Duas Vidas - um grito silencioso pela paz
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Sobre este e-book
O livro descreve não apenas a história da vida da personagem brasileira, que se converte ao islamismo, mas existe uma contrapartida de outra brasileira, residente no Sul do Líbano. Cristã e pró-Israel, ela é responsável por esclarecer o ponto de vista oposto ao da personagem central, pró-Síria.
Naquela época - fins dos anos 90, o Sul do Líbano era dividido do restante do País, com inúmeros postos de fiscalização. No meio das montanhas de pedras, chega-se a um posto ocupado pelo Exército Israelense. É o local de maior conflito e interesse. Do lado de Israel, pela necessidade de proteger suas fronteiras e seu povo. Do lado Libanês, pela luta por sua soberania e manutenção da integridade de seu território.
A região é vigiada - até hoje - por lunetas, satélites e cada morador - não duvide - tem a sua vida acompanhada de acordo com suas ligações religiosas e políticas. Os exércitos da Síria, de Israel, do Líbano e do Sul do Líbano se vigiam e convivem entre si e com os Hazbollahs. São cinco exércitos diferentes!
Em meio às guerras, em cada época diferente e com aliados externos - Irã, Iraque, Síria, Israel, Jordânia, Egito - a personagem central vive seu drama pessoal, tendo os filhos, criando-os e mantendo sua força interior, que dá a ela uma condição à parte da conturbada história das guerras no Oriente e em seu próprio valor perante a família em Beirute Ocidental, dominada pelos muçulmanos xiitas, apesar de a família ser muçulmana sunita.
Convivendo pessoalmente com os personagens da História Mundial - a exemplo de Yasser Arafat, Hafik Hariri, Bachir Gemayel e Michel Aoun, dentre outros, Maria Helena acompanhou cada fase das guerras, enquanto enfrentava as próprias guerras contra a discriminação por ser estrangeira, por ser mulher. Com seu jeitinho brasileiro, Maria Helena traduz os valores, sentimentos e discriminações do mundo árabe. Emoção, informação e heroísmo traduzem a sua vida.
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Duas Vidas - um grito silencioso pela paz - Dorinha Aguiar
Aguiar
O Sol de Amanhã
Geraldo Melo Corrêa[1]
Vivi intensamente as páginas de Duas Vidas: um grito silencioso pela paz , relato fiel e isento da triste história de Maria Helena, mostrando um Líbano abatido pela realidade das guerras. O livro é uma aula de jornalismo, pois ensina e emociona. Depois de viver estas páginas, é impossível ver as guerras árabes com a frieza dos analistas internacionais.
A guerra entre Síria e Israel, a posição política e militar do Líbano, a fragilidade dos governos e o sofrimento dos povos árabes são relatados através da ótica de uma brasileira, que se tornou muçulmana por opção e idealismo.
É preciso conhecimento e muita sensibilidade para realizar esta verdadeira façanha de ver um mundo dividido, que comporta diferenças de etnia, cultura e religião, que se alimenta das adversidades, com os olhos de uma pessoa que não conhecia a guerra, mas era mestra em sofrimentos e abnegações.
Como Maria Helena, que todos nós possamos entender esta aventura vivida pela autora, com coragem e determinação, como uma lição de paz, acreditando que, como o sol da manhã, o dia vai amanhecer outro, solidário e fraterno para todos.
[1] Presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (1999)
Parousia
Messias Pinto Barbosa[2]
Duas Vidas... nos apresenta, de forma clara e expressiva, os dolorosos conflitos existentes no Oriente Próximo. A autora nos expõe um material sério que movimenta o nosso coração para uma direção bem definida. Ao analisarmos os fatos históricos aqui apresentados, não podemos deixar de ouvir a voz da História.
Uma voz que não pode ser sufocada por ideologias e crenças absurdas. Creio que a grande razão para a existência desses conflitos se encontra na própria História, ou, particularmente, num ponto da História, na encarnação do Verbo. Na pessoa de Cristo, nós não temos apenas um homem, temos um Deus-homem. Um homem com duas naturezas, divina e humana.
