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A Hora do Acidente do Trabalho
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A Hora do Acidente do Trabalho
E-book802 páginas8 horas

A Hora do Acidente do Trabalho

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Sobre este e-book

As políticas de saúde e segurança do trabalhador dependem da correta identificação dos momentos da jornada de trabalho em que os acidentes mais acontecem para que possam antecipar eventos ou, quando isto não for possível, aprimorar a organização do trabalho para que não haja a repetição do fato. Embora não existam provas em dados oficiais, estabeleceu-se um consenso na doutrina e na jurisprudência de que os acidentes de trabalho são mais frequentes nas faixas de horários em que o trabalhador está a realizar horas extraordinárias. Os acidentes se dão com maior recorrência nesses momentos mesmo? Esta foi a principal pergunta que subsidiou a tese. Após o tratamento doutrinário de questões relacionadas à saúde e segurança biopsicossocial e organizacional, tratadas como um processo e não como um estado ideal, utópico e afastado do "chão de fábrica", depois da compreensão jurídica do instituto jurídico das horas extraordinárias e mesmo após demonstrar que acidentes típicos e doenças, inclusive mentais, estão intimamente relacionados à questão dos dias e horários e trabalho, foram identificadas as proporções de ocorrências de acidentes de trabalho típicos no interstício de janeiro de 2007 a agosto de 2016, a partir de alguns cenários reais e hipotéticos. Foram utilizados os dados oficiais do Ministério da Saúde (SINAN-DATASUS) e analisados os números da região metropolitana de São Paulo. Concluiu-se que o índice de acidentes, em comparação com as demais faixas de horários da duração normal da jornada, elevou-se fortemente na primeira hora extraordinária. Sob cenários de concessões de intervalos para refeições e descansos, os percentuais de ocorrências acidentárias da nona hora de trabalho se equipararam aos números encontrados na segunda, terceira e quarta horas de trabalho no dia. As pausas para descansos ao longo das jornadas mitigam os riscos de acidentes na faixa das horas extras. As análises estatísticas demonstraram a fidedignidade das conclusões. Em razão disso, considerando que na maioria dos cenários a "hora do acidente do trabalho" se dá de maneira mais frequente na primeira hora extraordinária, propôs-se, além do aumento das pausas de descanso intrajornadas, a proibição mais forte da realização do trabalho para além de oito horas diárias. Em cenário ideal seria aconselhável não somente a proibição, mas a própria supressão da prática. O conhecimento dos fundamentos deste estudo, além de contribuir para o melhor equacionamento da organização do trabalho e, o que é mais desejável, para a mitigação dos problemas oriundos deste estado de coisas, poderá subsidiar teses mais elaboradas de responsabilização civil do tomador dos serviços.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento2 de dez. de 2020
ISBN9786558770305
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    A Hora do Acidente do Trabalho - Alexandre Alliprandino Medeiros

    fatores.

    1. SEGURANÇA E SAÚDE BIOPSICOSSOCIAL E ORGANIZACIONAL DO TRABALHADOR

    Estudar, refletir e arriscar-se em fazer ponderações, com rigor científico, na grande área da segurança e da saúde psicossocial do trabalhador não é algo fácil. São necessários, por isso, alguns cuidados, entre eles, a fixação de pressupostos doutrinários para balizar as conclusões que se seguirão.

    Com apoio na lição de Christophe Dejours³¹, e nada obstante a natureza científica do presente trabalho, importa reconhecer a limitação da ciência para que seja possível, então, dar um verdadeiro salto de qualidade.

    O reconhecimento dessa limitação, e aqui está o primeiro pressuposto, sugere que tudo, ou seja, toda pesquisa nesta seara não se desprenda dos pontos de partida e destino deste esforço todo, que no caso são coincidentes: o homem. Mais especificamente, o trabalhador.

