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Só por hoje
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E-book158 páginas2 horas

Só por hoje

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Sobre este e-book

Um ex-editor de sucesso caído em desgraça e uma bela e jovem garota de programa, de passado misterioso - o encontro de sair faísca entre os dois personagens é o ponto de partida do romance Só por hoje.
Em Só por hoje, há muito mais que uma simples e improvável história de amor. Com linguagem despojada, por muitas vezes até brutal, com frases diretas e total ausência de lirismo de fachada, a ficção de Julio Ludemir – calcada na realidade mais crua – propõe discussões a fundo, sem deixar de entreter o leitor com um enredo cheio de reviravoltas e suspense a cada fim de capítulo.
A temática que salta aos olhos aborda o problema da adição às drogas, cocaína principalmente, a começar pelo título do livro, uma referência ao mantra dos viciados que tentam manter-se longe da tentação. Tony Coelho, o ex-editor, é um dependente químico em recuperação, cuja abstinência já dura 15 anos. Ele sabe que, em caso de uma recaída, teria uma overdose na certa. Mas nada pode fazer depois de se envolver com Laís. Além da forte atração sexual, Tony sente-se na obrigação de ajudar a prostituta que vende o corpo nos inferninhos para poder frequentar as bocas de fumo instaladas nas favelas de Copacabana.
Ao flagrar um momento de tensão e acerto de contas de um homem com seu passado, o romance aproveita para tocar em outros temas além do consumo de drogas. Só por hoje é também um livro sobre o desejo e as formas perversas de sua manifestação. E sobre a amizade e o seu reverso da moeda, a traição.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de nov. de 2012
ISBN9788581221632
Só por hoje

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    Só por hoje - Julio Ludemir

    Autor

    capítulo um

    Quando a campainha tocou, pensei em não atender. Era dado a essas coisas, principalmente quando estava com os prazos de tradução estourando. Já perdera a conta das vezes em que permaneci diante do computador, enquanto a campainha se esgoelava. Sequer me dava ao trabalho de espiar pelo olho mágico para saber quem estava me procurando.

    Dessa vez, porém, estava preocupado com a Laís. Ela sumira havia cerca de uma semana e, como sempre, eu estava com saudade. A casa ficava vazia sem seu sorriso adolescente, sem o cheiro da sua lavanda e, acima de tudo, sem a ordem que conseguia dar a meus livros, cuja poeira tirava antes de achar um lugar adequado para eles. Também adorava vê-la na internet, trocando e-mails com os clientes e registrando seu cotidiano no blog que mantinha sempre atualizado. Foi por seu intermédio que descobri que as garotas de programa haviam entrado na era digital antes mesmo do estrondoso sucesso de Bruna Surfistinha.

    – Oi – ela disse com toda sua juventude, quando abri a porta enrolado numa toalha, ainda pingando do banho que interrompera.

    Ela sempre me fazia essas visitas depois de passar uma temporada lá em casa. O pretexto não mudava: devolver as roupas que lhe emprestava. Eram as roupas da falecida, que guardei não me perguntem por quê. As duas tinham o mesmo corpo. Lindo.

    – Você demorou – eu disse. – Pensei que tivesse ficado com raiva de mim.

    – Por que eu ia ficar?

    – Você sabe.

    – Jamais vou ficar com raiva de você. Quer dizer… A não ser que você me deixe no corredor, plantada que nem uma panaca.

    – Desculpe – eu disse, abrindo passagem para que entrasse. – É que eu estava preocupado.

    – Preocupado com o quê? Você é sempre tão bom pra mim.

    – É que…

    Não tive coragem de falar sobre a estupidez que lhe dissera no nosso último encontro, havia exatos sete dias. Passei a semana me remoendo, só não achando que a tivesse perdido para sempre porque ela é uma drogada de primeira qualidade. No mínimo, voltaria a vê-la completamente chapada no Lido, nas proximidades do Balcony. O Balcony é o bar para onde vão as prostitutas mais baratas de Copacabana. Laís não gosta dele, mas, por um motivo que nunca entendi e que ela jamais tentou explicar, é para lá que vai quando fica doidona. E enquanto ela não se rendesse a sua doença, iria enfiar o pé na jaca pelo menos uma vez por semana. Pelo menos.

    – Já passou, não se preocupa, não – ela disse, desmanchando meu cabelo.