A autora consegue provocar os mais ambíguos sentimentos. Emoções fortes dentro do realismo onde se percebe, claramente, não ser fruto de sua imaginação. A presente obra nos leva a desenvolver a arte de pensar, interpretando questões filosóficas, culturais e a beleza desta história.
Dorinha consegue levar o leitor numa viagem a regiões de povos com histórias milenares, lugar onde tudo começou
e, com certeza, será palco do epílogo da Humanidade. Berço da primeira civilização, os antediluvianos e pós-diluvianos. Nascimento do próprio Deus encarnado, o nosso senhor Jesus Cristo. Após sua permanência neste mundo durante 33 anos e 6 meses, onde aguarda-se o seu advento – Parousia
, sua segunda e última vinda à Terra para julgar a Humanidade, após o primeiro sacrifício vicário, morte e ressurreição, ascensão e glorificação.
[2] Filósofo e Historiador
Duas Vidas: A Outra Face da Guerra
Pedro Moreira[3]
Até quando as nações vão-se hostilizar em guerras fratricidas? Até quando as ideologias corporativistas vão imperar sobre o ideal de paz universal?
A leitura da impressionante história de uma brasileira exilada
por laços sentimentais no conturbado Líbano sugere-nos, à primeira vista, aquelas instigantes indagações. Pois foi neste ambiente belicoso, entre explosões e ataques terroristas, que a jornalista Dorinha Aguiar viveu, mais de mês, passo a passo, a experiência amarga de Maria Helena (nome de fantasia), uma tranquila comerciária de Belo Horizonte, que renunciara ao remanso mineiro para viver o clima de guerra do Oriente Próximo em nome do amor devotado ao marido libanês.
O relato é comovente na medida em que a rudeza e o impacto dos conflitos se misturam com o sonho de paz, pelo menos numa trégua de dois a três dias. A destruição de patrimônios e a dizimação de famílias inteiras surgem aqui e ali, neste relato histórico, à semelhança de fatos cotidianos, já integrados à vida dos povos conflitantes.
Paradoxalmente, nestas guerras não há heróis nem heroínas. Se os houver, serão suas próprias vítimas, ou seja, a população anônima e inocente, atingida visceralmente em seu direito a uma vida normal – de paz e progresso. Existem, sim, as vítimas anônimas e as que se deixam influenciar pela teimosia ideológica, sustentada desde os tempos bíblicos, tal o exemplo da hostilidade que separa judeus, muçulmanos e cristãos.
O Oriente Próximo, que ao nosso tempo de criança povoava-nos a imaginação com fascinantes histórias de califas, odaliscas e sultões aboletados em seus castelos de mármore e cristal, ressurge espantosamente nestas páginas como o olho incandescente de um vulcão.
Duas Vidas..., na própria intenção de sua autora, é uma reportagem calcada num escabroso episódio social de nossos tempos. Penso que o valor da obra vai além do simples objetivo jornalístico de flagrar esta quadra do mundo contemporâneo. Afinal, trata-se de um documentário de que os pesquisadores do presente e do futuro poderão valer-se à cata de subsídios extras comprobatórios da História convulsionada do Próximo Oriente.
Nas entrelinhas deste relato há revelações que o noticiário cruento estampado e projetado na imprensa mundial não se preocupa em registrar. Tal é o caso do sofrimento de cada família, de cada um de seus membros – crianças, adultos e idosos – humilhados, espoliados em seus bens e direitos.
Maria Helena é a heroína de Duas Vidas. Longe de ser uma revolucionária autêntica, disposta a enfrentar o fogo das guerras, que representam, em última análise, o pior estágio da História da Humanidade, ela se empenha na luta pelos valores humanos, entre os quais escolheu um, para se realizar: seu amor ao marido e à família.
Seu uniforme de combate é a própria força interior, que alimenta a esperança, a cada dia renovada, de sorver um pouco a imprevisível trégua de amanhã, entre ataques terroristas e explosões de bombas incendiárias.