    A inspiração, os rumos e o controle desta investigação devem levar em conta as singularidades daquele que está imerso no processo de saúde ou de adoecimento ligado ao trabalho. Dizendo de outro modo, o cientista, sem abdicar da curiosidade e dos móveis próprios que estimulam o seu trabalho, o principal deles, a apresentação de contribuição inédita para a resolução de questões críticas, não pode, na questão em foco, deixar de se submeter aos ricos mananciais da variabilidade humana de cada trabalhador, da escuta ativa daquilo que o operário vocifera. O investigador não pode, assim, deixar de se sujeitar ao controle de rumos que só pode vir mesmo daquele que transita pelo chão de fábrica.

    Isso é assim porque a saúde das pessoas é algo que interessa primeiro a elas mesmas, frise-se, singularmente e conforme as especificidades que lhes são próprias.

    Em questões relacionadas à sanidade do trabalhador, no caso deste trabalho, integridade física e também psicossocial, será impossível cogitar de saúde e segurança, de prevenção e de precaução, sem que antes sejam considerados os desejos, as aspirações e as motivações daqueles que, com seus corpos e almas, realizam o ato de trabalhar.

    Também com suporte em Dejours³² pode-se dizer que a saúde não é algo que vem do exterior, ou seja, não é assunto dos outros, de uma instância, de uma instituição, do Estado ou dos médicos, mas algo que diz respeito à pessoa de quem, ou a quem, ela se refere.

    Outro pressuposto é que a saúde e a segurança do trabalhador não consubstanciam situações finais e estáveis, realidades retilíneas e imunes a mutações. São, na verdade, uma sucessão de compromissos ou ajustes com a realidade ambiental, psicológica e social, que estão a cambiar a todo instante.

    Bem por isso a saúde e a segurança da saúde é algo que se constrói, que se desconstrói, que se ganha, que se perde, enfim, são circunstâncias das quais o trabalhador depende e que por isso mesmo demandam um necessário envolvimento pessoal.

    Independentemente dos planos e das obrigações atreladas à segurança do trabalhador, cada pessoa há de desenvolver o seu papel.

    Da mesma forma que a inspiração, a delimitação de rumos e mesmo o controle da pesquisa neste universo têm que estar atrelados àquele que executa materialmente o trabalho, não haverá saúde e possibilidade de efetiva segurança física e psicossocial sem um concreto engajamento do trabalhador nesse processo.

    Esta realidade é algo contínuo, sucessivo, que dura a vida toda e demanda a conjugação de passado, presente e futuro, respectivamente representados pela história de vida de cada trabalhador, das posturas a adotar para as transformações dos estados das coisas e, por fim, da consecução dos planos para se atingir o resultado colimado.

    Terceiro pressuposto é que as questões envolvendo saúde e segurança do trabalhador tangem basicamente três áreas:

    a) as condições de trabalho ligadas a agentes externos - físicos, químicos e biológicos, com as obrigações contratuais e legais inerentes;

    b) a realidade afetiva, relacional e familiar, enfim, todo o universo que envolve a saúde psicológica da pessoa;

    c) a realidade social, onde se situa, de modo importante e privilegiado, a organização do trabalho; e

    d) as condições de trabalho intrinsicamente consideradas (variabilidade do trabalho e do trabalhador) e sua correlações com os riscos ergonômicos.

    Essas áreas não são, diante da riqueza da natureza humana e o modo interativo entre elas, isoladas ou estanques, mas suas categorizações ou compartimentações são cientificamente importantes para delimitações dos focos ou das áreas de investigação.

    Nesta pesquisa, pelo manifestado elo entre a hora do acidente, as horas extraordinárias e os vários fatores de estresses associados, o foco das investigações transitará nas últimas três áreas. Contudo, isso não impedirá incursões sobre matérias envolvendo condições externas, se e quando isso se fizer necessário.

    Um quarto e último pressuposto consiste na delimitação, desde já, do que se entenderá como saúde do trabalhador porque não é possível tecer considerações sobre riscos na prática de horas extras, sobre a hora do acidente, inclusive com incursões atreladas à segurança psicossocial, enfim, adentrar-se no terreno da saúde e segurança do trabalhador sem precisar o conceito de saúde admitido de antemão, ou seja, sem a ciência efetiva do raio de atuação dos mencionados riscos.

