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Drogas: O que Sabemos Sobre?
Drogas: O que Sabemos Sobre?
Drogas: O que Sabemos Sobre?
E-book868 páginas10 horas

Drogas: O que Sabemos Sobre?

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Sobre este e-book

Você ou algum conhecido já deve ter se perguntado Drogas, o que sabemos sobre? Mesmo que seja um tema milenar nas sociedades humanas e notoriamente polêmico nos últimos séculos, um olhar mais cauteloso sobre o tema nos revela surpresas. Drogas foram e ainda são estudadas pela Ciência Biomédica, que descreve particularidades farmacológicas e fisiológicas: desde como são obtidas até como funcionam em nosso corpo, mudando nosso comportamento. Nas Ciências Humanas, relatos históricos mostram uma relação intrínseca entre o uso de substâncias diversas, com usos e consequências também diversos, e o nosso desenvolvimento como espécie e sociedade. Atualmente, o tema Drogas se apresenta repleto de conceitos e pré-conceitos, que são usados para nossa contínua transformação social. Contudo, pouco sabemos sobre um assunto tão recorrente e tão enraizado em nosso dia a dia. E parte dessa nossa ignorância coletiva se preserva porque os conhecimentos não se dialogam, não tecem uma rede de informações e formações que permitem uma análise multidisciplinar sobre o tema. Até agora.
Drogas, o que sabemos sobre? intenciona trazer a você, leitor, informações consistentes e atualizadas sobre as mais diversas perspectivas sobre o assunto: história das substâncias mais comuns, assim como seus aspectos socioeconômicos, legais, políticos, químicos, farmacológicos e biomédicos. Não obstante, esclarecemos sobre os fundamentos de farmacologia e neurociências que podem auxiliá-lo na compreensão de informações técnicas. Também, acendemos a chama da reflexão ao trazer questionamentos sobre diferentes concepções histórico-culturais do assunto e seu impacto na tão discutida proibição e legalização.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de out. de 2021
ISBN9786525010663
Drogas: O que Sabemos Sobre?

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    Drogas - Bruno Garcia Simões Favaretto

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES

    A todas as pessoas interessadas em questionar e conhecer, dispostas

    a mudar e crescer. Como dizia Immanuel Kant, Sapere aude!

    AGRADECIMENTOS

    Agradecemos ao Prof. Dr. Victor Rodrigues Nepomuceno, por auxiliar no andamento e aperfeiçoamento do projeto de extensão que deu frutos a este livro.

    Ao Prof. Dr. Heber Rogério Gracio e à Prof.ª Dr.ª Leila Rute Oliveira Gurgel do Amaral, por auxiliarem na aproximação entre autores.

    Aos professores Dr.ª Tânia Mara Campos de Almeida e Dr. Mauro José Pantoja Fontelles, pela orientação e aconselhamento no processo de publicação da obra.

    Aos povos indígenas e africanos, que nos legaram ricos conhecimentos sobre o tema, mesmo sob condições adversas.

    Aos pesquisadores, que obtiveram informações científicas e permitiram a construção e o acesso conhecimentos preciosos;

    Aos professores, que atuam diariamente, nas mais diversas condições, para tornar todos nós pessoas mais sábias e reflexivas.

    À Universidade Federal do Tocantins, que nos cedeu a infraestrutura para treinamento, aperfeiçoamento e condução do projeto em sua etapa inicial.

    E, por fim, aos familiares e amigos que, cada um à sua maneira, auxiliaram os autores na realização do presente livro. Em especial, agradecemos a: Alessandra Worm, Aline Salles, Ana Maria G. Simões, Antônio Adolfo Carneiro, Beatriz Carvalho Barros Dias, Carita Rinaldi, Cecília Galício, Célia Maria de Oliveira, Cristiane Worm, David N. Favaretto Filho, Diana Queiroz de Araujo Rocha, Edimar Sousa, Eduardo D. Favaretto, Eduardo Fernandes Honorato Gontijo, Emílio Figueiredo, Esmeralda Maria de Queiroz, Fabyana Aparecida Soares, Gustavo Santos, Henrique Soares Goulart, Iony Carvalho, João Marques Ferreira, Kamila Lima, Larissa D. Dias, Lucas Vieira Pacheco, Luciana Sousa, Maria Aparecida Oliveira Dornelas, Maria do Socorro Carvalho Barros Dias, Mário Francisco Alves, Mateus Carvalho Barros Dias, Maurício Nagata Yoshida, Nicole Colossi Vasconcelos Meireles, Nilson Rocha Ferreira, Odilon Barros Dias, Paulo Fraga, Salete Worm, Silmar de Oliveira Lopes, Simone Colossi, Thays Vogel Rodrigues, Victor Rinaldi.

    A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original.

    (Albert Einstein)

    Sumário

    Introdução

    13

    Bruno G.S. Favaretto

    Capítulo I

    A COLONIALIDADE DO SABER SOBRE AS DROGAS

    15

    Janaína Alexandra Capistrano da Costa

    Capítulo II

    ASPECTOS JURÍDICOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS: UMA BREVE EXPLANAÇÃO ACERCA DA SUA CONSTRUÇÃO NORMATIVA

    37

    Naíma Worm

    Capítulo III

    DROGAS E SOCIEDADE: QUESTIONANDO A PROIBIÇÃO E COMBATENDO O PRECONCEITO À LUZ DO CONHECIMENTO CIENTÍFICO

    49

    Leonardo Moreira Campos Lima

    Capítulo IV

    CONCEITOS DE FARMACOLOGIA NA PERSPECTIVA DO USO E ABUSO DE SUBSTÂNCIAS

    75

    Laís Resende Gontijo, Bruno Garcia Simões Favaretto, Poliana Guerino Marson

    Capítulo V

    O SISTEMA NERVOSO E O ESTUDO DO COMPORTAMENTO NA PERSPECTIVA DO USO E ABUSO DE SUBSTÂNCIAS

    91

    Bruno Garcia Simões Favaretto

    Capítulo VI

    AYAHUASCA E DMT

    131

    Laís Resende Gontijo, Bruno Garcia Simões Favaretto

    Capítulo VII

    PSILOCIBINA E COGUMELOS ALUCINÓGENOS

    155

    Denilson Itamar Araujo Rocha Ferreira, Bruno Garcia Simões Favaretto, Poliana Guerino Marson

    Capítulo VIII

    LSD

    173

    Fernando Barbosa Mangueira, Bruno Garcia Simões Favaretto, Poliana Guerino Marson

    Capítulo IX

    ECSTASY

    191

    Helen Laurrane Rinaldi de Freitas Alvarenga, Delyone de Paula Canedo Filho,

    Bruno Garcia Simões Favaretto, Poliana Guerino Marson

    Capítulo X

    COCAÍNA

    209

    Diego Henrique Oliveira Dornelas,, Helen Laurrane Rinaldi de Freitas Alvarenga,

    Bruno Garcia Simões Favaretto, Poliana Guerino Marson

    Capítulo XI

    NICOTINA

    239

    Alysson Damasceno Marques, Fernanda Carvalho Barros Dias, Bruno Garcia Simões Favaretto

    Capítulo XII

    MACONHA

    271

    Bruno Garcia Simões Favaretto, Poliana Guerino Marson

    Capítulo XIII

    CAFEÍNA

    303

    Larissa Helena Dias de Faria, Bruno Garcia Simões Favaretto, Poliana Guerino Marson

