Sociedade Tecnológica
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Sobre este e-book
Talvez, ao ensaiar aparições do querer, eles busquem delinear as verdades, tal qual descrito por Immanuel Kant, Martin Heidegger e Michel Foucault, nem sempre conscientes. A argumentação pauta-se nas lacunas presentes em modalidades de comunidades futuristas representadas na tela, sob a ótica dos textos de Gilles Lipovetsky, mais especificamente na vida de seus protagonistas. Assim como Hans Ulrich Gumbrecht aposta na potência da presença, a tecnologia torna tangíveis elementos que existem, por vezes, na ausência.
A tangibilidade de sujeitos e objetos, apoiada nos conceitos propostos por Robert Azuma, Doug Bowman e Paul Milgran, incita a discussão: como a realidade aumentada transforma as sociedades futuristas do cinema digital? O entendimento das propostas de supercinema e não cinema se dispõe a explicar. As ideias de Ismael Xavier, Lev Manovich e William Brown subsidiam a releitura dos fundamentos cinematográficos.
Estará o cinema estabelecendo uma nova fronteira de entendimento da imperfeição, seja do corpo, do mundo, da existência? De que forma a dialética tecnológica trata o embate com o grotesco, com o lado que se esconde ou que não se aceita? Ao evocar o enigma do desconhecido, pode a sétima arte em sua roupagem digital elucidar como lidar com o que ainda não existe, com o inusitado, com o estranho? Por explorar questões atemporais em uma linguagem contemporânea, esta obra é indicada a todos que se interessam por tecnologia, cinema, bem como ao conhecimento humano sob a luz das artes, da educação e da sociologia.
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Sociedade Tecnológica - Cassia Cassitas
INTRODUÇÃO
O próprio da arte é ser a identidade de um procedimento consciente e de uma produção inconsciente, de uma ação voluntária e de um processo involuntário, em suma, a identidade de um logos e de um pathos.
(Jacques Rancière)
Por meio do cinema, o artista pode buscar refletir na tela a realidade que observa e transformar, por transgredir, o que vê. O que dizer de um mundo em que vida e projeções coexistem, expandindo o sentido de realidade? Não se trata de iludir os sentidos humanos, mas de adicionar elementos virtuais alinhados ao indivíduo e à sua percepção da dita realidade. Se historicamente o cinema bebeu das artes e da observação do cotidiano para dominar olhares e mentes, a perspectiva da realidade aumentada se apresenta como uma instigante possibilidade na busca de domínio da arte das cenas. Dado o seu alcance, essa tecnologia poderá ser decisiva na mise-en-scène do século XXI e significar uma transformação na dialética, estética e pós-produção do cinema digital.
Soluções de realidade aumentada se prestam a construir metáforas. Na mise-en-scène da obra O congresso futurista², a temática da realidade aumentada transita entre presenças e ausências ao viabilizar corpos, vidas e mundos alternativos, a quem optar por deixar seu personagem em live action e vivenciar a experiência estética de uma existência animada. Sem pressupor um retorno ao cotidiano, premissa essa da tecnologia em questão, surge na tela uma vida digital para Robin Wright, atriz hollywoodiana, interpretando uma atriz hollywoodiana homônima, voltar a ser feliz, ao reconfigurar a dita realidade digitalmente num mundo ideal habitado por quem, como ela, fizer a travessia por meio da inalação de uma substância química. Enxergar a própria realidade
de maneira mais satisfatória é a alternativa oferecida a todos que, de alguma forma, anseiam por algo passado que se foi ou se perdeu, por algo que não alcançaram, ou por desejarem algo sem saber precisar o quê. A realidade aumentada, essa tecnologia que adiciona elementos virtuais à percepção do observador sem dissociá-lo de seu contexto e altera a percepção que se tem de si próprio ou de outros elementos presentes à sua volta, é a mágica da vez. Assim como Hans Ulrich Gumbrecht³ aposta na potência da presença por compreendê-la como substância, a nos tocar ou não, dada a distância entre as coisas-do-mundo
que nos abrange tal qual objetos sobrepostos à dita realidade, a tecnologia torna tangível elementos que existem, por vezes, na ausência. A tangibilidade de sujeitos e objetos, nem sempre unidos, porém, reunidos, como partes a expressar o movimento de quem não deixa de ser por pertencer, é a matéria-prima da realidade aumentada presente no cinema digital de Ari Folman.
