinyin Qi Gong) para referirem-se às artes marciais chinesas e ao trabalho com a energia ou ao trabalho com a respiração. As traduções literais do termo Kung Fu referem-se ao esforço contínuo

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