    Capítulo XIV

    ETANOL

    333

    Ricardo Rodrigues Goulart, Poliana Guerino Marson

    Capítulo XV

    BENZODIAZEPÍNICOS

    373

    Maria Eduarda Freitas de Souza, Débora Sousa Negreiros, Poliana Guerino Marson

    Capítulo XVI

    HEROÍNA

    393

    Henrique Pfeiffer Caiafa, Bruno Garcia Simões Favaretto

    RESUMO DOS PRINCIPAIS ASPECTOS FARMACOLÓGICOS DAS DROGAS DE USO COMUM NO BRASIL

    419

    SOBRE OS AUTORES

    421

    ÍNDICE REMISSIVO

    425

    Introdução

    O presente livro é fruto de um trabalho iniciado por um projeto de pesquisa e extensão, que foi executado em 2019 por docentes e estudantes dos cursos Medicina e Enfermagem da Universidade Federal do Tocantins. O projeto original consistiu na elaboração de pesquisa, compilação e revisão de dados, e elaboração de seminários e pôsteres para apresentação à comunidade. O objetivo era, e ainda é, esclarecer à população e aos profissionais de diversas áreas sobre informações relacionadas ao uso de substâncias, popularmente conhecidas como drogas. O termo drogas não é tecnicamente preciso para as substâncias abordadas neste livro, pois: i) sua origem remete a produtos secos, de origem vegetal, que outrora eram utilizados como remédios ou fármacos; ii) é associado a diversas funções sociais conforme a configuração étnica ou cultural, variando desde contextos hedônicos, religiosos, medicinais ou outros; e iii) carrega conotação predominantemente negativa, associado a coisas ou sensações ruins e desagradáveis (muitas vezes utilizado como interjeição de braveza, irritação, descontentamento ou irritação). Apesar de tudo, é um termo que é facilmente reconhecido pelo vocabulário popular ao se referenciar às substâncias abordadas nesta obra e, inclusive, é o termo de escolha por entidades governamentais ao proporem políticas sobre o assunto (como Política Nacional de Drogas). Por estas razões, foi o termo de escolha para o título do livro e, também, para muitas referências ao longo dos capítulos.

    Drogas, o que sabemos sobre? almeja dissecar as principais drogas do cotidiano moderno, propondo linguagem acessível e informações precisas e fidedignas. Tais informações, embora não inéditas, são esparsamente distribuídas pela literatura científica (o que dificulta seu acesso àqueles não proficientes em pesquisa acadêmica) e extensamente modificadas pela mídia ou costumes populares (propagando concepções imprecisas ou mesmo erradas entre a população, ou até entre classes profissionais). Tal caos de informações, que é uma das características do século XXI, dificulta a obtenção das informações mais importantes e relevantes de determinado assunto. E é nessa seleção e hierarquização de conteúdo que a presente obra oferece sua maior contribuição, especialmente ao contexto brasileiro. Eventualmente, são revistos determinados conceitos relacionados a certas substâncias, uma vez que o trabalho de revisão bibliográfica foi feito de maneira minuciosa, confrontando a confiabilidade de dados antigos com os achados recentes, em sua maioria subsidiados por novas tecnologias que permitem novas descobertas.

    O leitor poderá observar que cada capítulo tem seus próprios autores. Tal configuração permitiu a divisão de um árduo e longo trabalho de pesquisa e escrita, devotando a cada substância a atenção especial que merece. Como consequência, mesmo que haja uma formatação estrutural preservada em relação ao conteúdo abordado em cada capítulo, serão observados diferentes estilos de escrita ou, até mesmo, diferentes concepções e visões sobre as classificações, impactos e potenciais usos terapêuticos de cada droga. Tal riqueza vem apenas a contribuir ao senso crítico do leitor, que pode entender o amplo conceito de drogas sob diferentes perspectivas.

    O livro é estruturado da seguinte forma. Todos os textos são construídos seguindo os fundamentos científicos da pesquisa, do pensamento e da escrita, além de serem revisados pelos coordenadores organizadores da obra. Portanto, são dotados de criteriosas e precisas referências bibliográficas ao final de cada capítulo, as quais podem ser consultadas pelo leitor que deseje interpretações próprias das informações levantadas. O primeiro capítulo aborda e problematiza os termos e classificações atrelados às substâncias conhecidas como drogas, psicotrópicos, entorpecentes etc., discutindo a episteme moderna que estabelece os diversos signos qualificativos destas. O capítulo 2 traz uma série de predisposições legais e vigentes no Brasil sobre o que se entende de drogas, contemplando principalmente a expectativa e a realidade das obrigações governamentais frente ao tema. E o capítulo 3, por sua vez, discute a problemática envolta na história e nos interesses relacionados à legalização de drogas. São temas de recorrente interesse e que podem enriquecer a visão do leitor ao se deparar com diferentes perspectivas, inclusive as apresentadas por cada capítulo que o sucede. Os capítulos iniciais trazem, portanto, informações que subsidiam reflexões sociopolíticas e compreensões de caráter não biomédico das substâncias. O quarto e o quinto capítulo apresentam uma síntese das informações em farmacologia e neurociências, respectivamente, que são essenciais para a compreensão biomédica (e, até certo ponto, também social) das drogas. Por fim, a partir do 6º capítulo são abordadas as principais substâncias psicoativas e suas particularidades. Cada um destes capítulos apresentará, então, aspectos históricos, sociais, econômicos e políticos da substância, suas características químicas e farmacológicas mais marcantes, e, por fim, seus efeitos biológicos e correlações clínicas. Tal divisão foi estruturada para conferir valor didático ao leitor. Contudo, é sempre importante estarmos atentos que, como dizia Aristóteles, o todo é maior que a simples soma de suas partes. A adequada compreensão desse tema tão complexo demanda reflexão, integração e questionamentos incessáveis.

    Uma vez que as drogas recebem diferentes atenções da comunidade científica, alguns capítulos são mais extensos que outros, em detrimento da quantidade de informação disponível e atualizada sobre a droga que abordam. Caso o leitor tenha interesse em se aprofundar sobre diferentes concepções e fenômenos, recomendamos a leitura das obras indicadas nas referências de cada capítulo. Ao fim da obra, também, é apresentada uma tabela que sintetiza as informações farmacológicas mais relevantes de cada droga, para fins de consultas do leitor.

    Ressalto que muitas das informações, especialmente as de conteúdo relacionado à prática médica (diagnóstico e tratamento), são apresentadas de forma a apoiar a prática de profissionais da saúde. Portanto, subentendem aspectos próprios da formação em saúde e não devem ser utilizados por leitores sem acompanhamento médico, nem sequer para sobrepor a conduta de profissionais responsáveis. Ademais, as informações que constituem a presente obra são periodicamente atualizadas, de forma que a edição deste livro pode estar desatualizada a partir do momento de sua publicação. Logo, nunca deixe de consultar um profissional da saúde caso tenha a intenção de adotar medidas em relação às substâncias abordadas neste livro. Aos profissionais da área da saúde que procuram por diretrizes de acolhimento e conduta para pacientes com problemas de uso de substâncias, recomendo a leitura do documento intitulado Guia Estratégico para o Cuidado de Pessoas com Necessidades Relacionadas ao Consumo de Álcool e Outras Drogas: Guia AD, elaborado em 2015 pelo Ministério da Saúde.

    Por fim, é crucial advertir o leitor de que esta obra não intenciona direcionar, incentivar ou auxiliar o uso de quaisquer substâncias nela mencionadas. Suas informações são única e exclusivamente fornecidas para fins de esclarecimento e reflexão, consistindo em natureza técnico científica. A partir desses esclarecimentos e reflexões, espero que o leitor possa olhar o mundo sob uma nova perspectiva, mais crítica e holística. Afinal, são múltiplos e diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema que permitirão a você, leitor, construir uma opinião própria inovadora sobre um tema muito falado, e pouco sabido.

    Desejo a todos uma ótima leitura.