    Também aqui vale, uma vez mais, a utilização de subsídios construídos por Dejours há mais de três décadas. Calcado em conhecimentos hauridos na Fisiologia, na Psicossomática e na Psicopatologia do Trabalho ele concluiu que para se atingir o bem-estar físico seria necessário a apropriação de graus de liberdade obreira para regular as variações de estado que comumente afeta o organismo do trabalhador, é dizer, o cansaço, o sono, a fome, a doença etc.

    A ideia de saúde, portanto, transitaria no campo da liberdade de dar ao organismo a possibilidade de repousar quando incidisse o cansaço, de paralisar a atividade em momentos de doença que gerasse incapacidade laborativa, de dormir quando se apresentasse o sono, de comer quando viesse a fome, enfim, uma liberdade de adaptação, e isso exatamente porque não é anormal, pelo menos para o homem, estar cansado, estar doente, estar com sono, ter fome. O que não é normal, ensina o professor francês, é não poder cuidar dessa doença, não poder ir para a cama, não poder comer, descansar.

    O bem-estar psíquico, ainda segundo Dejours, encontrar-se-ia simplesmente na liberdade deixada ao desejo de cada um na organização de sua vida e, no caso específico do trabalhador, a imersão em um sistema de trabalho que proporcionasse o atingimento de suas aspirações, a consecução de seus desejos, o reconhecimento dos êxitos que levou a efeito.

    Já o bem-estar social consubstanciar-se-ia na liberdade de agir operário, individual e coletivamente, sobre a organização do trabalho, ou seja, sobre o conteúdo do trabalho e sobre a divisão das tarefas, ou ao menos a possibilidade, conferida ao trabalhador, de participar nas decisões quanto à divisão dos trabalhos entre os pares e o estabelecimento das esferas relacionais decorrentes.

    A relação entre essas formas de bem-estar compõe uma situação mais ampla, que em si encerra uma dita satisfação psicossocial, a aglutinar inclusive o terreno da sanidade física.

    A partir desses elementos Dejours pôde construir um conceito de saúde aplicável a todo ser humano, aí incluído o trabalhador, ao qual ora se adere como quarto e derradeiro pressuposto: a saúde, para cada homem, mulher ou criança, é ter meios de traçar um caminho pessoal e original, em direção ao bem-estar físico, psíquico e social³³.

    Por fim, como arremate, e na tentativa de harmonização de tudo o quanto se expôs neste ponto, poder-se-ia declarar, em esforço conceitual sintetizador, que a saúde psicossocial do trabalhador, que também pode ser tida, ou verbalizada, como saúde biopsicossocial e, até organizacional³⁴:

    1) repele o trabalho prescrito e estável;

    2) respeita a variabilidade operária, que é singular a cada sujeito;

    3) depende, se inspira, é organizada, dirigida e controlada pelo e para o trabalhador;

    4) transita nas grandes searas das condições externas - físicas, químicas, biológicas, bem assim em terrenos ergonômicos e relacionais de toda sorte e social, neste último caso, com foco na organização das atividades (divisão de tarefas e pessoas, com participação obreira nas decisões sobre isso); e

    5) transita em realidades não perenes e, por isso, atinge níveis de equilíbrio instável³⁵, é dizer, situações de bem-estar físico, psíquico, social, moral e até espiritual, em um processo que é histórico (passado, presente transformador e futuro) sucessivo, contínuo, uma luta que tem duração coincidente com a duração da vida de cada trabalhador.

    Segurança, nesse contexto, e como corolário, seria o conjunto de todas as medidas tendentes a salvaguardar a integridade física, psicológica, social, moral e espiritual do trabalhador, ou, de maneira mais simples ainda, toda ação promotora de saúde, seja ela antecipatória (prevenção, precaução) seja reparadora.

    É nisso tudo que se insere a correlação entre a hora do acidente e o universo da Saúde e Segurança do Trabalhador.