Cristã, fez-se muçulmana, ao feitio da família do marido, numa prova perfeita de sua integração ao meio que escolhera para viver, malgrado a efervescência dos conflitos. Maria Helena, a exemplo de milhares de outras esposas e filhas, representa nesta reportagem a personagem frágil e sofredora, a mulher discriminada, obrigada a suportar a situação perenemente conflituosa, alimentada pela estupidez do egoísmo e do radicalismo inconsequente.
Ao descrever os episódios domésticos comuns à vida familiar por ela presenciados, Dorinha Aguiar traz-nos à memória o clima de insegurança, de desassossego e de tensa expectativa, vivido no interior dos lares libaneses – muçulmanos ou cristãos.
Logo às primeiras páginas, o leitor se dará conta do espantoso fato de uma jovem repórter brasileira, sem ao menos uma companhia de apoio, sem nenhum marketing promocional, apenas com a cara e a coragem, ou melhor, com o espírito altivo que Deus lhe deu, deixar a placidez de sua vida semiprovinciana e mergulhar no território conflituoso do mundo árabe, pondo em risco a própria vida.
São palavras textuais de Dorinha: Como se fosse muito natural, fiz a agenda para minha arriscada viagem – deveria me encontrar com uma brasileira, que viveu 16 anos de guerra no Líbano. Era um desejo ardente de desvendar a sua história (...)
.
Foi assim motivada que a repórter-escritora se comprometeu a concretizar o mirabolante projeto de entrevistar sua personagem, onde ela estivesse, mesmo que fosse uma Beirute destruída, num país dominado
.
A propósito, o que caracteriza o bom repórter é justamente a saudável obstinação de conhecer intimamente o fato objeto de sua matéria jornalística – em seus vários ângulos; se possível, devassar-lhe as entranhas, arrancar-lhe segredos, flagrar-lhe revelações inusitadas...
Dorinha não se contentou, na fase preliminar de seu trabalho, com as buscas às enciclopédias, com as idas às fontes que lhe propiciassem conhecimentos e subsídios sobre o palco da guerra do Próximo Oriente. Literalmente, foi à pesquisa de campo.
Conhecendo-a como ex-aluna de um colégio de Pará de Minas, sinto-me à vontade para avaliar a seriedade de seu compromisso com a realidade cruel vivida nas quase cinco semanas em companhia de sua entrevistada.
Na verdade, não há pinceladas de fantasiosas descrições neste relato, como seria fácil para a imaginação fértil e o vigor da inteligência de Dorinha.
É que Duas Vidas... está no patamar dos documentos jornalísticos sérios, consolidados na verdade histórica, fato que preenche satisfatoriamente o grande projeto de sua autora.
[3] Cronista e escritor
I parte
A Decisão
Preparativos da autora para a viagem
Quando eu era rabino da comunidade judaica em Berlim, sob o regime de Hitler, aprendi muitas coisas. A mais importante, naquelas trágicas circunstâncias, foi que a intolerância e o ódio não são os problemas mais urgentes. O problema mais urgente, o mais infame, o mais vergonhoso e o mais trágico é o silêncio
– Joachim Prinz[4]
[4] Borowitz, Eugene B. Compreendendo o Judaísmo. São Paulo: Congregação Israelita Paulista, 1995.
Justificativa
Era início de dezembro de 1997. Decidi viajar para o Oriente Próximo [5] , sem nada programado com cautela. Havia muito eu não atuava no jornalismo científico ou de investigação, mas desde a guerra entre o Irã e o Iraque, com início em 1980 e término apenas em 1988, pensava em conhecer o Próximo Oriente e o Oriente Médio.
[5] Historiadores especializados em Antiguidade Oriental chamam a região do Líbano e de Israel de Oriente Próximo. Entretanto, fontes jornalísticas americanas passaram a chamá-la de Oriente Médio, no que foram imitadas pela imprensa brasileira.
Já estudara alguma coisa de lá, motivada mais pela guerra entre as duas potências do Meio-Oriente que pela magnífica história do nascimento das civilizações e das religiões, com âncoras na região.
Eu não queria ir à Terra Santa, às Ilhas Gregas, ou ao Egito. Ainda quero conhecer tudo isso, mas em dezembro algum sentimento social maior, algum compromisso misterioso me empurravam para conhecer de perto os conflitos árabes.