    Bruno G.S. Favaretto

    Capítulo I

    A COLONIALIDADE DO SABER SOBRE AS DROGAS

    Janaína Alexandra Capistrano da Costa

    O campo de pesquisa sobre as drogas encontra-se perpassado por uma série de desafios singulares, devido especialmente ao influxo do tipo de controle exercido pelos Estados sobre certas substâncias e as práticas relacionadas a elas e também à ingerência de argumentos de ordem moral nesse tema, uma vez que este trata de mudanças no comportamento e nas formas de pensar. Diante disso, a perspectiva científica que é influenciada por esse contexto e ao mesmo tempo deseja dialogar com as demandas sociais deve lidar com razões que escapam à sua lógica e a cerceiam exigindo com frequência caros posicionamentos políticos. Concomitantemente, a realidade do uso de drogas não deixa de nos interpelar cotidianamente com inúmeras questões dramáticas, tais como a manutenção do consumo global de substâncias consideradas ilícitas, a ineficácia das políticas proibicionistas¹ e seus efeitos perversos como o hiperencarceramento, o aumento progressivo do uso de drogas lícitas controladas, dentre outras. Tudo isso nos incita a pensar em alternativas ao status quo das relações com as drogas, por meio de uma ética da responsabilidade na ciência².

    Um dos grandes desafios postos aos pesquisadores nesse campo consiste especificamente em lidar com limitações na definição de terminologias, classificações e tipologias. No presente texto, proponho explorar a hipótese segundo a qual parte importante dessas limitações se deve ao enquadramento epistêmico promovido pelo paradigma da racionalidade/modernidade¹ atualmente hegemônico. Nesse enquadramento, a lógica racional é considerada como sendo o único caminho para a produção do verdadeiro conhecimento e suas operações fundamentais são a disjunção, a diferenciação, a simplificação, a hierarquização e a causalidade. A aplicação inequívoca dessa lógica dificultaria auferir relevância aos papéis dos sujeitos e dos contextos na conformação do fenômeno das drogas e isso acaba comprometendo a capacidade explicativa das definições. Explorarei essa hipótese, por meio de uma discussão sobre aspectos atinentes à operacionalização dessa lógica no tratamento e significação de espécies vegetais e substâncias no chamado mundo moderno. Ademais, complementarmente tecerei considerações acerca de alguns casos como o da cannabis, o do tabaco, o da jurema e o da ayahuasca, sublinhando a variância e o movimento presente nessas substâncias em relação aos seus contextos de uso, a fim de exemplificar o caráter pluriversal e pluritópico das drogas e seus usos e desse modo promover um desprendimento epistêmico¹,²,³. Sinteticamente, esse se desprender significa abrir-se para o aporte de conhecimentos advindos de epistemes outras e, por conseguinte, dispor-se para a comunicação intercultural e o intercambio efetivo – e afetivo – de experiências e significações, muitas das quais foram e estão sendo silenciadas⁴. Logo, mais do que limitações metodológicas e teóricas, estou me referindo aqui à opção descolonial.

    A primeira e mais evidente dificuldade encontrada pelos estudiosos que adentram esse campo consiste em chegar a bom termo na definição da palavra droga, que surge no entendimento comum contemporâneo carregada de sentido pejorativo designando substâncias que causariam doenças, descontrole, vicio e dependência, dentre outros malefícios de definição controversa⁵,⁶,⁷. Nesse sentido, o simples fato de existirem drogas nas sociedades seria motivo suficiente para se considerar a existência do problema das drogas, que legitimaria políticas de controle nas áreas de segurança e de saúde com os objetivos de extinguir substâncias e promover a abstinência respectivamente⁸. Desde esse ponto de vista ocorre uma supervalorização da dimensão bioquímica, porque às substâncias é auferido papel dominante na relação com o consumidor e o meio, o que produz uma tendência a homogeneizar pessoas e grupos⁹,¹⁰,¹¹. Tendência que encontra expressão num imaginário que aufere caráter monstruoso aos sujeitos que se relacionam com as drogas, estigmatizando-os a partir de estereótipos como o do drogado e o do traficante³. Tal compreensão, resumida aqui, possui caráter abrangente, sendo compartilhada e reproduzida em diferentes campos da vida, política, ciência e religião, dentre outros. Diante disso, a perspectiva crítica contemporânea realiza investimentos para desnaturalizar o termo droga, mostrando que ele possui diversos sentidos construídos ao longo do tempo, de acordo com o contexto em que é empregado¹³,¹⁴,¹⁵.

    Na prática essa desnaturalização acabou se constituindo num procedimento de praxe para muitos pesquisadores, que para o realizar acionam alguns recursos. Um desses recursos consiste em explorar a etimologia da palavra droga, descortinando a produção de significados por sujeitos imbuídos de determinados olhares e interesses.

    Dentre as hipóteses sobre a origem dessa palavra a mais assente é aquela que deriva do holandês droog, cujo significado literal seria produtos secos⁵ ou ainda de drogue vate na mesma língua que significa barris de coisas secas¹⁵. Tais termos teriam emergido com força por volta do século XIV ainda sob o influxo dos intercâmbios econômicos e culturais promovidos por meio da empresa cristã das cruzadas. Por meio dessa experiência a cristandade europeia apropriou-se e ressignificou definitivamente práticas e saberes do mundo árabe como o consumo de especiarias de todos os tipos, pimenta, canela, cravo, noz moscada, incenso, mirra etc.¹⁵. Além de outras substâncias como os preparados à base de ópio, cannabis e solanáceas, que durante a terceira cruzada teriam sido oferecidas pelos médicos do sultão e chefe militar islâmico Saladino a prisioneiros e inimigos feridos e adoentados, impressionando-os por seus efeitos e levando-os a tentar reproduzir tais substâncias em seu território posteriormente¹³. A incorporação pela cultura europeia dos usos do café, do açúcar, e de bebidas alcóolicas destiladas também adveio desse fluxo de trocas e ocorreu de forma paulatina e exponencial. No caso do álcool destilado, até o século XII ele foi considerado um produto medicamentoso restrito, quando o aumento da sua produção passou a ser estimulado por membros da monarquia europeia. Cinco séculos depois o álcool se tornou muito presente na dieta ocidental, respondendo a necessidades antes relacionadas ao ânimo, ao comportamento e à economia do que à nutrição propriamente, embora em muitos grupos que vivem em precárias condições de sobrevivência ele seja encarado praticamente como um alimento¹⁵,¹⁶.

    A palavra droga, portanto, teria surgido colada a experiências de alteridade entre cristãos e seus outros, aqueles considerados pagãos, primeiramente orientais, árabes, muçulmanos e depois os nativos americanos. Durante a Conquista da América, um famoso historiador, Gaspar Barléu, em apologia à expansão marítima holandesa irá advogar no séc. XVII que Deus criara drogas quentes nas regiões tórridas e drogas frias em regiões frígidas para que os povos se aproximassem por meio das trocas desses produtos. Nesse período, comumente um grande número de substâncias e espécies vegetais ou partes destas e até mesmo objetos como os tecidos foi designado por tal vocábulo⁵. A exemplo das chamadas drogas do sertão, cacau, salsaparrilha, cravo amazônico, canela, castanhas, resinas, óleos de árvores, banha de tartaruga, manatim e raízes aromáticas dentre outras especiarias nativas, exploradas pela coroa portuguesa por meio da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão¹⁷. Entre os séculos XVII e XVIII essas drogas úteis tanto na alimentação e condimentação, quanto na farmacopeia e construção naval da Europa ocidental, constituíram-se em razão da ocupação portuguesa do território norte e nordeste da colônia e em alavanca da acumulação primitiva do capital¹⁸.