    1.1 Prevenção e precaução

    ³⁶

    Prevenção e precaução são ações promotoras de segurança e saúde biopsicossocial do trabalhador. Têm natureza antecipatória de danos.

    Tecer considerações sobre esse tema passa pela tomada de consciência acerca da importância dos dois maiores valores humanos envolvidos na questão, a vida e a saúde, pela apropriação da ideia de que esses bens merecem inexorável proteção, bem assim pela admissão como verdade da afirmação de que nada pode justificar o retardamento da tutela ou o desprezo desse autêntico patrimônio. A análise adequada do tema passa, ainda, por uma reflexão sobre o sistema econômico e político hegemônico.

    O homem é e deve ser o centro de toda reflexão e ação.

    João Humberto Cesário, em suas aulas e livros, sempre ressalta a importância de um direito do trabalhador, previsto na Constituição Federal, mas recorrentemente esquecido, que é o prescrito no inciso XXII do art. 7º, direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho³⁷.

    Ao pensar nas tutelas de Direito que possibilitam o acesso a uma ordem jurídica justa e eficiente, Cesário, inclusive destacando as expressões ameaça e prevenção, respectivamente encerradas nos incisos XXXV do art. 5º da CF³⁸ e VI do art. 6º do Código de Defesa do Consumidor (CDC)³⁹ concluiu que em um Estado Democrático de Direito as tutelas preventivas possuem inequívoca precedência ante as repressivas⁴⁰. Explicando de outra maneira, declarou que as tutelas inibitórias e de remoção do ilícito devem ser privilegiadas, para que, em última instância, os danos não ocorram⁴¹.

    A observação da vida e dos contextos que circundam o universo do trabalhador⁴² no século XXI enseja grandes inquietações.

    O capitalismo e os sistemas em que está estruturado, como o da globalização dos mercados e suas técnicas próprias, proporciona condicionamento dos trabalhadores, físico e emocional. Eles são rotineiramente submetidos ao cumprimento das demandas do capital, seja de maneira clara e objetivamente declarada, seja por meios subliminares de influência.

    Em outras palavras, o capitalismo reina de maneira universal e universalizante, ou seja, deita raízes tanto na dimensão geográfica quanto na qualitativa, esta inserta nas estruturas de poder, das pessoas, e do desejo de ambos, de sorte a moldar comportamentos.

    Sobre essa realidade toda, Roland Corbisier, ao escrever prefácio à obra de Jacques Ellul, assim se pronunciou:

    O universalismo, ou o processo de universalização da tecnologia ocidental, apresenta dois momentos, o geográfico e o qualitativo, o segundo não sendo senão o resultado da transformação dialética do primeiro. Aos poucos, a técnica penetrou e conquistou todos os países, todas as regiões do mundo, todos os continentes. Aqueles que ainda não a assimilaram, na proporção e na escala necessária, não desejam senão fazê-lo, e a reivindicação unânime do terceiro mundo, pelo desenvolvimento e pela industrialização de sua economia, a rigor não passa de uma exigência de tecnificação [sic]. A técnica levou, assim, todos os povos do mundo a seguir o mesmo caminho, embora ainda se achem em pontos diferentes da mesma trajetória.⁴³

    A força dos controles estatais, nesse cenário, tende a diminuir. Surge, em substituição, e em proporção avassaladora, um novo estandarte, centrado sobretudo em fundamentos encerrados no valor do dinheiro, no mercado volátil e dominado pelos ativos financeiros. Essa realidade é preocupante, sobretudo quando se sabe do abismo que separa pobre de ricos, o capital do trabalho.

    Thomas Piketty, no capítulo 12 de O capital no século XXI⁴⁴, apresenta a dinâmica da desigualdade da riqueza no contexto mundial. Segundo ele, as discrepâncias na distribuição de renda são potencializadas pelas desigualdades dos rendimentos do capital, ou seja, quanto maior o capital maior será o retorno do investimento. A consequência, diz, é a agudização das diferenças entre o que possui mais e o que tem menos.

