Pescoço
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Sobre este e-book
Pescoço é palavra ambígua, característica comum aos contos de Thiago Picchi. Se por uma lado sua escrita tem uma linguagem bem direta que nos cativa de imediato, por outro os enredos das narrativas são sempre surpreendentes, optando por caminhos inesperados e deixando o leitor desnorteado. Haja pescoço para tantas torções inesperadas e para acompanhar esse jogo literário semelhante ao tênis, com ideias que se movimentam de um lado para o outro com rapidez e desenvoltura. E que o leitor fique avisado: é melhor proteger a jugular, porque é onde mira o autor deste Pescoço.
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Pescoço - Thiago Picchi
Sumário
Pescoço
Decapitação
Enforcados
Boxe
Bonequinho
Gabriel
Bye bye Giovanna Baby
Bisavó
Um dia na praia
Blanka
Sorvete americano
O pai do Marcos
SUV
Sobre o autor
Texto de orelha
Pescoço
Os três textos que se seguem orbitam sobre o mesmo assunto: Quando a juntura se parte do pescoço.
I.
Em março de 2020 eu estava em Maringá, onde fui fazer um tratamento dentário. No mesmo dia extraíram dois sisos e aproveitaram a anestesia para fazer uma raspagem em minhas gengivas. Foram várias horas com a boca aberta, passaram Bepantol nos meus lábios para que não rachassem. Quando acabou, parecia que eu estava com caxumba dos dois lados.
As caxumbas murcharam e ficaram vermelhas e moles, como aquela coisa caída que fica abaixo do bico dos galos. A dentista me receitou um remédio para dor, além de Amoxilina, e recomendou que eu não comesse nada sólido. Perguntei se podia tomar sorvete, sorvete é bom porque tem a vantagem de ser gelado, ela disse.
Maringá é conhecida por seu sorvete de café. Então fui a um café e pedi um milkshake de capuccino. Ao pedir, botei a mão na frente da boca, com vergonha dos lábios tortos e ingovernáveis da anestesia. Me passou pela cabeça o atendente achar que eu tinha a boca torta por causa de um derrame. Mas tudo bem. Era no começo ainda da pandemia, os primeiros casos pipocando no Brasil. Ele deve ter me achado educado com esse gesto, ninguém cogitava usar máscaras no começo.
Barbela. É o nome daquela coisa mole, caída e vermelha que fica abaixo do bico dos galos. Foi assim que fiquei, quando me extraíram os sisos.
Dois homens se sentaram ao meu lado e começaram a conversar. Tinha um terceiro com eles, que não disse nada, ficou mexendo no celular. Na verdade, apenas um homem falava, o outro ouvia. O terceiro mexia no celular. O que falava disse o seguinte: A gente tem um cachorro lá em casa. Um dia o cachorro apareceu com a cabeça arrastando no chão. O corpo ereto, mas a cabeça pendurada, arrastando no chão. As crianças gritaram, minha mulher chorou. Daí botei o cachorro no carro e levei na Doutora Neiva. Ela disse que a juntura tinha se partido do pescoço, e me mostrou um pino de metal. É o mesmo pino que usavam nos pedais das bicicletas antigas, tipo Caloi 10, Ceci, Barra Forte. Chaveta para pedivela. Ela deu anestesia no cachorro e aparafusou o pino, ali na hora. Quando chegamos em casa o cachorro já estava andando normal.
II.
Em 2012 ingressei no curso de Letras de uma faculdade particular. Na época eu já usava shampoo azul para cabelos grisalhos. Por que fiz isso? Por quê? Estudei para o ENEM. Tive que descobrir primeiro o que era ENEM, no meu tempo era vestibular. Estudei bastante, por prazer. Era um estudo nostálgico: Placas tectônicas, Matrizes, Tabela Periódica, Roldanas, Senhora, Iracema. Passei em quinto lugar, Letras. Achei que por ser mais velho e por causa da boa colocação me dariam uma bolsa. Não deram. Meus colegas, que tinham menos da metade da minha idade, disseram que havia várias formas de se conseguir uma bolsa. Tirei boas notas (embora detestasse o curso, detestasse tudo aquilo. Como fui infeliz!); puxei saco dos professores; participei de grupos de pesquisa; cheguei a me inscrever em uma seleção para cantar no coral da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, que fica dentro da faculdade. Ensaiei por semanas, Quem sabe
, do Carlos Gomes. Mas no dia da audição me informaram que só seriam aceitos cantores com menos de vinte anos. Não consegui a bolsa.
Por incrível que pareça, havia um colega mais velho do que eu. Dois colegas, Clara e Omar.