    O protagonismo exercido pelas drogas durante o primeiro grande período de impulso do capital ligado à implantação do capitalismo global e do Estado moderno é um aspecto em torno do qual gravitam interesses econômicos e políticos aliados a um padrão de dominação que pode ser mais bem compreendido por meio do conceito de colonialidade do poder¹,⁴. Ocorre nesse período uma verdadeira revolução psicoativa⁴ de caráter planetário como resultado de três fatores conjugados; mercantilização das drogas, razão de escravismo e deslocamentos massivos e forçados; ampliação sem precedentes da variedade desses produtos disponível no mercado e ampliação do acesso ao consumo destes¹⁹. A matriz colonial de poder se funda na imposição de uma classificação da população segundo raça e gênero e as identidades forjadas a partir desse referencial legitimam o domínio e a exploração de certos corpos e são capitalizadas pelo sistema colonial, condição que se perpetua mesmo após findado este sistema⁴,²⁰. Tal matriz se distingue por se estruturar nos níveis econômico, político, epistemológico e militar, mas é no nível epistemológico que a retórica da modernidade adquiriu valor. É neste nível do discurso que dita classificação é propalada surgindo como produto de uma concepção de mundo que se pretende universalista (monocultura do pensamento) salvacionista (teo-lógica) e modernizante (ego-lógica)¹. Logo, há uma relação inextrincável entre, revolução psicoativa, colonialidade e paradigma da racionalidade/modernidade.

    A história do referido comércio psicoativo é marcada por um mistério pouco mencionado; a sua alta seletividade face à infinidade de drogas disponíveis após a dominação do dito Novo Mundo¹⁹. A partir de fatores de ordem econômico, como transporte, armazenamento e manutenção da força de trabalho, bem como de ordem cultural, como a visão cosmológica, o gosto estético e o estado de ânimo desejado, os europeus decidiram ignorar ou erradicar muitas plantas psicoativas novedosas, ao mesmo tempo em que cultivaram e comercializaram no mundo todo as drogas que consideraram rentáveis, uteis e aceitáveis para si. Além disso, desenvolveram tecnologias associando-se à nascente ciência, para fazer cada vez mais eficiente, rápida e lucrativa a inserção dos psicoativos eleitos como símbolos da modernidade no cérebro de milhares e milhares de consumidores em todo o planeta. Transformando e moldando, assim, o estado psíquico e instaurando distintivos sociais, sobretudo, por meio do álcool da cafeína e do tabaco¹⁹.

    Entretanto, essa seletividade não aparece como resultado da incidência de uma visão eurocentrada e imperialista, mas sim como decorrência natural da evolução e da salvação dos seres humanos e também do desenvolvimento civilizacional – por excelência racionalizante –, justamente porque a retórica celebratória da modernidade assim a mostra e a torna inquestionável. O grande truque mágico desta é ocultar a geo-política e a corpo-política do conhecimento que representa; quer dizer, ocultar que o conhecimento teológico e o conhecimento científico que se pretendem predominantes são construídos nos fundamentos das línguas gregas e latinas (inglês, alemão, francês, italiano, espanhol e português) e baseados na experiência e sensibilidade europeia, por meio do homem branco e cristão¹,²⁰. A racialização e a generificação procedem desse conhecimento e é importante reter que tal vinculação reflete, quase sempre de forma violenta, na divisão das drogas, seus usos e das pessoas ligadas a esses usos. Divisão da qual nenhuma classificação prescinde.

    Com o tempo o significado difuso do termo conforme apontado anteriormente, vai sendo suprimido, dando lugar a definições estanque e perdendo uma proximidade de sentido que poderia ter com a palavra grega phármakon. A perspectiva crítica recorre a esta palavra com bastante frequência, sublinhando seu duplo e concomitante significado como remédio e veneno, como mais uma referência que rompe com o sentido único na interpretação do fenômeno das drogas. São investimentos na recuperação do significado nativo do phármakon, que teria sido mutilado por traduções dicotômicas e pelo apagamento de saberes e práticas de origem indo-europeia ligados ao culto da natureza e ao panteão greco-romano, como aqueles referentes ao uso de preparados anestésicos ou psicoativos, que foram encarados como apostasia pelo domínio católico.

    Sendo traduzido como remédio ou veneno pela lógica da racionalidade transparente da ciência, da técnica e da causalidade terapêutica esse termo teve mutilado seu potencial explicativo²¹. O phármakon segundo a concepção nativa se constituiria na dolorosa fruição entre remédio e veneno, bom e ruim, agradável e desagradável e, consequentemente, teria significados móveis e ambíguos, quer dizer, nem todo veneno é só maléfico e nem todo remédio é só benéfico. Anulando a fonte de ambiguidade a tradução ocidental impede a inteligência do contexto e elimina do texto o apelo à virtude mágica de uma força à qual se domina mal os efeitos²¹. Uma cena clássica para o pensamento ocidental serve de referência para as limitações que tal anulação pode significar. Nessa cena o filósofo Sócrates, condenado à morte pela cidade de Atenas deve ingerir a cicuta, um phármakon traduzido normalmente como veneno pelas chamadas línguas imperiais europeias da modernidade ocidental²,³. A riqueza desse momento, porém, residiria justamente em contornar a pena atribuindo ao phármakon ingerido a função de meio de libertação, possibilidade de salvação e virtude catártica²¹. "A cicuta tem um efeito ontológico: iniciar à contemplação do eîdos e a imortalidade da alma. Sócrates a toma como tal"²¹.

    Essa disposição seria confirmada por Sócrates ao consultar seu verdugo se lhe estava permitido dirigir uma oração aos deuses antes de ingerir a substância mortífera, ao que este responde: Y es conveniente para que el translado de aqui a allá suceda com ventura. O termo translado corresponde à metoikesis em grego, palavra que alude à mediação entre os grandes estados do ser como alma, preexistência, existência y pós existência²². O deserto, para o eremita, é uma metáfora da metoikesis, pois coloca o corpo à prova numa saída do mundo e busca por concordância com a unidade celestial, assim como o espaço psiconáutico o seria para os extremistas metafóricos⁵,22.

    A ambiguidade móvel do phármakon parece afinar-se bem com a mediação da metoikesis enquanto problemática do trânsito entre os mencionados estados⁶. Alguns aspectos importantes do contexto da citada cena permitem conjecturar que essa associação não é nada fortuita. Esse contexto estava marcado pelas presenças tanto do Oráculo de Delfos que simbolizava a unidade dentro da pluralidade da civilização helênica, funcionando como um condensador político desta, quanto dos Mistérios de Elêusis, a maior referência espiritual do mediterrâneo por cerca de dois mil anos e que marcou uma grande diversidade de ritos dessa região. No santuário délfico, uma fenda emanava vapores inalados pela pítia que inspirada anunciava o oráculo. Os efeitos de tais vapores são mencionados por um grande número de pensadores e personalidades políticas da época, Platão, por exemplo, menciona um delírio comparado aos transportes de Afrodite. A hipótese desses efeitos como produto da inalação de alguma substância psicoativa foi bastante explorada pelos pesquisadores e a tese mais aceita é a do uso da Cannabis⁷,13. Paralelamente, peregrinos rumavam anualmente para Elêusis nas proximidades de Atenas a fim de participar do rito iniciático no qual ingeriam o kykeon, uma bebida composta por água, farinha e menta. Relatar o que ocorria nesse rito, era expressamente proibido aos participantes dos Mistérios, entretanto, alguns testemunhos lograram informar, mesmo que tangencialmente, tratar-se de uma experiência de morte e renascimento por meio da alteração da consciência. Estudos recentes demonstraram que o fungo ergot parasitário de gramíneas e cereais possui propriedades psicoativas e pode ter entrado no referido composto a partir dos ingredientes deste⁸. Essas práticas resistiram no mundo antigo até mais ou menos o Édito de Tessalônica em 380 d.C. que decretou o cristianismo como religião oficial do Império romano e a subsequente aniquilação delas, demarcando o fim da antiguidade pagã¹³. Curiosamente é suposto que Sócrates, sendo amigo íntimo do líder militar Alcebíades que teria revelado sua experiência eleusina e consumido o kykeon em celebrações privadas, recebeu a mesma pena que este por tal sacrilégio ágape, a condenação à morte¹³.