    Ele aborda, ainda, a questão da relação entre mérito e fortuna, que circunda a seara da multiplicação desmedida da riqueza, alcunhada como injusta e sem razão social. É que os empreendedores, ao obterem sucesso nessa ciranda de investimentos, tendem a deixarem de produzir e a tornarem-se exclusivamente rentistas. Disso surge o acréscimo de um capital sem utilidade social imediata, um enriquecimento desprovido de mérito ou de moral.

    No mesmo capítulo Piketty questiona, por fim, a moralidade do acúmulo de determinadas fortunas porque, e aqui o que o mais interessa ao assunto desta tese, elas são amealhadas mediante práticas externalizadoras⁴⁵ de riscos ambientais, a exploração do meio ambiente natural e do trabalho.

    Nesse universo, portanto, as fronteiras oficiais e os marcos regulatórios legais dos países, a incidirem também sobre o mundo do trabalho, já não mais configuram obstáculos intransponíveis. De nada têm adiantado as regulações e as tentativas de institucionalizações⁴⁶ do trabalho.

    As relações de trabalho são, em verdade, cada vez mais efêmeras. O regime de emprego no Brasil, encerrado estruturalmente na famigerada CLT, se faz cada vez menos hegemônico, e cada vez mais harmônico ao que se vê no mercado mundial. Contudo, o trabalho humano, sob diversas formas, lícitas ou ilícitas, regulado ou não, subsiste, e se mostra ainda indispensável à vida singular e social.

    A velocidade das demandas por competências artificiais⁴⁷ impacta a formação dos trabalhadores e gera um exército de profissionais limitados. Para obter ocupação remunerada a mão de obra procura a qualificação que o mercado exige, a saber, um conhecimento circunscrito à produção disso ou daquilo, que é utilizado, na maioria das vezes, exclusivamente para aquele processo produtivo imediato, com posterior descarte. Pouco se cria nesses espaços para a elevação mediata e perene do trabalhador. A afetação negativa que esse modo de aquisição de conhecimento produz na realidade da vida dos trabalhadores é evidente.

    Assim, a busca pela manutenção de condições de subsistência por meio do trabalho, movimento concebido para o encontro com a saúde e com a vida, acaba se tornando a mesma ação que proporciona, no tempo, a desconstrução dos espaços de saúde.

    Em outras palavras, o trabalho no século XXI, da forma como está, ao invés de significar um encontro com a qualidade de vida e com a segurança nas atividades trabalhistas, traduz-se em sofrimento e incremento do risco, na morte do corpo e, o que é mais grave, no fenecimento da alma.

    Como, por detrás dos movimentos do capital e do trabalho há, concretamente, pessoas dotadas de racionalidades e, sobretudo, de sentimentos, indaga-se se o homem perdeu o amor pela própria espécie, o amor por si mesmo.

    Se o sistema capitalista econômico e político está estruturado também em relações humanas, ainda que um dos elos seja sempre subjugado no jogo de forças e poderes, o sentimento de amor pelo outro acaba a se confundir com o amor por si mesmo ou pela própria espécie. Neste sentido é razoável observar que a morte daquele que é constantemente submetido a um outro, ensejará, ao fim e ao cabo, a derrocada do dominador também. A diferença é só de sequência ou de tempo. Um cai primeiro. O outro, logo depois.

    Se assim o é, impõe-se a defesa de uma conclusão, ora tida como fundamental à perfeita compreensão de tudo o que se está a argumentar, ao perfeito entendimento da ideia que contém, no contexto do trabalho seguro, os desideratos da prevenção e a precaução: ao homem não apraz a morte de seu semelhante, ou, dito de outra maneira, e exatamente sob o raciocínio acima sugerido, a queda da própria espécie.

    Em momentos de crises e de riscos é desejável o arrefecimento da tensão histórica entre o capital e o trabalho. Sobrelevar atributos próprios do ser humano, tal como o altruísmo nas relações profissionais e a promoção de um maior desenvolvimento do valor da função social das propriedades consubstanciam exemplos de bons paradigmas a buscar.