Chamava-me a atenção o sofrimento do povo iraquiano, em decorrência do bloqueio econômico imposto pelas Nações Unidas no pós-guerra do Golfo Pérsico. O Iraque tentou anexar às suas as terras, pertencentes ao pequeno em extensão, mas rico petrolífero país do Kuwait; controlar duas ilhas que lhe permitissem o acesso mais fácil ao mar; e ainda reduzir ou ter perdoada sua dívida com o vizinho.
Como se fosse natural, fiz o plano para a minha viagem – deveria me encontrar com uma brasileira, que viveu 16 anos de guerra no Líbano. Era um desejo ardente de desvendar a sua história, como a de uma sobrevivente comum no contexto de valor no seio das guerras e da discriminação da mulher estrangeira no mundo árabe.
Mais do que isto, como jornalista e praticante da fé, comprometia-me a buscar uma história verdadeira, numa região cheia de radicais de diversas seitas, como o ponto de meditação sobre a paz de espírito, numa Beirute destruída, num país ocupado.
Para reforçar a convicção de que deveria executar meu projeto, sonhei que estava grávida e minha filha, como se estivesse fora de meu ventre, pedia-me para escrever sobre o Líbano. É a única chance que você terá
.
Seu rostinho largo, cabelos negros e olhos grandes não eram de recém-nascida. Parecia-se mais com uma criança de três ou quatro anos de idade. Seu rosto era banhado por uma água cristalina. Pensei no líquido que envolve o feto, na placenta. Como de muitas outras vezes, segui meus instintos.
Apesar de este livro ser a história de uma brasileira, não poderia excluir dele alguns depoimentos de pessoas alheias à sua vida, mas que fazem parte do emaranhado de situações no qual vive a população do Líbano e contribui para o entendimento do país.
Um deles, de um terrorista cristão, combatente no Líbano ao lado de Samir Jaajaa – um dos mais temíveis guerrilheiros à época dos conflitos – esteve no Brasil em 1958, quando assassinou um pistoleiro na cidade de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, crime, segundo ele, sem esclarecimento público até a edição deste livro.
Outro, de um casal iraquiano que vive nas montanhas veraneias do Shoulf, próximas de Beirute, desde a fuga de seu país, logo após a guerra do Golfo Pérsico. Ele retrata o sentimento do povo iraquiano com relação aos Estados Unidos da América – EUA – e denunciam o imperialismo sobre a região.
E ainda o depoimento de outra brasileira, que vive no sul do país desde criança, onde o terrorismo da milícia muçulmana Hazbollah (Partido de Deus) convive com o exército do sul, aliado com o exército de Israel, também presente no local, e sob a mira do exército oficial do Líbano, na fronteira com a zona ocupada.
Sua vida, religião e posicionamento político se opõem à visão muçulmana da personagem central sobre os conflitos na região. Era como se eu precisasse sentir os dois lados da moeda. Somente ao final de minha jornada pude compreender o papel de cada depoimento no quebra-cabeça da história.
O sul do Líbano, ocupado por Israel desde a década de 80, é ainda hoje palco das maiores atrocidades e ações terroristas, suicídios e sequestros. Neste ano de 1998, quando se comemoram os 50 anos do Estado de Israel, há forte pressão política pela desocupação. No entanto, libaneses cristãos que moram na região temem por suas vidas, caso Israel abandone a área.
Os conflitos não são apenas do sul contra Israel ou contra o restante do Líbano. Estão presentes na região, onde pequenas cidades são divididas e controladas por diferentes seitas. Há ainda outra questão histórica: o sul faz parte da Terra Prometida
, na antiga Galileia.
É neste cenário religioso e histórico, banhado pelo Mar Mediterrâneo, entre a Ásia, África e Europa, que moram cerca de 20 mil brasileiros, apenas cinco mil registrados na Embaixada do Brasil no Líbano. Alguns com filhos alienados e sem escola. Outros, com o ardente desejo de retornarem à pátria-mãe, não têm condições de se desvencilhar de laços e opressões impostos pelos cônjuges.