    Essa breve reflexão pautada pela questão etimológica conduz a uma profusão de sentidos correlacionados a diferentes contextos desestabilizando o termo droga na sua compreensão ordinária⁹. A passagem pelo contexto do phármakon nos permite vislumbrar como os usos de algumas substâncias apresentam mecanismos de controle pautados por conjuntos simbólicos, regras e valores correspondentes à cosmologia própria do grupo humano que os pratica. Por esse caminho, chegamos a outros recursos mobilizados pelos estudos críticos como o recuo histórico e a abordagem antropológica, que apontam para o caráter constitutivo do uso de substâncias psicoativas na cultura humana bem como para a abrangência global dessa prática.

    Durante sua caminhada evolutiva, em meio a experimentações alimentares, os seres humanos teriam percebido que algumas espécies ingeridas forneciam ao organismo mais do que uma simples nutrição, aliviavam dores, provocavam a morte, imunizavam, prejudicavam ou favoreciam a atividade cognitiva. A experiência da mudança cognitiva a partir de algumas drogas teria levado ao desenvolvimento da consciência que geraria as condições para a realização de escolhas e o uso seletivo de espécies, com vistas à manutenção da vida e à produção de sensações e percepções²⁶. A busca pela alteração periódica da consciência seria então, um impulso inato e normal, análogo à fome e ao impulso sexual²⁷. Isso por si só, seria razão para duvidar acerca da eficácia e da moralidade de uma política pautada no proibicionismo e na criminalização de prática tão arraigada na formação da humanidade.

    Segundo uma clássica interpretação, experiências extraordinárias a partir das quais os seres humanos se sentiriam lançados para fora da órbita comum de espaço tempo, sugerindo o acesso a outras dimensões da existência podem ser conceituadas por hierofania²⁸. Reveladora de algo para além do palpável e visível ordinariamente, esse tipo de vivência surpreendente tonar-se-ia objeto de veneração e de temor para o ser humano, gerando o espaço sagrado e encontrando-se, assim, na base do surgimento das religiões²⁸. Em virtude da intensidade da alteração do estado de consciência provocada por algumas plantas e fungos ingeridos, os seres humanos experienciariam a hierofania e com isso tenderiam a ver essas substâncias como algo além de um fragmento concreto da natureza, integrando-as em sistemas simbólicos, míticos, mágico e religiosos. Desse modo, uma substância poderia dar continuidade à hierofanização, constituindo-se numa hierofania mediata e no momento adequado tornar-se-ia ela própria uma hierofania que desvela uma cosmologia que nenhuma outra manifestação é capaz de desvelar²⁸.

    Nesse processo de desenvolvimento do conhecimento e da cultura surgiriam técnicas voltadas para a promoção desses estados alterados, dentre as quais se encontram as relativas aos usos de substâncias psicoativas. A técnica do êxtase denominada xamanismo possui certa ubiquidade planetária²⁹ e uma intrigante similaridade entre seus operadores, os xamãs, provindos de diferentes grupos e povos³⁰. Esse especialista em manusear tais técnicas e por meio do seu transe caracterizado pelo voo da alma transitar por dimensões anímicas pouco acessíveis aos demais membros da comunidade a qual pertence, poderia identificar ameaças à sobrevivência e se comunicar com espíritos auxiliares durante o exercício de rituais com diferentes finalidades²⁹.

    A expertise do xamã na comunicação entre mundos, é importante sublinhar, encontra-se associada ao conhecimento de vasta farmacopeia relativa ao seu entorno, incluindo espécies e preparados psicoativos ou não, que podem ser ministrados a consulentes individuais ou à comunidade de forma coletiva. Ademais, as finalidades desses usos podem transitar entre motivações religiosas e medicinais, abarcando essas duas ou apenas uma delas. Inclusive uma substância psicoativa poderia ser ministrada nesse contexto exclusivamente visando a uma cura orgânica, como um remédio comum, sem pretensões extáticas. Paralelamente, esse tipo de substância, muito embora valorada por sua relação com o que chamamos de sagrado, poderia ser usada de forma cotidiana e trivial e até com finalidades alimentares pela comunidade sem que houvesse necessariamente um rompimento com a simbologia xamânica ou com o controle social do uso, ainda que este rompimento pudesse ocorrer; estando previstas punições para este encaminhamento³⁰.

    Diante disso, é possível afirmar que o conhecimento xamânico, compartilhado em comunidade, expressa todas as características do pensamento unidual residente no arqui-espírito humano, o qual fora formado na aurora das primeiras civilizações e que articula o pensamento empírico/técnico e racional e o pensamento mito/mágico e simbólico constituindo, assim, um pensamento de unidade na diferença³¹. Nessa perspectiva não existe incoerência ou contradição em que a cura, por exemplo, compreenda tanto a magia quanto a técnica, porque estas não são excludentes e podem ser conjuntamente eficazes. A noção de eficácia não está presa a qualquer uma dessas dimensões do pensamento, como na civilização ocidental onde ela é privilégio da racionalidade. Por isso poderíamos nos remeter à ideia de eficácia simbólica³²,¹⁰, em que os elementos hoje definidos pela ciência acadêmica como sugestão e placebo participam dos efeitos a partir da participação ativa do doente numa dinâmica relacional com o cosmos e seus elementos constituintes. Logo, tal pensamento, constituir-se-ia também no substrato da intersubjetividade entre agências humanas e não humanas integradas num todo cosmológico coerente. O que de forma abrangente marca a episteme compartilhada pela grande maioria das comunidades e povos pré-modernos.

    Sob esta ótica as espécies vegetais são vistas como sujeitos, especialmente aquelas que incidem perpendicularmente na sobrevivência do organismo, como muitos alimentos, ou na percepção da existência, como as de caráter psicoativo, muitas das quais são divinizadas. Ao se comunicarem multiplicando as informações apreendidas pelo interlocutor que as ritualiza e se une a elas pelo consumo, as espécies psicoativas são reconhecidas por sua inteligência não humana e no contexto ameríndio elas frequentemente são denominadas por plantas professoras. Sendo assim, ainda que existam instrumentos de controle social na aproximação com tais espécies, em virtude da intersubjetividade se admite uma dose de imprevisibilidade nesse encontro e nos seus resultados.

    Contudo, a dominação pelo paradigma da racionalidade/modernidade a partir do séc. XV gera um corte a nível global nessa forma de pensar e nas formas de relação com as substâncias psicoativas. A imposição de um conceito ocidental de natureza separada da cultura é uma das molas propulsoras desse corte. Em 1590 a obra do jesuíta José Acosta intitulada História natural e moral das Índias definia a natureza como matéria a ser entendida como se entende o próprio Criador, sendo este, portanto, a via para o conhecimento (teo-lógica). Em 1620, uma das referências fundamentais do nascente pensamento científico, a obra Novum Organum de Francis Bacon, propõe uma perspectiva sobre a natureza como objeto a ser conhecido por um sujeito dela distanciado e que pode dominá-la pelo uso da razão (ego-lógica)³³.

    Podemos dizer que ao aportarem no continente americano os conquistadores ibéricos sofriam de uma ânsia classificatória que os impelia a agir como se tudo o que encontravam fosse desprovido de significante e significado, uma vez que a população local era vista como selvagem, primitiva, sem língua, a-histórica, possivelmente sem alma e sem razão³⁴. Dessa forma esse outro foi situado num espaço próximo da natureza e como contraponto à civilização, portando, passível de uma dominação legítima, pois afinal o progresso e a racionalização da vida fariam parte do caminho inefável da evolução humana e seriam desejados por todos. Sem essa oposição a lógica civilizatória perde sentido e força e então na prática, tal discurso precisa excluir incluindo e incluir o outro sob o estigma da exclusão³⁵. O esvaziamento desse outro pela retórica da salvação (teo-lógica) e pela retórica do progresso (ego-lógica) chega ao ponto de legitimar a total destruição dele – genocídio e –, mas os critérios dessa (des)valorização de vidas não são mencionados¹,²,³.