Tomávamos café e conversávamos nos intervalos. Os mais velhos, as afinidades da idade. Não que nos sentíssemos superiores; pelo contrário, estávamos sempre deslocados, com a sensação de termos entrado, por engano e mal vestidos, em uma reunião importante, da qual não poderíamos sair no meio para não atrapalhar ainda mais. Coisas que eram simples para os outros, para nós eram complicadíssimas: No prédio III, ao lado do CCR está a pasta C-48, é melhor usarem a Xerox que fica no segundo andar do PJRW, que costuma estar mais vazia. O outro texto é só ir na sala de computadores do prédio anexo, digitar o número de matrícula, criar uma conta, acessar o site tal e mandar imprimir
. Não sabíamos nem o que era DCE (diretório central dos estudantes). Pedíamos informação aos estudantes apressados usando palavras-chave, de maneira objetiva, sem perder tempo com apresentações, evitando qualquer gracejo ou comentário, quase como quem pede uma esmola, cientes de que os jovens, mesmos os mais educados, não têm saco pra gente velha. Não nos encaram, nunca. Para eles já demos o que tínhamos para dar, somos atrevidos por termos vivido tanto e ainda esperarmos alguma coisa da vida, acham engraçado o fato de estarmos próximos da morte e ainda assim temermos tanto a morte. Não entramos no radar deles, somos invisíveis, o sexo não está em nós, a produção também não, que outros atrativos poderíamos ter?, de jornal velho não saem novidades, ninguém guarda fruta espremida em casa, olha, ele esquece de fechar o zíper da calça, não vamos convidá-los para a chopada dos calouros porque eles dormem cedo, julgam todo mundo com valores do século passado e preferem tomar chá de carqueja à nossa cerveja barata, lá vem mais um colecionador de caixinhas me pedir informação, meu senhor, estou atrasado, tome aqui uma caixinha com mil quadradinhos para o senhor separar os remédios da semana, do mês, do ano inteiro, agora sai da frente porque todo mundo gosta de cheiro de livro novo, e é meio desagradável e sem brilho cheiro de livro velho, assim como de pulseira de couro velha. Tentávamos disfarçar o olhar assustado, como se tivéssemos crescido em uma lavoura e, do dia para noite, nos jogassem no meio da Avenida Paulista. Nenhum de nós tinha mais de sessenta e cinco anos.
Teve um dia em que o Omar não estava no café, não me lembro por quê. A Clara não era muito mais velha do que eu, talvez três ou quatro anos.
Ela me disse que não fazia questão de bolsa, que não tinha tempo para participar de outras atividades, que era roteirista e que a companheira dela, americana, havia patenteado um tipo de aparelho dentário invisível, Invisalign, que fazia muito sucesso no EUA, e que por isso elas ficaram bem de vida
. Na verdade, ela disse, muito bem de vida
.
Eu tinha o costume de tomar café e comer uma barra de chocolate no intervalo. Me achava gordo, inchado, queria emagrecer, colesterol, vaidade. Por isso tentava comer apenas metade do chocolate. Naquele dia comi um pouco mais que a metade, faltavam duas fileiras para acabar. Joguei a embalagem que continha as duas fileiras restantes numa lata de lixo.
A Clara estava escrevendo um roteiro em parceria com alguém. Uma série. Uma proposta nova, uma série para jovens que não retrataria os jovens como idiotas assexuados, e que teria mais diversidade, mais representatividade. Eu estava sentado de frente para ela, prestando atenção. Uma abelha sobrevoou meu copo de café. O copo era feito de isopor. A abelha pousou por um segundo na borda. A cabeça da abelha afundou no copo. Mas a bunda pontuda ficou de fora, apontada para cima. A bunda da abelha, dava para ver o ferrão preto na ponta, latejava. Aquele latejar constante, dissociado do movimento da cabeça e das patinhas da abelha me deu nervoso e ânsia de vômito. O pulsar involuntário de coisas orgânicas me dá náusea. Quando criança, de vez em quando à noite ouvia meu próprio coração batendo, o fluxo dos vasos sanguíneos chegava como golfadas nos meus ouvidos. A abelha voou, mas continuava dando voltas sobre nossas cabeças.
Pedi licença e fui até a lata de lixo jogar fora o que restava do café e do chocolate. Mas sem, em momento algum, tirar os olhos da Clara, e sem deixar de prestar atenção no que ela dizia. Depois voltei a me sentar.
Ela, por sua vez, pediu licença e foi àquela mesma lata de lixo. Enfiou o braço inteiro, até o ombro, procurando algo. De repente ela retirou de dentro da lata de lixo o chocolate que eu havia acabado de jogar fora, a embalagem amassada, e voltou a se sentar. Detesto desperdício
, disse. E continuou a me falar a respeito do roteiro, enquanto comia o resto do chocolate, sem se importar com as abelhas nervosas que passaram a rodear a cabeça dela desde que ela meteu a mão na lixeira. Não lembro se eu estava com as pernas cruzadas ou descruzadas.
O Omar também não fazia questão de bolsa, era aposentado do Banco do Brasil. Antes de entrar para o Banco do Brasil ele havia se formado em música numa faculdade em Manaus. Não teve filhos, era divorciado. Quer dizer, viveu por muitos anos com uma mulher, mas nunca se casaram; aliás, durante todo esse tempo eles tiveram uma relação meio aberta e moraram em casas separadas. Agora ele morava em um conjugado. Uma vez me ofereceu carona na volta porque