    Laís me entregou as roupas da falecida, que trouxe lavadas, passadas e dobradas em uma sacola de grife que devia ser famosa, pois ela só anda na marca, como gosta de dizer. Sempre trazia as roupas de Ângela nessas sacolas.

    – Vim trazer as roupas que você me emprestou e…

    – Agradecer pela gentileza – eu disse, tentando imitar sua voz.

    Ela riu. Ficava ainda mais bonita assim, pensei. Seu cheiro de lavanda também ficava mais acentuado quando ria.

    – Quer um café? – ofereci, como sempre.

    Joguei a sacola no único sofá da casa, que à noite virava a cama na qual a via dormindo antes de se sentir em condição de voltar para a correria na Help, boate em que disputava os euros dos italianos e os dólares dos americanos que mais tarde gastava nas lojas de sua preferência e, claro, nas bocas do Chapéu, do Tabá, dos Cabritos ou do Pavão-Pavãozinho. Fui até o banheiro, onde acabei de me enxugar e coloquei às pressas uma bermuda e uma camisa de malha branca.

    – Pode deixar que eu faço o café – ela gritou da sala.

    Adorava o café dela, que só não era melhor do que o da padaria da esquina. O meu era uma porcaria. Ou ficava muito forte ou muito fraco. Também não me entendia com a temperatura da água, que, segundo ela dizia nas temporadas que passava lá em casa, é fundamental na feitura de um café saboroso.

    – Você já almoçou? – perguntei quando saí do banheiro.

    – Já – ela disse. – E pode tirar o cavalinho da chuva, porque não vou fazer comida pra ninguém.

    Também gostava da comida que ela preparava, mesmo que não tivesse nada na despensa. Não sei como, mas conseguia dar gosto até a um macarrão barato. Viver ao seu lado era uma experiência deliciosa.

    – Adoro a sua comida, mas juro que não estava pensando em alugar você – eu disse. – Estava pensando em convidá-la para me desculpar.

    – Pensei bem. E você estava certo.

    Eu estava coberto de razão quando disse que boceta de puta tem inhaca, por mais limpa que ela seja e por mais banhos que tome entre uma trepada e outra. Todos os homens que frequentam os inferninhos de Copacabana não apenas sabem disso, como também conhecem as razões para que nada consiga tirar aquele ranço, que parece vir da alma. Mesmo assim, eles não deixam de procurá-las só porque trazem dentro de si a indelével porra de assassinos sanguinários, traficantes exibicionistas, fraudadores da Previdência, cafetões espancadores de mulheres ou bissexuais que levam o vírus HIV para as mães de seus filhos. Mas só dissera aquilo porque não aguentava mais ouvi-la falar que não a comia só por ser viado. A única justificativa que encontrei para nunca tê-la agarrado foi a inhaca das bocetas penetradas por qualquer cafajeste com o bolso estufado de dinheiro.

    – Mesmo assim, eu não poderia dizer aquilo naquela hora.

    Lembro bem da gravidade do momento, que talvez não tenha percebido por causa do sorriso que continuava estampado em seu rosto mesmo ao falar do filho da puta do seu padrasto.

    – As grandes verdades da vida podem e devem ser ditas a qualquer hora – ela disse enquanto coava o café.

    Ela havia acabado de me contar sobre o dia em que o padrasto tirara seu cabacinho, quando tinha apenas treze anos.

    Tomamos o café sentados à mesa ao lado da cozinha, que passava a maior parte do tempo embutida na parede.

    – Eu mereci aquela grosseria – ela disse. – Acho que você esqueceu, mas eu só te falei do meu padrasto pra dizer que os únicos homens que não me comeram foram os velhos broxas, os cheiradores compulsivos e os viados. E ainda bem que você respondeu daquele jeito. Aí eu tive certeza de que você é macho. E um macho como poucos que existem na face da Terra. Nunca poderei esquecer isso. Por favor, não deixe que eu esqueça isso nunca.

    Peguei a mão dela e comecei a acariciá-la. Era isso que devia ter feito quando me revelou os abusos sexuais de que foi vítima. Ela realmente estava me tirando do sério com aquela história de que sou viado, para a qual voltava desde a primeira temporada que passara lá em casa. Mas eu devia ter paciência com ela. No seu lugar, talvez pensasse a mesma coisa. E, como ela, escarneceria de um coroa que passa dias com um broto dentro de uma quitinete e não parte para dentro. Qualquer que fosse a lógica em que me baseasse, chegaria às mesmas conclusões a que ela sempre chegava, uma decorrente da outra: só fazia aquilo tudo porque a amava; e, se a amava e não a comia, era porque sou broxa ou viado. Não sei por que é mais fácil para um brasileiro dizer que tem tesão em homens do que admitir que não tem desejo.