    De fato, durante a Conquista da América os europeus tentam homogeneizar a forma de lidar com judeus, muçulmanos e indígenas, demoram a aceitar as diferenças entre essas realidades³⁶. Para estabelecer parâmetros de descrição da realidade americana os conquistadores buscaram referências na sua relação com outros já familiares. Os espanhóis chamam de ‘mesquitas’ todos os primeiros templos que descobrem; e a primeira cidade avistada durante a expedição de Hernandez de Córdoba, será denominada [...] o grande Cairo³⁴. Por meio da teo-lógica a empresa cristã marcou no sangue (descendência) a distinção entre cristãos, mouros e judeus, enquanto os indígenas seriam mais um grupo de pagãos ainda pouco compreendidos. Com o estreitamento das relações com estes e os povos africanos e a, subsequente complexificação da alteridade, a diferenciação passa a ser decodificada racialmente, até que no séc. XVIII a ciência desloca definitivamente a teologia e estabelece a ego-lógica como ponto referencial³³. Esse movimento reflete na qualificação das substâncias psicoativas e das práticas rituais envolvendo-as, como venenos diabólicos e idolatria. Ao longo do tempo, a classificação das substâncias do outro elabora termos como substâncias tóxicas, narcóticos, drogas no sentido mais pejorativo e fechado dessa palavra. Sucintamente são instauradas oposições binárias; medicinas x idolatria e remédio x drogas. Pessoas e substâncias que à princípio não devem circular porque comprometem o projeto civilizatório, não podem deixar e circular e isso certamente ajuda a explicar o apego ao projeto proibicionista.

    Durante sua ação nas américas missionários católicos e seus aliados conseguiram suprimir, limitar e reduzir à clandestinidade a maior parte do consumo autóctone de substâncias psicoativas¹⁹, principalmente por meio da destruição da parte do conhecimento nativo que não interessava ao colonialismo. O horror produzido pelos europeus sobre a maioria das drogas e consumos locais se chocava com a amplitude, arraigo e diversidade de substâncias presentes no cotidiano indígena. O projeto de conversão incluiu então uma linha de atuação destinada à extirpação de idolatrias³⁶, que perseguia, condenava e aniquilava as pessoas e os produtos vistos como inadequados. Foi praticamente uma lobotomia epistêmica justificada mediante a superioridade do conhecimento teológico cristão e greco-romano¹. Em face dessa violência, muitos cultos resistiram a partir da intersubjetividade com espécies vegetais, pois estas poderiam passar mais desapercebidas aos olhos inquisitoriais, em relação a templos, altares e apetrechos. Porém, ao se darem conta dessa estratégia de sobrevivência das más crenças, tais olhos se voltaram para a destruição biológica e moral de certas drogas com ainda mais cólera³⁷. A mesma cólera com que o proibicionismo usará equipamentos de guerra contra a folha de coca, por exemplo.

    Existências que possuíam dignidade, elementos em relação horizontal, sinonímias, foram disjuntadas, categorizadas, hierarquizadas e os primeiros registros coloniais contribuíram mormente para essa distinção. No século XIX com o aparato estatal moderno plenamente instaurado surge um controle político fundamentado e aplicado em nome das drogas qualificado como farmacracia ¹¹ e que no século XX se alia à guerra às drogas.

    Contemporaneamente a colonialidade do saber sobre as drogas se manifesta, por exemplo, no emprego do termo psicotrópico, que resulta da guinada dada pelos investimentos imperialistas direcionados a controlar o fenômeno do uso de drogas no planeta na segunda metade do século XX. Etimologicamente falando esse termo significa atração pelo psiquismo¹², indicando ser uma qualificação universal para praticamente qualquer tipo de droga. Porém, ao adquirir projeção mundial por meio de sua adoção oficial pela Convenção Única das Nações Unidas de 1971, que institui parâmetros proibicionistas para quase duas centenas de países signatários, o termo foi carregado de sentido negativo no que se refere a um determinado conjunto de drogas, fato este que nos permite vislumbrar a construção do seu sentido racializado e generificado.

    Do ponto de vista normativo essa construção se deu mediante a grande ampliação das listas de substâncias objeto de controle e a distinção que os artigos convencionados realizam entre dois conjuntos de medidas a serem tomadas pelos Estados, um deles que regula e apoia a farmácia e outro que buscar coibir o acesso a certas drogas. As drogas proscritas compõem a lista I que agrupa as denominadas drogas visionárias¹³ e as listas II, III e IV agruparam as drogas regulamentadas, as anfetaminas, os barbitúricos, os hipnóticos e seus análogos respectivamente¹⁴. Para a primeira lista, foi recomendado que os aparatos estatais proibissem qualquer uso a não ser que ele fosse feito de forma muito limitada, por expertos autorizados e fiscalizados diretamente pelos governos. Para as demais listas, no entanto, a margem de ação tem uma amplitude incomparável, uma vez que a recomendação é a de que o uso se limite a fins científicos e médicos, ficando a critério de cada Estado os modos de fabricação, exportação, importação, distribuição, existências, comércios, usos e posse.

    A justificativa para essa diferença de tratamento poderia estar baseada na constatação científica dos níveis de toxidade, tolerância e degradação social, psíquica e orgânica de cada uma dessas substâncias, mas não foi o caso. As drogas listadas nos últimos três grupos são sucedâneas da cocaína e do ópio, em diferentes graus criam tolerância, fazendo com que seus usuários necessitem de doses cada vez maiores, ou desenvolvam duras síndromes de abstinência, além de correrem grande risco devido à alta toxidade dessas drogas, fato que faz com que muitas delas sejam as mais usadas em suicídios. Já as drogas efetivamente proscritas possuem baixíssima toxidade e não causam abstinência ou tolerância, majoritariamente são substâncias consideradas por seus estudiosos como ampliadoras da consciência e cientificamente promissoras em terapêutica e estudo do sistema nervoso¹², ¹³, ²⁴.

    Descartando o embasamento científico, essa diferença de tratamento exposta na letra do acordo internacional desvela-se como uma reação ao contexto político, que naquele período se encontrava marcado por movimentos que questionavam autoridades estabelecidas e instituições tais como o Estado, a família e a escola atacando, sobretudo, a padronização de comportamentos e subjetividades promovida por estas. Os adeptos da contracultura, por exemplo, viam no uso de algumas drogas uma forma de contestação e os psicodélicos, além da cannabis, foram as mais consumidas em virtude da facilidade de acesso e do potencial de transformação no modo de pensar que representavam. Concomitante à expansão do consumo dessas drogas crescia abundantemente o uso de psicotrópicos farmacêuticos, o que terminou por instaurar a primeira grande polêmica pública de proporções planetárias sobre controle de drogas. Para os revolucionários, o modo de vida moderno conduzira ao império da técnica sobre o homem anulando várias dimensões deste, e uma das formas pelas quais esse domínio se manifestava era induzindo as populações ao consumo de psicofármacos, modulando-as segundo padrões de eficiência, sobriedade, estética e saúde. Ao entender que enfrentava uma dissidência psicofarmacológica que se apresentava como proposta política global de transformação da cultura, a reação conservadora sob incidência direta dos EUA, lançou um acordo internacional que respalda uma guerra e consolida a farmacracia. Finalmente, por razões de ordem política o poderio burocrático e repressivo que caracteriza os conflitos intercontinentais foi investido contra um conjunto específico de drogas psicotrópicas e as pessoas que agenciam tais substâncias, reforçando uma falsa hierarquia entre as drogas e a estigmatização de certos grupos.