Suas vidas assemelham-se às presentes no Mar Morto, nas terras sagradas onde Jesus transformou a água no elixir dos deuses.
Trégua
Deixei de lado minha vida pessoal e parti para o desconhecido, confiando a Deus o meu destino, sem questionar. Fiz de todo o meu ser apenas um escudo, de meus sentidos, filtros de emoções, e da essência do que vivi procuro revelar as mensagens extraídas da confiança dos anjos que alcancei pelo caminho.
As raízes nascidas e afloradas das religiões ocidentais estão também arraigadas no País dos Cedros, onde o judaísmo, o cristianismo e o islamismo são defendidos num pequeno país de 10.452 quilômetros quadrados, com o individualismo representando a própria encarnação de seus líderes, numa disputa religiosa pela dominação social, política e geográfica.
O pequeno Líbano tornou-se, por 16 anos, cenário do que seria a destruição mundial dos valores humanos.
Hoje vivem sob um regime de ocupação síria, questionada e contestada pelos cristãos, que por vezes tiveram algumas de suas fileiras em parceria com Israel; em um país que não se entende e também por isto se enfraquece, entre duas potências fortes, radicais e aparentemente[6] inimigas entre si – Síria e Israel.
[6] Em determinados momentos, apesar da inexistência do estado de paz entre Síria e Israel, estes países tiveram o mesmo objetivo: exterminar os palestinos.
Mas os libaneses viraram a página das guerras e, mesmo carregando as intransigências e os carmas de suas seitas de especificidades incomuns, abraçaram o país destruído. Dividiram as cidades e até os bairros como clãs entre islâmicos, cristãos e drusos[7]; convivem com os israelenses ao sul e expulsaram até o desejo dos palestinos de fazerem ali o seu estado.
[7] Drusa – Seita que mantém sua autonomia cultural, social e religiosa, com lealdade ao governo do país onde é cultuada.
A trégua das guerras dura seis anos, uma vez ou outra quebrada por massacres de civis, atentados suicidas e provocações de todos os lados. Em um cenário onde o medo e as recordações dos conflitos ditam as atitudes humanas, a esperança dos muçulmanos foi depositada em seu primeiro-ministro sunita[8] Rafik Hariri, megaempresário articulador da reconstrução das cidades.
[8] Sunita vem do árabe sunna, tradição; defendia a passagem da autoridade, após a morte do profeta Mohamed, aos califas. Xiita vem de xia, dissidência; defensores da monarquia na qual o primo e genro do profeta Mohamed, Imam Ali, seria o sucessor natural na chefia da comunidade muçulmana.
Por outro lado, os cristãos, que até pouco tempo eram maioria no Líbano, sentem a pressão dos muçulmanos, conscientes hoje de sua supremacia numérica.
O ‘arabismo’ reconhecido pelos muçulmanos, elo maior com o Islã, confronta-se com o ‘libanismo’ defendido pelos cristãos, o que coloca o país como único, diferente e excepcional no mundo árabe. Como disse o Papa João Paulo II em visita à terra:
– O Líbano é mais que um país: é uma Nação-Mensagem.
O triedro de forças em conflito dentro do país, representado pela ocupação síria, israelense e pela milícia muçulmana Hazbollah, adormece como um vulcão, ruminando suas lavas. Não bastasse, há 12 acampamentos palestinos no Líbano, mas sem o poder de outrora.
O sonho de um Estado Palestino continua, em confronto com os anseios de Israel, vigilante dos passos daqueles que foram os proprietários das terras.
Como resultado da partilha proposta pela ONU – Organização das Nações Unidas, há 50 anos, quando da criação do Estado hebreu, os palestinos vagueiam pelos países árabes, ainda com a esperança de um dia voltarem para seu antigo lar – a Palestina reunificada.
A Viagem
As marcas de quase duas décadas de conflitos estão presentes física e mentalmente no povo e no país. E o medo ultrapassa as fronteiras e as identidades. Pude observar este estado de espírito já em minha viagem. Conheci um casal de paulistanos que ia para a região da antiga Iugoslávia, em visita a parentes.