    Sabe-se, todavia, que em um palco (ou picadeiro) capitalista, culturalmente imposto e amalgamado na competição, a mudança de concepções nas relações entre trabalhadores e empregadores não é trabalho fácil. Técnicas concorrenciais variadas, de invejável poderio, sempre se organizam para, de alguma maneira, normalmente eficaz, fazerem sucumbir aquilo que se apresenta como alternativa humanizante e economicamente viável.

    Ao se imaginar o trabalho dentro ou fora da relação de emprego, com os riscos inerentes à saúde e à vida do homem, e mais, ao se refletir e tentar promover um trabalho seguro no universo das indagações e dos contextos acima apresentados, não há como não pensar em prevenção e, no mundo atual, tão rápido, tão artificial e tão cambiante, onde reina a incerteza científica, na feição mais importante da busca pela proteção humana, a precaução.

    Para lograr êxito na organização de um trabalho efetivamente seguro interessam não somente imersões conceituais no tema da prevenção e da precaução, mas a construção de alicerces teóricos que possam, de fato, fundamentar ações concretas.

    O entendimento do significado da chamada Relação Homem-Trabalho é o primeiro passo. A identificação de qual é o elo de ligação entre o homem e o trabalho, o hífen (-) da expressão ora destacada, é o objetivo seguinte. A realização da saúde e da segurança do trabalhador, por meio de ações contextualizadas no perfeito entendimento do que é a relação do homem com o trabalho, e de qual é o elemento que os une, ou seja, a efetivação de um trabalho seguro por meio da prevenção e da precaução, contextualizadas, acaba sendo uma consequência inevitável.

    O que se pretende, na verdade, é construir marcos referenciais para a consolidação de um paradigma que, no processo de reconquista do amor do homem pela sua própria espécie, e na defesa do sujeito contra toda sorte de precarização em suas relações humanas e profissionais, possa servir para uma autêntica concertação rumo à felicidade na seara da interação do ser humano com o seu trabalho e, também, com o trabalho do outro.

    1.1.1 As oscilações na economia e seu impacto na Relação Homem-Trabalho

    Considerando a proposta supra delineada, de construção de bases teóricas que possibilitem uma compreensão qualificada da relação do homem com o trabalho, e sirvam para sustentar uma noção contextualizada de prevenção e de precaução, rumo à concretização de medidas importantes de segurança e saúde, tem-se como fundamental o estudo da economia recente, suas variâncias e interferências na vida do trabalhador.

    Jameson declarou que dizer sobre produção de cultura equivale a dizer sobre produção da vida cotidiana – e sem isso um sistema econômico não consegue continuar a se implantar e expandir⁴⁸. Para ele cultura e economia são realidades inseparáveis.

    Harvey afirmou que para que o modo de produção capitalista funcione da melhor maneira possível e harmonicamente aos seus propósitos é imprescindível que haja uma consonância entre o funcionamento do mercado, a garantia máxima de lucros e os hábitos, práticas políticas e formas culturais que exercem algum tipo de controle sobre a força de trabalho⁴⁹.

    Para esses autores, portanto, os processos econômicos que se pretendem exitosos e os modos de produção capitalista que intuem uma certa eficácia temporal assentam-se fundamentalmente na formação de uma cultura, na produção da vida cotidiana, nesse contexto inserido a cooptação da mão de obra.

    Se há, assim, esta vinculação ontológica entre formação de cultura e necessidades da economia, bem como a consequente ligação disso tudo com o controle dos trabalhadores, fica fácil compreender o impacto de oscilações econômicas na Relação Homem-Trabalho, inclusive no que diz respeito aos correlacionados valores da vida e da saúde do trabalhador.

    Como ensina o Doutor Sigmar Malvezzi em suas aulas⁵⁰, a gestão do trabalho é a expressão da gestão das atividades econômicas, que por sua vez é instrumento moderador de sua institucionalização e, consequentemente, da relação entre o sujeito do trabalho e sua própria condição de ser, física e psicológica.

    O capitalismo e, consequentemente, as economias sustentam-se em crises cíclicas ou, como prefere dizer o Doutor Malvezzi, em recorrentes curtos circuitos.