    A palavra psicodélico muito em voga nesse período, foi criada pelo psiquiatra inglês Humphry Osmond na década de 1950 a partir da junção de duas palavras de origem grega psychê e delos que significa que amplia a mente¹³. A fronteira entre as drogas psicodélicas e as visionárias é borrada, principalmente no que se refere à reação bioquímica que elas provocam no organismo, por isso muitas vezes elas são consideradas sinônimos. No entanto, certas características condizentes à origem da substância, ao contexto e aos sentidos atribuídos ao uso nos permitem diferenciá-las.

    O interesse pelas espécies e substâncias psicodélicas nasceu no final do século XIX nas ciências farmacêuticas e na etnobotânica, espalhou-se pela psiquiatria e pelas artes e literatura, para finalmente ser agregado num movimento político abrangente. Em virtude disso tais drogas são predominantemente sintetizadas em laboratório e seu uso adquiriu conotação laica se descolando dos usos tradicionais e fazendo sentido como exercício da liberdade individual. O trajeto da mescalina, conhecida como psicodélico da old school, é um caso emblemático. Sintetizada em 1919 a partir de amostras de cacto peyote (Lophophora willamansi) consumido por tradições da Mesoamérica essa droga se tornou amplamente acessível e adquiriu adeptos no norte global. Como o filósofo Walter Benjamim, que escreveu alguns ensaios sobre suas experiências com o haxixe (Canabis Sativa) e a mescalina entre 1920 e 1930. Uma década depois Osmond ministrou essa substância ao escritor Aldous Huxley que acabou se tornando um grande difusor da cultura psicodélica, na mesma época em que Albert Hofmann sintetizou o LSD-25 (Dietilamida do ácido lisérgico). Nos anos 1950 grandes universidades abriram suas portas para pesquisas e testes com psicodélicos, o projeto Investigação Psicodélica dirigido por Timothy Leary e Richard Alpert em Havard foi um dos mais conhecidos, e uma das causas pelas quais Leary seria declarado inimigo dos EUA. Após incidentes e conflitos políticos neste campo, no final da década de 1960 o ambiente acadêmico foi praticamente fechado para a pesquisa com psicodélicos, voltando a se abrir somente na virada para o séc. XXI. Em síntese, as drogas psicodélicas se ligam mais à perspectiva científica ou ao racionalismo individualista, enquanto as drogas visionárias encontram-se atreladas a tradições e cosmologias.

    Sobre as drogas visionárias, primeiramente é pertinente considerar uma distinção com relação às drogas alucinógenas, com as quais são frequentemente confundidas. A diferença fundamental entre elas residiria no fato de durante os efeitos psicoativos aquela preserva a memória e esta não, por isso uma seria chamada de droga de excursão e a outra de droga de rapto. O conhecimento dito tradicional lida com essa diferença, na medida em que prevê a possibilidade de um consumo coletivo de visionários e um consumo restrito ao xamã e seu consulente no caso dos alucinógenos. O termo alucinógeno, no entendimento geral foi reproduzido de maneira pejorativa para indicar qualquer substância que produza qualquer tipo de alteração na percepção visual, estigmatizando-a como sinônimo de alucinações, descontrole e ameaça¹⁴.

    Quanto às reações, as espécies vegetais e os preparados com propriedades visionárias possuem dilatada margem de segurança e não geram tolerância em seus usuários. São conhecidos por aproximarem a consciência da autoconsciência vinculada a um sentido planetário e/ou universal, pois diluem o eu indivíduo descortinando dimensões anímicas da vida que tendem a compor quadros cosmológicos. Por isso, essas drogas são vistas como meios de transformar o mundo tanto interior quanto exterior, possibilitando ações terapêuticas, a comunicação com outros planos de existência e com o atemporal e representando experiências de caráter hierofânico, o que amiúde as consagrou como objeto de veneração no transcorrer dos tempos¹⁴.

    Os princípios ativos dessas substâncias são cruciais na definição dessas reações, mas esse aspecto não encerra o sentido dessa atuação, que pode variar segundo as espécies vegetais utilizadas – que implica diferentes combinações moleculares – o preparo da substância, a sua concentração e dose, a forma de consumo – infusão, maceração, inalação de fumaça ou pó, emplasto, enema etc. –, as características da pessoa e do contexto de uso. De modo geral, a tipologia das drogas psicoativas é permeada por controvérsias, primordialmente ela se baseia no conhecimento bioquímico, porém a despeito desses esforços de delimitação aspectos atinentes às experiências de uso informam sobre a plurivalência de muitas substâncias. Dois grandes exemplos de drogas extraordinariamente domesticadas e de difícil classificação pela tipologia das drogas psicoativas são a Cannabis e o tabaco, que conforme a injunção de aspectos que determinam sua existência podem ser consideradas tanto sedativas, como estimulantes, ou ainda como drogas visionárias mais ou menos potentes. O que inevitavelmente implica dificuldades de se estabelecer fronteiras bem definidas entre usos, religioso, recreativo ou medicinal.

    No ambiente da riquíssima flora americana o tabaco passou a fazer parte dos costumes humanos há cerca de 7.000 anos, difundindo-se de Norte a Sul do continente e protagonizando o complexo mitológico indígena da região. Essa droga apresentou uma infinidade de aplicações terapêuticas de grande relevância para o tratamento das mais variadas doenças, foi reconhecida como grande intermediaria na relação com o além e concebida, por tudo isso, como um dom especial dos deuses para a humanidade²⁷. Não obstante, todo o complexo de usos e significados dessa planta foi paulatinamente desestruturado e boa parte dele foi ofuscado pela violenta colonização do imaginário e exploração dos corpos e da natureza promovidas pelos conquistadores. Atualmente o tabaco encontra-se associado, sobretudo, à espécie Nicotiana tabacum, porque esta acabou predominando no contexto mercantil. No entanto, no contexto ameríndio, a Nicotiana rustica tem tanto quanto ou mais importância, com o diferencial de ser mais associada aos efeitos visionários. Durante mais ou menos o primeiro século de apropriação do conhecimento nativo sobre essas espécies e seus usos pelos europeus, a importância dada a uma delas foi paulatinamente se sobrepondo por diversos fatores, como as condições de plantio e a seleção do efeito mais desejado, uma combinação de estímulo e sedação. Ademais, a escolha da Nicotiana tabacum e do seu uso fumado, dentre muitas formas de uso (inalado, bebido, emplasto e supositório), deve-se a condições de conservação das folhas e imperativos estéticos da cultura burguesa. Do ponto de vista da definição da substância é mister sublinhar que em virtude das alterações transgênicas e químicas aplicadas à planta, a N. tabacum predominante na contemporaneidade não pode ser considerada a mesma planta do passado, sendo necessário se fazer um resgate da dignidade das referidas espécies vegetais²⁷. Por fim, o fato de essas espécies possuírem alcalóides do grupo das betacarbolinas, harmina, harmalina, tetrahidroarmina e 6 metoxi harmina, seria forte indicativo de suas propriedades visionárias²⁶.

    Se no início da circulação mundial do tabaco foram impostas duras penas aos que o consumiam, com a persistente adesão de clérigos, estudiosos, viajantes e membros da corte a essa prática, ela passou a ser tolerada e capitalizada. O comércio e a fabricação de produtos dessa planta se expandiram e no início do século XVII toda a elite no denominado velho continente a usava regularmente ou já a tinha usado e ao término desse período, esta droga tinha se tornado extremamente popular. Junto à glicose e à cafeína, a nicotina revolucionou o ânimo ocidental e num determinado momento serviu como um estimulante inofensivo que liberava a conduta para executar o projeto racionalista e secularizante ao mesmo tempo em que combatia a fadiga do trabalho e da guerra¹⁵. Na sua longa jornada até os nossos dias o tabaco passou de dádiva a tóxico, na medida em que teve sua existência e seus significados profundamente alterados e coisificados pela dinâmica da colonialidade. Dilaceradas em sua integridade, atualmente as espécies vegetais cobertas pela palavra tabaco, desnutrida de seu anima, encontram-se mundialmente associadas à doença e à morte, o que completa a sua alienação da convivência humana e bloqueia nossa pretensão de conhecê-las³⁸.