Era a primeira vez que voltava a um local de ferrenhos conflitos. Foi o marido quem primeiro me fez terrorismo dentro do avião. Sugeriu-me pintar os cabelos em Paris, antes de prosseguir viagem para o Líbano. Como eu disse que não o faria, insistiu em que eu comprasse uma peruca de cabelos pretos ou, no mínimo, usasse um lenço de muçulmana para ocultar minha identidade.
Eu ficava entre acreditar que ele estava mesmo preocupado ou se aquilo era puro terrorismo. Ao final da viagem, ele pediu meu nome completo, prometendo-me acompanhar as notícias de assassinato de jornalista brasileira no Líbano. Trocamos nossos cartões. Eles prosseguiram viagem imediatamente após nossa chegada. Fiquei por quase seis horas no aeroporto Charles de Gaulle II. Mas, observadora, havia reparado nos árabes do voo. Com certeza, minha espera resultaria em alguma informação sobre o Líbano.
Logo após a chegada a Paris, procurei conversar com um libanês. Ele se chama Mohamed – o nome do profeta do islamismo (ou Maomé, como é conhecido entre nós). O libanês mora em Foz do Iguaçu, no Brasil há 12 anos, e trabalha no comércio da Ciudad del Este, no Paraguai, zona fronteiriça de tradicional contrabando.
Era a primeira vez também que retornava à sua pátria, para rever os pais e parentes. Deixara a esposa e filhos para trás e estava muito apavorado. Disse-me que o aeroporto de Beirute era controlado por muçulmanos xiitas e que a situação do Líbano era ainda muito assustadora.
Ele demonstrou a mesma preocupação por eu não conhecer ninguém no país, ser loira, estrangeira e jornalista e estar sem nenhuma proteção. Tentei arrancar-lhe o máximo de informações e lhe perguntei sobre o conhecimento de seus parentes, se poderia procurá-los, caso necessitasse. Mohamed, apavorado em se comprometer, não pôde me ajudar em nada, a não ser contribuir com maior apreensão.
As surpresas começaram no próprio aeroporto de Paris, quando ouvi meu nome pelo alto-falante, cerca de quarenta minutos antes do horário previsto para o embarque. Procurei a companhia responsável e fui repreendida, em árabe (traduzido por Mohamed), por não estar ainda no avião.
Como eu não estava errada, fui logo dizendo, em inglês, que o horário previsto para o embarque não era aquele. Entramos no avião, conformados, que partiu com certa antecedência.
Nunca imaginara uma coisa dessa!
Essa nova etapa da viagem, apesar de menor que a primeira, pareceu-me bem maior. Talvez por eu não me sentir à vontade, ao lado do libanês, talvez pela ansiedade da aproximação de meu destino. Faltavam poucos dias para o Natal e eu estava ali, percorrendo espaços desconhecidos e obscuros para mim. Até que finalmente avistei Beirute iluminada abaixo de nós.
Chegamos. Mohamed simplesmente desapareceu no aeroporto. Ao pé da escada do avião, soldados com uniformes camuflados portavam metralhadoras. Subi no ônibus que nos levaria até o hangar, quando senti vontade de tirar a primeira foto, de um soldado.
Mas estava muito escuro. Eram cerca de 21 horas. Mesmo assim, procurei colocar meu alvo ao fundo do meu primeiro clique – o de duas muçulmanas com seus lenços coloridos.
No aeroporto, após passar pelo Serviço de Imigração, quando avaliaram meu passaporte, pediram-me para abrir a bagagem, sobre um balcão. Demonstrei dificuldade em pôr a mala no local indicado, quando fui auxiliada por um dos oficiais.
Coloquei o código e lhe disse, em francês (falo só algumas palavras), que poderia ficar a vontade. Para mim, quem não deve não teme. Foi somente quando ele abriu a mala que me lembrei do pacote de polvilho que levara para a brasileira.
Este foi o motivo de haver uma verdadeira multidão de oficiais ao meu redor. O primeiro pegou o pacote e, vendo o pó branco vazando (nossas embalagens deixam a desejar), começou a investigá-lo, passando-o entre os dedos, cheirando-o e pondo um pouco na língua. Chamou outros colegas que repetiram os mesmos gestos. Olhavam-me com desconfiança e até raiva. Eu não correspondia ao tipo de olhar e nem demonstrava medo, porque sabia o que era aquele pó.