    Para a superação das contradições do regime de acumulação, próprios desses sistemas, foram levadas a efeito inúmeras mudanças no contexto das economias. Essas modificações transitaram pela reorganização do mundo do trabalho, pela configuração do famigerado sistema financeiro global e por aquilo que Jameson afirmou ser o pós-modernismo, é dizer, uma virada cultural nos hábitos e costumes.

    Harvey, na mesma obra e página acima referenciadas, sustentou que o regime de acumulação flexível foi exatamente a resposta do capital para contornar mais uma de suas crises sistêmicas.

    Esse novo regime de acumulação, decorrente, como se disse, de um curto circuito econômico, gerou efeitos importantes no âmbito da indústria e do terceiro setor. Surgiram setores fabris e de serviços totalmente novos, inclusive os financeiros. Novas expertises técnicas se consolidaram. Houve ampla alteração da estrutura organizacional do trabalho, diminuição de postos de emprego até. As novidades, impostas como necessidade urgente à recuperação da economia, porque instaladas em tempo destoante das necessidades humanas de adaptação, ensejou diversos riscos à integridade biopsicossocial do trabalhador.

    Em adição à realidade acima narrada foram criadas novas regiões geográficas ao dito mundo do sistema produtivo. Empresas transnacionais passaram a desenvolver suas atividades em locais onde a mão de obra era mais barata, e onde as regulações normativas e de proteção ao meio ambiente natural e do trabalho eram mais frouxas, tudo a potencializar o sofrimento dos trabalhadores.

    Como decorrência dessa movimentação fabril, caracterizada por caminhos inéditos, velozes e para além de fronteiras, acentuou-se o enfraquecimento das organizações sindicais. As ações reguladoras dos Estados, por sua vez, a incidirem sobre o homem, o seu trabalho e as suas relações com o setor produtivo, tornaram-se cada vez menos efetivas.

    Segundo Luciana Silvestre Girelli o sujeito foi [...] individualizado e atomizado na sua condição de espectador e consumidor, o que contribuiu para fragilizar sua organização como classe social⁵¹.

    Harvey declarou que [...] a estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a padronização mercadológica de formas culturais⁵².

    Prognósticos para um futuro estável e duradouro tornaram-se inúteis. Mais do que nunca se fizeram atuais os ensinamentos de Jesus Cristo quando, sentenciando que ao dia já bastaria o seu próprio mal, aconselhou seus seguidores a não se preocuparem com o amanhã, com o que comer ou com o que se vestir, porque "[...] o amanhã traria os seus próprios cuidados⁵³.

    Nesse cenário, a identidade de classe e a identificação do trabalhador como pessoa e como produtor perdeu espaço para a noção de objeto e consumidor, o que levou à ocultação do protagonismo dos trabalhadores na produção da vida social e a mitigação do desenvolvimento, ou do cuidado, com sua integridade física, psicológica, social e espiritual.

    O fenômeno, embora pareça, não é novo. Na década de sessenta havia vozes, na França por exemplo, que bem demonstravam a realidade de então:

    Quando o operário se sente em ambiente hostil, quando o sistema econômico lhe é adverso, não trabalha mais (e isso involuntariamente) com o mesmo ardor, com a mesma habilidade. Apresenta-se, assim, segundo Friedmann, o problema do regime econômico em sua totalidade. A tendência, porém, não está bastante marcada para que o homem possa realmente aproveitar do progresso técnico enquanto produtor (ao passo que dele já desfruta largamente enquanto consumidor). Ora, percebeu-se que não será por meio de transformações materiais que se alcançará esse objetivo. Sem dúvida, no ponto de partida, essas transformações são necessárias. É preciso que a adaptação fisiológica do homem não seja exclusiva e que se adapte a máquina ao homem, é preciso que a higiene seja respeitada, que o trabalho seja bem regulado (pois não há mais realmente trabalho livre imaginável) que os perigos sejam limitados etc. É preciso escolher o melhor local e, conforme o caso, utilizar a música a fim de tornar o trabalho mais ritmado e menos aborrecido.⁵⁴

    Assim, diante do efêmero, do fragmentado e propositalmente descartável ambiente criado, faz-se importante, para a manutenção da sanidade na Relação Homem-Trabalho, como forma de prevenção e mesmo de precaução, a criação de uma ordem na desordem, o desenvolvimento de concertações humanas que proporcionem ajustes, autorregulações e rápidas adaptações ao quanto possível, isto, é bom dizer, como produto de uma manifestação cultural de resistência.