As ideias de Lev Manovich e William Brown alicerçam a discussão sobre o cinema digital, supercinema e não cinema, no capítulo dois, em que o conceito de realidade aumentada é apresentado. Enriquecem o texto as contribuições, entre outras, de Walter Benjamin, John Locke e Arlindo Machado. Na segunda parte do capítulo, Ronald Azuma, e Luís Augusto Consularo embasam o entendimento da tecnologia de realidade aumentada aplicada ao filme O congresso futurista. Seis figuras conectam a realidade aumentada às cenas do audiovisual.
Com o auxílio da tecnologia que permite exprimir diversos tipos de ausências inerentes ao querer de cada indivíduo, a obra cinematográfica em estudo ilustra um tipo de cinema que se propõe a ultrapassar a fronteira de compreensão da imperfeição. Talvez, ao ensaiar aparições do querer, Ari Folman busque delinear cotidianos mais adequados à massa de desvalidos e suas carências nem sempre conscientes. Mas onde residem as ausências a se manifestarem como a experiência estética da falta?
O capítulo três investiga a estética da falta tomando como ponto de partida as lacunas presentes na comunidade futurista de Folman, mais especificamente na vida de Robin Wright representando a si mesma na tela. As ponderações se apoiam, principalmente, nos estudos realizados por Algirdes Julien Greimas e Hans Gumbrecht. Nesse capítulo não há imagens, apenas diálogos protagonizados por personagens coadjuvantes em sequências emblemáticas. Nelas, as palavras se sobrepõem às imagens em resposta aos questionamentos levantados pelo presente estudo.
Teóricos afirmam que a falta se esvai quando o sujeito torna os olhos para si. À medida que suporta, reconhece e aceita o que vê, emerge uma nova abordagem de si próprio e ele consegue elaborar sua própria estética do sujeito, baseada essa, na verdade que observa e vivencia. Michel Foucault afirmou, na aula inaugural do Collège de France, em 2 de dezembro de 1970, existir no íntimo da prática científica um discurso que diz:
Tudo não é verdade; mas em todo ponto, e a todo momento, há uma verdade a dizer e a ver, uma verdade que dormita, talvez, mas que não espera senão nosso olhar para aparecer, nossa mão para desvelar-se; cabe a nós encontrar a boa perspectiva, o ângulo conveniente, os instrumentos necessários, pois, de qualquer forma, ela está ali e ela está ali por toda parte.⁴
O cineasta e roteirista Ari Folman parece corroborar essa afirmação, ao propor um mergulho no inconsciente ao exibir nas telas a imperfeição da existência em realidades aumentadas animadas. Mas a totalidade não é desvelada. Por mais que as barreiras sejam rompidas e deixadas para trás, há sempre algo de oculto. Como nas memórias, diz Martin Heidegger⁵, algo precisa ser preservado para ser fonte a todo pensar. Se cabe à tecnologia a conexão dialética entre as fases do filme em estudo, cabe ao ser humano o protagonismo estético dessa história repleta de lacunas, possibilidades e revelações. Mas de que forma a produção em foco trata o embate com o grotesco, com o lado que se esconde, ou que não se aceita em seu audiovisual?
No capítulo quatro, postula-se a questão da imperfeição como perfeita no intuito de atingir os resultados a que, acredita-se, a produção em foco almeja. O texto se apoia no entendimento de Algirdes Julien Greimas, Eric Landowski, Michel Foucault, além de Hans Ulrich Gumbrecht, Ismail Xavier e Muniz Sodré. Pela subjetividade inerente ao tema, optou-se por ilustrar as argumentações desenvolvidas com diálogos em detrimento a imagens, para assim preservar sua abrangência e deixar a cargo do leitor considerações relativas ao gosto e demais julgamentos. Diferentemente de outros capítulos, a escrita não é dividida em subitens, por se revelarem as questões esmiuçadas intimamente entrelaçadas.