    Processo análogo se dá em relação à Cannabis, pois a lógica da apreensão dessas espécies vegetais e de seus usos tem sido a mesma, ainda que no campo jurídico se encontrem em posições opostas, sendo uma delas legal e regulamentada e a outra ilegal e criminalizada e à despeito da recente e tímida inscrição desta última no registro farmacrático na condição de droga medicinal.

    A presença do cultivo de espécies da Cannabis e de diferentes modos de uso dessa planta ocorre desde há pelo menos 10 mil anos e teria surgido na Ásia Central, expandiu-se por meio do nomadismo, guerras, trocas e comércio e chegou a boa parte da África e da região mediterrânea. Essa planta foi um dos elementos do xamanismo asiático com pretensões extáticas e seu uso pelos Citas em saunas realizadas após ritos fúnebres, foi narrado por Heródoto em 500 a.C. Teria sido a partir desses povos que se relacionavam comercialmente com os gregos que essa planta chegou à Europa. Mas existem ainda, possibilidades desse contato ter ocorrido por meio do Egito, da China ou da Índia, sendo esta a "primeira cultura do mundo orientada à Cannabis"¹³. As relações com essa planta nessas civilizações perpassam diferentes atividades como manufatura de cordoaria, tecelagem, a produção de energia, alimentação, medicina, ritos sagrados e sociais com variadas ênfases conforme o contexto. Papiros egípcios de 1200 a.C. comprovam o uso medicinal consolidado na região do Nilo. Na China registros 5000 a.C. relacionam vastamente os usos terapêuticos e dados de 4000 a.C. comprovam o uso na manufatura, com destaque para a invenção do papel já adentrando a era d.C. Os chineses conheciam as propriedades psicoativas da Cannabis e seu vínculo com a dimensão do sagrado, mas não enfatizavam essa finalidade como os indianos. A tradição védica remonta 2000 a.C. e preconiza usos relacionados a essa dimensão, como o do bhang, a bebida predileta do Deus Indra preparada com Cannabis, leite e especiarias e até hoje muito popular na Índia¹³,¹⁹,²⁵,³⁹,⁴⁰,¹⁶.

    A plurivalência do tabaco e da Cannabis dificulta a classificação estrita dessas drogas como psicoativos visionários, estimulantes ou sedativos, bem como a delimitação inequívoca da sua potência. Enquanto substância visionária o tabaco inda contraria a regra da tolerância desta classificação, pois é sabido que mesmo entre os povos indígenas há advertências sobre os perigos dessa planta neste sentido e as regras para evitá-los²⁵,²⁷. O emprego do sumo da Nicotiana rustica macerada em rituais xamânicos possui alta potência visionária auxiliando no voo da alma a partir do qual o xamã realiza seus diagnósticos e curas. Já a Nicotiana tabacum frequentemente fumada nesse tipo de ritual ou em rituais dos cultos brasileiros da Umbanda e da Jurema, por exemplo, representa um veículo de média ou baixa potência, pois ajuda a ensamblar estados modificados de consciência e experiências anímicas.

    A Cannabis é definida como um visionário de baixa potência, mas algumas cepas ou formas de consumo podem fazer com que adquira características de alta potência¹⁴. O uso corrente do bhang indiano sugere potência baixa, mas o uso do Soma sagrado descrito pelos hinos vedas informa que esta bebida, elaborada a partir da referida planta, possuía todas as características de uma droga visionária de alta potência¹³. Outras variações são verificáveis na Grécia Antiga, onde supostamente era usada no Oráculo de Delfos, ao mesmo tempo em que Demócrito refere-se ao uso do vinho resinato composto de uva, mirra e Cannabis e Galeno menciona o uso dessa erva em reuniões sociais para produzir descontração¹³,²⁵.

    No contexto europeu os diferentes usos da Cannabis obtiveram um papel de destaque no paganismo, figurando como medicina popular estreitamente ligada aos efeitos euforizantes e psicoativos dessa droga. Com o progressivo predomínio do cristianismo católico, entretanto, as práticas e os saberes que propalavam qualquer união mística fora da intermediação formal da Igreja foram desde muito cedo e cada vez mais combatidos. Durante esse processo, muitas espécies foram definidas como plantas diabólicas e os detentores do conhecimento sobre elas considerados criminosos. As mulheres ervanárias, grandes guardiãs desses saberes, foram recriminadas desde o século V d.C. até que entre os séculos XIII e XV com a estrutura inquisitorial em pleno funcionamento passaram a ser sistematicamente exterminadas. Segundo certos códigos da Inquisição a bruxa ou feiticeira podia ser identificada por seu trabalho com a cosmética feminina, com a produção de remédios naturais, filtros para o amor, unguentos e drogas usadas para induzir a voos mágicos. Da alta até a baixa idade média qualquer tipo de embriaguez que não a do álcool passou a ser considerada apostasia e idolatria e nesse movimento o conceito de phármakon e seus significados chegaram a desaparecer¹³.

    Durante o período da Conquista das Américas tal disciplinamento produzira um completo desinteresse e até uma rejeição pavorosa pelo aspecto visionário das drogas em geral, permanecendo sobre a Cannabis basicamente o interesse por produtos manufaturados; as velas, cordas, cola e óleo das embarcações de Colombo, por exemplo, tinham essa origem⁴¹. A nascente elite americana, em lugares como o Caribe, o Brasil imperial e as Colônias Inglesas, encampou o interesse pela produção agrícola e industrial da Cannabis por um tempo, mas também rejeitou seus usos psicoativos. Os quais ficaram relegados a mestiços e africanos, brotando posteriormente em experiências religiosas como os candomblés da Bahia e o rastafarianismo jamaicano³⁹,40,41.

    A abrangência global da Cannabis e de seus usos é pródiga em mostrar as variações contextuais dos seus efeitos e em como sua presença nos costumes humanos é arraigada, o corpo humano inclusive é assaz adaptado para absorver as moléculas dessa planta por meio do sistema endocanabinóide e diante dessa realidade escamoteada pela abordagem proibicionista, fica claro que o grande delírio está em projetar extinguir essa planta do planeta como sugere essa política, e não em a usar. Esse exemplo e o do tabaco mostram como drogas de difícil classificação dentro dos parâmetros de psicoatividade, se hora marcadas por uma multiplicidade de sentidos, outrora podem acabar adquirindo um único sentido pela forma com que o conhecimento sobre elas é dominado.

    Existe um conjunto de drogas visionárias que estaria menos sujeito a variações adversas como as exemplificadas anteriormente, em virtude de sua identidade molecular que as associaria à alta potência e mais estreitamente a saberes e práticas relativos ao universo sagrado. Esses visionários poderiam ser divididos em duas famílias segundo suas estruturas moleculares: uma que possui um anel benzênico e tem a mescalina como seu protótipo, e outra que possui um anel indólico e se subdivide em três grupos básicos, o grupo das triptamidas, como a psilocibina e a dimetiltriptamida, o grupo dos derivados do ácido lisérgico como a ergina e, finalmente, as betacarbolinas, como a harmina e a harmalina¹³.

    No início da década de 1960, na esteira da ampliação do interesse científico e político pelos psicodélicos e do experimentalismo sociocultural da contracultura, o etnomicólogo por vocação Robert Gordon Wasson cunhou o neologismo Enteógeno para classificar esse tipo de droga. Uma palavra originada a partir do grego entheos e

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