Um deles, muito bravo e falando alto, começou a me fazer perguntas em árabe. Disse-lhe, em português, que eu não o estava compreendendo. Perguntou-me, então, em francês, e eu continuei lhe dizendo que não o compreendia.
Ele chamou outro oficial que, em inglês, perguntou-me que línguas eu falava, o que estava fazendo em Líbano, onde eu ficaria, por quanto tempo, qual o objetivo da viagem e, finalmente o que era aquele pó que eu carregava. Respondia às indagações com tranquilidade. Até que chegou a última. Nesta hora não pude deixar de fazer uma certa carinha de achar graça:
– É para fazer biscoitos, disse-lhe.
Muito nervoso, pediu-me identidade, apesar de o meu passaporte estar em suas mãos. Peguei minha carteira vermelha da Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas, onde há um PRESS escrito em dourado e, qual não foi a minha surpresa! Os oficiais saíram imediatamente, deixando-me a sós com um único, que começava a vistoriar minha bagagem de mão. Ele parou de olhar minha bolsa, devolveu-me os documentos e me dispensou.
Pedi-lhe ajuda para fechar a bagagem e para colocá-la no chão, pois não o conseguiria sozinha. Era muito pesada. Ele não me ajudou, mas teve a gentileza de chamar um carregador, que lhe obedeceu. Alívio. Passara pelo primeiro obstáculo de minha viagem.
Mala no chão, caminho rumo ao hotel, reservado desde o Brasil. À saída do aeroporto, lembrei-me da observação de uma amiga paulistana, de nome Suzy, que me garantiu que em um dos países árabes por que passara ofereceram ao seu acompanhante três camelos em sua troca.
Fui rodeada novamente, agora por civis velhos, jovens, mas todos falando alto e ao mesmo tempo, tudo em árabe. Meu coração pulou. Pronto! Agora nem camelo alguém receberia, porque não havia nem a quem entregar o prêmio. Quantos camelos eu valeria?
Conhecia a fama de negociantes dos libaneses e também o patriarcalismo, mas só com suas filhas e esposas. Com estrangeiras não tinha nem ideia. Mas sabia que eles amam o Brasil – o futebol, o café e o Carnaval. E camelo no Líbano seria como índio no Brasil.
Enfrentaria aquele povo com o qual precisava conviver. Conviver pelo menos por alguns dias, para conhecê-lo. E estava disposta a ter sucesso no meu objetivo. Comecei por perguntar quem falava português. Ninguém se apresentou.
Então perguntei quem falava inglês. Mais da metade saiu de perto de mim. Peguei o endereço do hotel e, apresentando-o aos presentes, perguntei em quanto ficaria a corrida de táxi. Falavam em não sei quantos mil.
Refiz a pergunta: quanto ficaria em dólar? Responderam-me que em US$ 45. Dividi por três, lembrando-me do Globo Repórter apresentado por Glória Maria, sobre negociações na Turquia. Ofereci US$15. Apenas um jovem taxista ficou perto de mim. Pegou minha bagagem com decisão e foi caminhando na frente, rumo ao seu táxi.
O aeroporto era longe de meu hotel. Estava frio e era uma noite muito escura. Passávamos por ruas de terra, completamente sem iluminação. O motorista insistia em conversar comigo em inglês sobre minha estada, meus objetivos de viagem e me oferecia seus serviços por dia. Mas o taxista não se limitava a falar e a ouvir. De quando em quando, parava o carro, literalmente no meio das ruas, e olhava para trás, para me compreender melhor, acredito.
Naquela hora, a única coisa que eu queria mesmo era uma ducha e uma cama quentinha. Disse-lhe que conversaríamos na porta de meu hotel e me limitei a repetir esta frase. Só assim ele se convenceu de que eu queria chegar logo ao meu destino. Pedi-lhe seu telefone de contato alegando que, caso precisasse de seus serviços, eu o procuraria na manhã seguinte.