    No desenho acima delineado emerge o risco do forte tolhimento das subjetividades e da transformação do homem em algo artificial também, onde eventualmente vingue somente o critério pragmático, funcional ou utilitário de sua atividade trabalhista. A este ponto não se quer, nunca, chegar.

    É por isso que o trabalhador e mesmo o empregador, nesses movimentos todos, enfim, na busca das concertações possíveis, devem privilegiar as suas condições de sujeitos. Nesse sentido, o prevalecimento da crítica, a união de valores e talentos para proporcionar uma boa avaliação e percepção das especificidades de tempo e espaço para, como consequência, buscar as melhores e mais elevadas escolhas, são posturas esperadas. E entre estas escolhas deverão estar todas aquelas formas que visem assegurar a vida e a saúde abundante.

    1.1.2 A sanidade biopsicossocial e organizacional na Relação Homem-Trabalho não é uma utopia

    Feitas as ponderações sobre as interferências da economia na relação do homem com o trabalho, assim como sobre os riscos inerente à mitigação de faculdades subjetivas do trabalhador, e ainda com o objetivo de edificar alicerce teórico para o entendimento da citada relação e para o balizamento de ações preventivas e precaucionais ligadas à sua saúde e vida, passa-se, doravante, a outra questão importante, qual seja, a análise das interfaces do obreiro com seus pares, isso sob o prisma da ética e da simbiose disso tudo com a organização do trabalho.

    A relação do homem com o trabalho, encerrada na singularidade de a um só tempo influenciar e ser influenciada pelo contexto ambiental, não é uma utopia, pelo menos na acepção encerrada por Thomas More em sua obra⁵⁵, ou seja, uma situação de intensa fruição de prazer e ordem, vivida em um território onde um governo conseguiria organizar e proporcionar, de maneira equilibrada e perfeita, uma sociedade com as melhores condições de vida, saúde e, pois, de felicidade.

    A sociedade globalizada vive sob os aios da dita Economia de Qualidade, onde reina a competição e sobrepuja como valor primordial e amalgamado no trabalho as competências para atingimento de resultados. Esses resultados, é bom dizer, são buscados a todo custo, no menor espaço de tempo, e até mesmo, reitere-se, mediante o sacrifício de subjetividades.

    Nesse processo de obtenção de resultados, que inclui a concepção e rápida apropriação de inovações técnicas, não importa a utilidade e a contribuição do objeto concebido para a elevação do ser humano e do meio em que vive. Importa somente que seja novo, que o bem criado desperte razoável interesse de consumo, ou certo proveito para a administração da organização, em um determinado e normalmente exíguo tempo, até o momento em que outra novidade surja como substituta para alimentar essa ciranda toda.

    A realidade em questão proporciona diversas consequências, entre as quais se destacam a efemeridade das relações interpessoais, a cultura da urgência e o surgimento de um tipo específico de trabalhador, o profissional atemporal, tudo isso a afetar sensivelmente a organização do trabalho.

    Profissional atemporal, além de um produto do mercado global destes tempos, é aquele que, colocando-se no ambiente organizacional como alguém desprovido de história passada, presente e futura, procura, após prévia leitura de contextos, amoldar-se voluntariamente àquilo que dele se espera. Esse comportamento, de negação de individualidades em favor de um engajamento produtivo e organizacional, gera algumas características desumanizantes, a saber, limitações na compreensão e na reflexão, incremento de conhecimentos artificiais ou superficiais das coisas e dos processos, comportamentos afoitos e excessivamente individualistas, além de despreparo para o

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