Por caminhos diversos, a realidade aumentada colabora com o desvelamento do sentido do romance homônimo de Stanislaw Lem ao longo do audiovisual O congresso futurista⁶. Segundo Foucault⁷, os certames em torno do ser humano se instauram, como entendidos na contemporaneidade, no final do século XIX. Datam desse período iniciativas em que se deixam de lado hipóteses demasiado amplas e gerais pelas quais se explica o homem como um setor determinado do mundo natural
para investigar a realidade humana
, ou seja, mais de acordo com sua medida, mais fiel às suas características específicas, mais apropriado a tudo o que, no homem, escapa às determinações de natureza
⁸. Em outras palavras, surge uma alternativa à abordagem da humanidade, enquanto denominador comum que o assimila a todo ser vivente, em privilégio do caráter individual de condutas nas quais um homem específico se exprime, na consciência em que se reconhece, na história pessoal através da qual ele se constituiu
⁹. Esse é o ponto de partida do quinto capítulo, frente à indagação: de que forma a dialética tecnológica, em sua roupagem digital, visa elucidar como lidar com o que ainda não existe, com o inusitado, com o estranho?
Estruturado sobre as investigações documentadas por Jacques Rancière e Michel Foucault, o capítulo cinco versa sobre a dialética da alteridade como alternativa às discrepâncias sociais da contemporaneidade, exibidas na ambientação futurista de Ari Folman. O capítulo constitui uma retomada das questões elaboradas nos capítulos anteriores, bem como uma análise de como o diretor de O congresso futurista¹⁰ organizou os elementos enumerados anteriormente nas quatro fases do filme, na trajetória de Robin Wright e nos personagens, a fim de escrever cinematograficamente sua própria dialética inclusiva da alteridade. Devido à sua natureza, a análise conta com um conjunto de vinte e oito imagens. Em suma, o trabalho do cineasta Folman aqui analisado pode ser resumido, com as palavras utilizadas por Jacques Rancière ao se referir ao trabalho do naturalista George Cuvier:
Cuvier devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo sua dupla potência poética e significante. Na topografia de um lugar ou na fisionomia de uma fachada, na forma ou no desgaste de uma vestimenta, no caos de uma exposição de mercadorias ou de detritos, ele reconhece os elementos de uma mitologia. E nas figuras dessa mitologia, ele dá a conhecer a história verdadeira de uma sociedade, de um tempo, de uma coletividade; faz pressentir o destino de um indivíduo ou de um povo.¹¹
Devido à abrangência do tema, a presente investigação adotou por recorte a obra O congresso futurista¹², para expor o resultado do levantamento e argumentação empregados na elaboração da análise qualitativa do tipo explicativa da temática realidade aumentada na imagética fílmica. Com roteiro e direção de Folman, o filme é baseado na ficção científica de humor negro The Futurological Congress do escritor polonês Stanislaw Lem, publicado em 1971. Segundo Agnieszka Majcher¹³, o próprio Ari Folman admitiu que é preciso coragem para realizar a adaptação que um livro clássico requer
e ao mesmo tempo se libertar do texto até certo ponto
. Nesse caso específico, o desafio girou em torno da transformação de uma história em torno da ditadura política
em um entretenimento baseado na ditadura da indústria, enfatizando especialmente os estúdios de cinema excessivamente controlados
e como, por sua vez, eles tomaram conta das nossas vidas
. Nesse percurso, a obra se tornou material especialmente fértil para a investigação da utilização da realidade aumentada no cinema digital. Escolhas como a substituição do astronauta Ijon Tichy por uma atriz envelhecida (Robin Wright ‘jogando’ sozinha)
introduziram no enredo o tema familiar, a ideia de vender a própria imagem digital aos produtores de filmes, seguida da perda de identidade
inexistentes no romance, salienta Folman na citação de Majcher. Em sequências emblemáticas repletas de alteridade, Ari Folman não poupou ninguém. Em algum momento do longa-metragem, a pessoa por trás do personagem animado precisa assumir a frente do combate pela sobrevivência, reconhecer imperfeições, dialogar com o desconhecido, lidar com seus estranhamentos.
Dito isso, a partir um breve resumo do filme O congresso futurista, o presente estudo se debruçará sobre como a realidade aumentada é empregada no cinema digital de Ari Folman. Em seguida, apresentará no capítulo denominado A dialética da alteridade
, após discorrer sobre a estética