    – Acho que agora entendo por que te pego na rua todas as vezes que te vejo chapada.

    – E por que você faz isso?

    – Pra ouvir o que você acabou de me dizer.

    Pensara muito sobre os motivos para levá-la para casa, sempre que a encontrava chapada no Lido. A primeira hipótese a que me apeguei, para usar um dos lemas da irmandade, foi a de um dependente químico estendendo a mão para um adicto que sofre. Mas logo percebi que não estava querendo dar de graça o que de graça recebi, que vem a ser o conceito por trás da necessidade de servir, estimulado na literatura do Narcóticos Anônimos. Continuava limpo, porém não mais graças ao poder superior, à ajuda da sala e à minha boa vontade, como os companheiros mais ortodoxos costumavam dizer ao abrir suas falas na cabeceira da mesa. Fazia tempo que não repetia a máxima ou é sala ou é vala.

    É verdade que a levei a algumas reuniões, e confesso que, no mínimo, dei boas gargalhadas com suas observações corrosivas.

    – Só tem cliente aqui – ela disse depois da primeira reunião de que participamos.

    – Como? – perguntei, incrédulo.

    – Foi isso mesmo que você ouviu. Passaram trinta pessoas pela reunião, das quais apenas duas eram mulheres. Das doze pessoas que partilharam suas experiências, cinco falaram mais das prostitutas do que das drogas. Pelo que me lembre, trepei com três homens dali. E já vi quase todos ou na Barbarella ou no Balcony ou na Help. Isso sem falar que um deles foi limpador de porra do peep-show da Praça dos Paraíbas, onde já trabalhei algumas vezes.

    Entendo a compulsão por sexo dos adictos em recuperação, ainda que eu mesmo não tenha sido atacado por ela. É por isso que o segundo passo fala da importância de se acreditar que um poder maior do que nós poderá devolver-nos à sanidade. Sem esse poder, preenchemos o enorme vazio deixado pela droga com comida, jogo ou prostitutas. Conheço vários companheiros que se entregaram a essas adicções.

    A segunda hipótese a que me apeguei foi derrubada depois que lhe falei de dois livros que acabara de ler, ambos dedicados à relação entre velhos e ninfetas. Um desses livros foi A casa das belas adormecidas, no qual o escritor japonês Yasunari Kawabata conta a história de uma espécie de confraria de idosos que rejuvenescem depois de passar seguidas noites sentindo o aroma que emanava de meninas impúberes, puras como a neve.

    – Nem você é um velho safado, nem eu sou uma Lolita – disse ela com o sorriso que parecia tatuado no seu rosto, o mesmo que algumas vezes fez com que eu não percebesse a gravidade do assunto que estávamos conversando.

    Ela também desdenhou quando lhe falei de Memória de minhas putas tristes, o último romance do escritor colombiano Gabriel García Márquez, talvez o meu autor preferido.

    – Você já está naquela idade em que qualquer balzaquiana lhe parece uma novinha, mas, a não ser que você tenha um cirurgião plástico melhor do que o de Michael Jackson, você está longe de fazer noventa anos.

    Ela não deixava de ter razão, mas talvez pensasse de outro modo no dia em que lhe dissesse como lidei com sua nudez, que descobri ao trocar-lhe a roupa mijada na primeira noite em que dormiu lá em casa. Talvez minha curiosidade de voyeur tenha sido despertada pelo cheiro de lavanda, milagroso para quem estava pernoitada. Esse perfume me fez esquecer a inhaca de puta que esperava encontrar quando a levei até o chuveiro, onde lhe dei um banho como o que toda garota de programa com um mínimo de higiene devia tomar ao chegar em casa de manhã: bem longo.

    Fazia anos que não via uma mulher tão de perto e com tanta intimidade. Andava tão sem interesse que me assustei com a sensação de encantamento que invadiu meus olhos, meu nariz, meu tato e meu coração. Minha longa abstinência sexual podia estar me deixando demasiado sensível, vendo uma beleza especial em uma mulher mais do que comum, vulgar. Mas o fato é que desde então minhas noites foram mais felizes quando tive o pretexto de desnudá-la ou apenas de lhe oferecer meu sofá-cama, em cujos lençóis deixava

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